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Filosofando no limite da razão teórica: o anúncio da razão pura prática e as possibilidades de uma

CAPÍTULO I: O DEBATE ONTOLÓGICO-METAFÍSICO NA PASSAGEM DO SÉCULO XVIII PARA O

2. Kant como ponto de partida para a discussão Metafísica no final do século XVIII e início do século

2.4. Filosofando no limite da razão teórica: o anúncio da razão pura prática e as possibilidades de uma

O que aconteceria se dispuséssemos toda a estrutura do esquematismo transcendental ao próprio transcendental? Essa questão é o que ocupa de maneira inicial a Dialética

Transcendental, uma vez que pretende mostrar a “ilusão natural” da razão ao submeter às regras

do fenômeno aquilo que está para além dele. As antinomias da razão na Dialética Transcendental pretendem, nesse sentido, mostrar que constitui um erro proceder dessa maneira, cabendo, isto

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sim a razão, a apresentação do incondicionado para o qual converge todo conhecimento; um interesse que, dado por ela, não se confunde com nada de contingente ou condicionado que possa se apresentar na esfera dos fenômenos. Assim, no momento em que a razão deixa ao entendimento a tarefa de legislar sobre tudo o que nos é dado conhecer, estreitando nos limites da experiência nossas possibilidades, instaura-se, para além do entendimento, algo que não lhe cabe, que fomenta a convergência do saber no incondicionado. A explicação geral, sistemática ou cosmológica que pretendemos atribuir ao conjunto das coisas não pode constituir uma tarefa legítima a partir do momento em que submetemos a totalidade ao regime dos fenômenos, enfim, na medida em que pretendemos que ela esteja submetida às imposições de um tempo ou de uma causalidade que são dados antes pelo sujeito do que por uma coisa-em-si emanante.

[...] o conceito transcendental da razão não é senão o da “totalidade das condições” para um condicionado dado. Ora, visto que unicamente o “incondicionado” torna possível a totalidade das condições e que inversamente a totalidade das condições é sempre incondicionada, um conceito racional puro em geral pode ser explicado mediante o conceito de incondicionado enquanto contém um fundamento da síntese do condicionado. (KANT, 1999, p. 245)

Agir no uso legítimo da razão é, desta forma, livrar-se da confusão de tomar do entendimento regras que se imponham aos princípios da razão. Lebrun (2002) adverte, usando as palavras do próprio Kant: “‘O incondicionado não está nas coisas enquanto nós a conhecemos’: tal é o único resultado das duas primeiras antinomias.” (p.133). No caso das duas outras antinomias o erro consiste, segundo Lebrun (2002), em confundir a origem no tempo com a origem causal. Quando se apresentam nestas antinomias a dificuldade de admitir um incondicionado, os dogmáticos o submetem à sequência do tempo do fenômeno, buscando ou uma causa primeira ou um objeto na série do tempo capaz de gerar de maneira espontânea uma outra ordem causal. Ora, a admissão é contraditória na medida em que a colocação do incondicionado no tempo já o submete à esfera de condições, disso tira-se a incoerência ou dificuldade das duas últimas antinomias.

O que se evidencia a Kant no momento da Dialética é que a razão caminha na direção de um sistema geral, trazendo todas as considerações apontadas no universo do conhecimento para uma explicação última, um todo integrado que responde pela possibilidade mesmo do mundo existir como tal. Vemos que essa explicação não pode ser dada pela esfera de condições dos fenômenos, já que estes são sempre determinados pelo a priori e, dessa forma, não podem

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constituir, para além da experiência, qualquer validade numa sistematização que deva considerar inclusive essa capacidade de submeter a regras todos os fenômenos. Ainda aqui, resta um incondicionado que só pode ser apresentado de maneira negativa, ou seja, como necessidade no uso regulador da razão, mas de forma nenhuma de maneira constitutiva, mantendo-se velado em seu caráter último ou em si. Não obstante, Kant considera possível a passagem dessa esfera eminentemente negativa de toda investigação Crítica da razão para uma proposição positiva, capaz de estabelecer as diretrizes de uma Metafísica enquanto ciência.

O primeiro passo de Kant nesse sentido se dá com a consideração da dinâmica

transcendental. Ele chamará de dinâmica transcendental a possibilidade de recorrer na ordem

causal a algo que não está no conjunto das causas possíveis na experiência. A retirada da causa da ordem dos fenômenos revela um heterogêneo dado pelo condicionado e o incondicionado. Significa dizer que podemos admitir um universo de causas restrito ao entendimento e, ao mesmo tempo, uma outra fonte causal pela qual se deve reconhecer o exercício da razão. Desse heterogêneo decorre, portanto, duas formas possíveis de causalidade: uma dada na esfera dos fenômenos, e por isso natural, e outra dada pelo incondicionado da razão, e por isso livre. Devemos ter claro que a causa incondicionada pode atuar no campo dos fenômenos, sem que o inverso seja verdadeiro. Isso, na proposição de Kant, não implica contradição, já que se admite um heterogêneo em que se opera uma interferência em mão única, de onde se tira, mesmo, os conceitos de condicionado e incondicionado. Condicionada é assim a ordem dos fenômenos, seja pela submissão às regras do entendimento, seja pela interferência determinante do incondicionado; doutra feita, incondicionada é a esfera indeterminável que, em seu caráter regulador, orienta a razão e, na Crítica da Razão Pura, a sistematização geral da realidade.

Para Kant é lícito pensar em uma conexão entre o incondicionado e o condicionado já que o primeiro consegue determinar-se sobre o segundo. Aqui começamos a caminhar para o caráter positivo da Crítica na consagração de uma Metafísica enquanto ciência. Temos que o incondicionado mantém-se ininteligível, no entanto, é possível reconhecer na ordem sensível dos fenômenos seus efeitos. O homem aparece como ponto de união, é nele que se reconhece tanto as determinações objetivas das regras impostas a todos os fenômenos como o caráter incondicionado que possibilita a própria existência das regras as quais está submetido.

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Conforme o seu caráter empírico, pois, enquanto fenômeno, este sujeito estaria submetido à ligação causal segundo todas as leis da determinação, e nesta medida nada mais seria do que uma parte do mundo dos sentidos cujos efeitos efluiriam ininterruptamente da natureza tanto quanto qualquer outro fenômeno. Assim como fenômenos externos influiriam sobre ele e como seu caráter empírico, isto é, a lei de sua causalidade, seria conhecida por experiência, todas as suas ações teriam que ser explicáveis segundo leis naturais e todos os requisitos para uma determinação perfeita e necessária das mesmas teriam que ser encontrados numa experiência possível. (KANT, 1999, p. 342)

Entretanto, segundo o seu caráter inteligível (embora na verdade não possamos possuir a propósito senão o conceito universal) o mesmo sujeito teria que ser absorvido tanto de todo o influxo da sensibilidade quanto de toda a determinação por fenômenos; e já que, na medida em que é noumenon, nele nada ocorre, não é encontrada qualquer mudança, que reclama uma determinação dinâmica do tempo, portanto nenhuma conexão com fenômenos enquanto causas, então este ente atuante seria independente e livre, em suas ações, de toda a necessidade natural, como é encontrada unicamente no mundo dos sentidos. (KANT, 1999, p. 342)

Além disso, o sujeito racional torna efetiva a passagem do incondicionado a uma ordem causal representável. A segunda Crítica, ou Crítica da Razão Prática, nesse sentido, sela a resposta Metafísica positiva da primeira Crítica, porque é ela quem revela a maneira como, pelo dever moral, se torna necessário admitir a imposição de um incondicionado na ordem dos fenômenos. O seu nome “Prática” vem justamente da manifestação objetiva do incondicionado da razão pela ação moral. A separação aludida anteriormente entre sujeito e objeto encontra aqui sua máxima exposição. O objeto é condicionado, considerado estritamente no jogo de regras impostas pelo entendimento; o sujeito transcendental é livre, ser capaz de agir por um incondicionado para lá da ordem causal dos fenômenos, inserindo aí uma nova determinação que não está na esfera do determinável. Kant, na exposição do condicionado e do incondicionado manifesta a capacidade de livre ação do sujeito, para além das condições que lhe são impostas enquanto ser natural fenomênico; consideração ilustrada por ele a partir do exemplo de um mentiroso que, por sua mentira, causa desordem na sociedade. A punição que recebe este mentiroso, ou seu julgamento, parte da premissa de uma razão livre, pois ainda que fosse infortunado e atormentado esse infeliz mentiroso por uma vida miserável e por circunstâncias difíceis, tem-se que poderia ele agir de outro modo, do que se pode concluir que, de antemão, identificamos uma autonomia da razão. Aqui, aonde reside o passo fundamental da consideração positiva da Crítica na elucidação da questão Metafísica, ou no reconhecimento de uma essência

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(incondicionada) na ordem dos fenômenos, coloca-se, ao mesmo tempo, toda a dificuldade que haverá de ser superada pela filosofia alemã ulterior, como veremos mais adiante.

Kant estabelece, assim, a possibilidade de um novo idealismo, não dogmático, que escapa aos erros introduzidos ao se pensar ou tratar a essência como coisa-em-si, ou seja, ignorando a produção das representações no sujeito. Esse novo idealismo Kant denomina “idealismo

transcendental” (KANT, 1999, p. 317), que será levada a cabo com o idealismo alemão no final

do século XVIII e início do XIX. O encerramento Crítico da proposta Metafísica é o primeiro passo a ser dado na sua constituição enquanto ciência fundamental. Esse idealismo permite pensar o mundo como a esfera fenomênica, exposta pelos limites de intuição e entendimento no trato da natureza, entretanto, considera, a partir da razão, a manifestação de um incondicionado que, como tal, se manifesta empiricamente, ainda que não sofra determinação empírica (posto que é incondicionado). Esse limite é o limite da apresentação Crítica da essência do mundo, uma vez que não podemos, como vimos na seção sobre os juízos, empregar nosso sistema judicativo, e portanto nosso conhecimento, à coisa nela mesma, mas tão somente ao objeto da intuição. Aqui se torna claro o que Kant adverte no prefácio da Crítica da Razão Pura:

Após esta mudança na maneira de pensar, pode-se com efeito explicar muito bem a possibilidade de um conhecimento a priori e, mais ainda, dotar de provas satisfatórias leis que subjazem a priori à natureza enquanto conjunto dos objetos da experiência, coisas impossíveis segundo a maneira de proceder adotada até agora. Entretanto, na primeira parte da Metafísica, esta dedução da nossa faculdade de conhecer a priori conduz a um estranho resultado aparentemente muito prejudicial ao inteiro fim da mesma e do qual se ocupa sua segunda parte, a saber, que com esta faculdade jamais podemos ultrapassar os limites da experiência possível, o que é justamente a ocupação desta ciência. Mas aqui reside precisamente o experimento de uma contraprova da verdade do resultado daquela primeira apreciação do nosso conhecimento racional a priori, ou seja, que ele só concerne a fenômenos, deixando ao contrário a coisa em si mesma de lado como real para si, mas não conhecida por nós. Pois o que nos impele necessariamente a ultrapassar os limites da experiência e de todos os fenômenos é o incondicionado o qual, e nas coisas em si mesmas, a razão exige o último necessariamente e com todo o direito para todo o condicionado, e através disso a completude da série das condições. Ora, se quando se admite que o nosso conhecimento de experiência se guie pelos objetos como coisas em si mesmas, ocorre que o incondicionado de maneira alguma pode ser pensado sem contradição; se contrariamente quando se admite que a nossa representação das coisas como nos são dadas se guie não por estas como coisas em si mesmas, mas que estes objetos, como fenômenos, muito antes se guiem pelo nosso modo de representação, ocorre que a contradição desaparece; e que, conseqüentemente, o incondicionado tem de ser encontrado não em coisas na medida em que as conhecemos (nos são dadas), mas sim nelas na medida em que não as

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conhecemos, como coisas em si mesmas; então se mostra que é fundado o que inicialmente admitíamos apenas a título de tentativa. Após ter sido contestado à razão especulativa todo progresso neste campo do supra-sensível, agora ainda nos resta tentar ver se no seu conhecimento prático não se encontram dados para determinar aquele conceito racional transcendente do incondicionado e, deste modo, de acordo com o desejo da Metafísica, conseguir elevar-nos acima dos limites de toda a experiência possível com o nosso conhecimento a priori, mas possível somente com o propósito prático. (p. 40-41)

Kant consegue transpor um fundamento investigativo metafísico a partir da análise da razão e no reconhecimento dos limites a ela impostos. A mudança geral do procedimento metafísico na análise ou investigação da essência torna Crítica a tarefa de buscar as reais possibilidades de um tal conhecimento. Escapando dos limites que anuncia o exame Crítico, pode reverter o caráter negativo de consideração da coisa-em-si em uma proposição positiva, a partir do reconhecimento da razão pura prática como forma de ligação e atuação do incondicionado no condicionado. Ato livre e autonomia da razão com relação à experiência são aqui as chaves para se romper os limites impostos pela intuição e pelo entendimento ao sujeito; todavia, a Crítica aqui exposta mantém tudo isso possível conservando, ao mesmo tempo, o sujeito como fenômeno e submisso às leis e regulações gerais reconhecidas na e para o mundo natural fenomênico.

Se a crítica, porém, não errou ensinando a tomar o objeto numa dupla significação, a saber, como fenômeno ou como coisa em si mesma; se a dedução dos seus conceitos do entendimento é certa, se por conseguinte o princípio de causalidade só incide sobre coisas tomadas no primeiro sentido, ou seja, na medida em que objetos da experiência, e se as mesmas coisas tomadas contudo na segunda significação não se lhe acham submetidas, então exatamente a mesma vontade será pensada no fenômeno (nas ações visíveis) como necessariamente conforme à lei natural e nessa medida não-livre, e por outro lado ainda assim, enquanto pertencente a uma coisa em si mesma, pensada como não submetida à lei natural e portanto como livre, sem que com isso ocorra uma contradição. (p. 43-44)

Kant considera aqui encerrada a fórmula máxima para o procedimento Crítico diante da questão Metafísica. Sua tarefa de encerrar os limites e anunciar as possibilidades lhe parece a contribuição necessária à toda filosofia ulterior e à toda investigação que se pretenda válida no campo da Metafísica. No reconhecimento dessas condições, a Metafísica encontra então um método, pelo qual pode ampliar devidamente seu conteúdo e suas considerações. Não há aqui uma recusa da Metafísica, nem o anuncio de seu fim, muito pelo contrário, Kant pretende a inauguração de um campo de investigação que deve seguir preceitos científicos, quer dizer, tomar

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toda a consideração crítica na exposição sistemática de uma completa e ampla fundamentação da essência. Assim é que afirma não a recusa de uma exposição dogmática, mas o dogmatismo no emprego de conceitos e métodos para investigação Metafísica; conceitos estes que só caberiam à ordem fenomênica, ao campo da natureza.

A Crítica não é contraposta ao procedimento dogmático da razão no seu conhecimento puro como ciência (pois esta tem que ser sempre dogmática, isto é, provando rigorosamente a partir de princípios seguros a priori), mas sim ao dogmatismo, isto é, à pretensão de progredir apenas com um conhecimento puro a partir de conceitos (o filosófico) segundo princípios há tempo usados pela razão, sem se indagar contudo de que modo e com que direito chegou a eles. Dogmatismo é, portanto, o procedimento dogmático da razão pura sem uma crítica precedente da sua própria capacidade. Essa oposição da crítica ao dogmatismo não deve por isso defender a causa da superficialidade verbosa, sob o pretenso nome da popularidade, ou mesmo a do ceticismo, que liquida sumariamente toda a Metafísica; a Crítica é antes a instituição provisória necessária para promover uma Metafísica fundamental como ciência que precisa ser desenvolvida de modo necessariamente dogmático e sistemático segundo a mais rigorosa exigência, portanto escolástica (não popular); pois essa exigência à Metafísica é indispensável, já que se compromete a realizar sua obra de modo inteiramente a priori, portanto para a plena satisfação da razão especulativa. Na execução do plano prescrito pela Crítica, isto é, no futuro sistema da Metafísica, temos pois que seguir algum dia o método rigoroso do famoso Wolff, o maior de todos os filósofos dogmáticos. Este deu pela primeira vez o exemplo (e com este exemplo foi o criador do espírito de meticulosidade na Alemanha que até agora ainda não se extinguiu) como se deve tomar o caminho seguro de uma ciência estabelecendo princípios legítimos determinando claramente os conceitos, buscando rigor nas demonstrações, evitando saltos temerários em conclusões. Justamente por isso ele estaria precipuamente apto a colocar uma ciência como a Metafísica nesse caminho caso lhe tivesse ocorrido preparar antes o campo mediante crítica do órgão, ou seja da própria razão pura...(KANT, 1999, p. 47- 48)

Nova, essa proposição Metafísica será o norte de toda a ulterior proposição filosófica na Alemanha de início do século XIX. As questões concernentes ao tratamento da essência farão referência, de uma forma ou de outra, aos passos dados aqui com a Crítica da Razão Pura. Alguns problemas, no entanto, se destacam dentro da proposta de Kant e estes mesmos serão futuramente enfrentados por ele na elaboração de uma terceira Crítica, a do Juízo.

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