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CAPÍTULO I: O DEBATE ONTOLÓGICO-METAFÍSICO NA PASSAGEM DO SÉCULO XVIII PARA O

2. Kant como ponto de partida para a discussão Metafísica no final do século XVIII e início do século

2.1. As intuições puras de espaço e tempo

Temos que intuição é a capacidade de perceber e reconhecer determinados estímulos sensíveis de maneira imediata, sem intermediação por conceitos. Essa consideração da intuição por parte de Kant certamente remonta a todo debate iniciado por Locke e estendido pelos empiristas e estetas britânicos, assim como pelos estetas alemães. Como veremos, trata-se de admitir e reconhecer o papel dos chamados sentidos inferiores na percepção e captação do mundo. Entretanto, como Kant pretende justamente fugir das conseqüências céticas estabelecidas por Hume, logo procurará examinar o que de geral há nessas intuições sensíveis, chamando a sua busca de Estética Transcendental dos Elementos. Essa parte da Crítica da Razão Pura pretende mostrar o a priori da intuição sensível, em outras palavras, as “formas puras da intuição sensível” (KANT, 1999, p. 72). Estas formas puras da intuição são o espaço e o tempo. Polêmica, essa visão deixa de conceber espaço e tempo como conceitos empíricos, uma vez que se generalizam como forma de obtenção de qualquer estímulo sensível. Assim, o espaço será a conformação a

priori de todo o estímulo produzido pelos sentidos externos (aqueles pelo que se reconhece na

mente algo fora de nós) e o tempo a conformação a priori de todo o estímulo produzido pelos sentidos internos (aqueles pelo que se reconhece pela mente a ocorrência de mudanças a partir da referência interna).

Em Kant, o espaço é a condição de toda percepção dos sentidos chamados externos, tendo em vista que para a consideração de um algo fora ou sua medida de representação intuitiva na mente pressupõe-se já a dimensão de espaço. O espaço não é captado como estímulo sensível, não é um dado do mundo recolhido à mente e abstraído sob a forma de conceito ou ordenação espacial, antes disso, qualquer referência externa ao sujeito pressupõe uma noção intuitiva de espaço, pelo que pode separar a si do resto e, dessa forma, apreender em termos espaciais a sua

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experiência enquanto ser vivente. Espaço é, pois, um a priori, estendendo-se de maneira absoluta a toda intuição sensível do homem. Segundo Kant: “O espaço é representado como uma magnitude infinita dada. (...) A representação originária do espaço é, portanto, intuição a priori e não conceito”. (KANT, 1999, p. 74)

O tempo, por sua vez, é a condição de toda a percepção dos sentidos denominados internos, haja vista que nenhum estímulo sensível seria passível de acomodação no mesmo momento (simultaneidade) ou de seguir-se um ao outro (sucessão) não fosse já a sua pressuposição enquanto a priori. Assim como o espaço, não se trata de um reconhecimento empírico gerador de um conceito tal como o de tempo, mas justamente o inverso, é a existência a

priori do tempo (enquanto intuição pura) no sujeito que possibilita toda e qualquer consideração

dinâmica do mundo. Desse modo, a possibilidade de um mesmo objeto ou sua consideração conceitual conseguir abarcar contraposições, antagonismos e mudanças consiste em um tal objeto ou conceito ser já posto a partir da medida intuitiva de tempo, pelo que sem ele qualquer variação ou mesmo mudança de estado seria impossível.

Levando em consideração essa propriedade do espaço de fazer referência ao sentido externo e o tempo de fazer referência ao sentido interno, muito comumente se confunde o espaço com o objetivo e o tempo com o subjetivo. Todavia, devemos deixar claro que isso é um erro, na medida em que objetivo em Kant é tudo aquilo que é fornecido pelas determinações da intuição e entendimento puros, ao passo que subjetivo é justamente aquilo que aparece como contingente, povoando o conteúdo da representação e variando, dessa forma, de acordo com a impressão sensível. Assim, considerar o tempo como um elemento subjetivo, em termos kantianos, é não compreender que ele é intuição PURA, e não o conteúdo variável e contingente da intuição sensível. Somente nesse sentido é que a estética transcendental é a “ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori.” (KANT, 1999, p. 72)

Em contrapartida, podemos considerar tanto espaço como tempo como reais e, ao mesmo tempo, ideais; o que delimitará efetivamente o campo de todo conhecimento possível acerca da realidade.

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Nossas exposições ensinam, portanto, a realidade isto é, a validade objetiva do espaço no tocante a tudo o que pode nos ocorrer externamente como objeto, mas ao mesmo tempo a idealidade do espaço no tocante às coisas quando ponderadas em si mesmas pela razão, isto é, sem levar em conta a natureza da nossa sensibilidade. Logo, afirmamos a realidade empírica do espaço (com vistas a toda possível experiência externa) e não obstante a sua idealidade transcendental, isto é, que ele nada é tão logo deixemos de lado a condição da possibilidade de toda experiência e o admitamos como algo subjacente às coisas em si mesmas. (KANT, 1999, p. 76)

E:

Nossas afirmações ensinam, portanto, a realidade empírica do tempo, isto é, a validade objetiva com respeito a todos os objetos que possam ser dados aos nossos sentidos. E uma vez que nossa intuição é sempre sensível, na experiência jamais pode nos ser dado um objeto que não estiver submetido à condição do tempo. Contrariamente, contestamos ao tempo todos reclames de realidade absoluta, como se, também sem tomar em consideração a forma de nossa intuição sensível, fosse absolutamente inerente às coisas como condição ou propriedade.

Nisso consiste, portanto, a idealidade transcendental do tempo. (KANT, 1999, p. 80)

Essas duas passagens encerram a explicação geral acerca de tempo e espaço na Crítica da

Razão Pura. Com relação à realidade do espaço e do tempo: estas intuições puras são

responsáveis por tudo o que é dado para nós como mundo real, residindo aí seu caráter de objetividade e realidade. Tendo em vista que todo conhecimento só pode ser dado mediante a intuição sensível e que esta, por sua vez, é regulada pelo a priori de espaço e tempo, temos que tudo aquilo que se apresenta como objeto passível de conhecer tem de se apresentar igualmente sob as determinações de espacialidade e temporalidade, motivo pelo qual a realidade vivida e conhecida não pode ser destituída de espaço e de tempo. Assim, a intuição pura delimita o campo do real tomado então como fenomênico, ou seja, não apresentado como coisa-em-si, mas sempre e tão somente pela apreensão e imposição espaço-temporal a priori. Com relação à idealidade do espaço e do tempo: estas intuições puras são elementos transcendentais que, embora determinem toda a experiência fenomênica, não são elas mesmas resultados da experiência, mas são as condições a priori de sua existência. A idealidade de tempo e espaço seria, portanto, estabelecida pela sua existência para além do campo fenomênico, uma vez que não se submete a qualquer variação e imposição sensível, mas, antes disso, as determinam.

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Encerramos nessa caracterização de tempo e espaço na Crítica da Razão Pura de Kant o campo possível de todo conhecimento humano, bem seja, o campo dos fenômenos, este que não é pura ilusão, posto que é uma representação pelos aparatos a priori de espaço e tempo, e também não é a coisa-em-si, posto que é sempre dado em um limite pré-determinado, do qual não pode escapar e para o qual parece irremediavelmente inacessível qualquer forma de conhecimento efetivo sobre a coisa nela mesma.

Quisemos, portanto, dizer que toda a nossa intuição não é senão a representação de fenômeno: que as coisas que intuímos não são em si mesmas tal qual as intuímos nem que suas relações são em si mesmas constituídas do modo como nos aparecem e que, se suprimíssemos o nosso sujeito ou também apenas a constituição subjetiva dos sentidos em geral, em tal caso desapareceriam toda a constituição, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e mesmo espaço e tempo. (...) O que há com os objetos em si e separados de toda esta receptividade da nossa sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido. (KANT, 1999, p. 83)

O primeiro passo foi dado na consideração das possibilidades e limites de todo conhecer, na medida em que este só pode encerrar-se sob a determinação espaço-temporal. Cabe agora investigar o que a faculdade de entendimento estabelece ou produz a partir dessas intuições e, o mais importante para este capítulo, perceber o que pode afinal o homem na tarefa de buscar e conhecer a realidade última das coisas, a coisa-em-si requerida pela investigação Metafísica.