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CAPÍTULO I: O DEBATE ONTOLÓGICO-METAFÍSICO NA PASSAGEM DO SÉCULO XVIII PARA O

2. Kant como ponto de partida para a discussão Metafísica no final do século XVIII e início do século

2.2. O entendimento e a esfera dos fenômenos

Da mesma maneira que toda intuição sensível apresenta uma forma geral de apreensão pela pura percepção espaço-temporal, em Kant os conceitos que encerram as ferramentas de todo o conhecimento do mundo são produzidos e organizados mediante o a priori do entendimento. O fundamento primeiro do entendimento é estabelecer de maneira espontânea conceitos puros, assim como faz a intuição pura em relação à sensível. Os conceitos, entretanto, nunca são uma representação do objeto, como é a intuição, mas sempre são fornecidos a partir de uma síntese com uma intuição dada ou mesmo outro conceito. Desse modo, os conceitos sempre devem dizer respeito à experiência possível, logo, devem estar dentro da esfera de intuição pura de espaço e tempo. Na identificação dos conceitos puros do entendimento, tarefa de quem procura o a priori

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ou o não contingente no conjunto de produção das representações, reside justamente a chave de toda organização da natureza, posto que o múltiplo empírico oferecido pela intuição encontra estes conceitos puros e necessariamente aparece para o sujeito como um dado do fenômeno, como sua determinação no conceito. Os conceitos puros do entendimento são as categorias do entendimento, ou seja, o universal ao qual se liga sinteticamente todo o múltiplo da natureza enquanto fenômeno (enquanto intuição espaço-temporal). Encerradas em quantidade, qualidade, relação e modalidade, as categorias do entendimento determinam o que será para o conhecimento todo o objeto intuído mediante espaço e tempo. Como somente são possíveis duas formas de conhecimento de um objeto, bem dizer, intuição ou conceito, temos que toda e qualquer experiência para nós ou é mera intuição ou se refere necessariamente às categorias do entendimento, haja vista que são as condições gerais de todo conceituar. Assim, quando pensamos na intuição do múltiplo da natureza temos de admitir que a intuição mesma não é responsável pela ligação dessas partes intuídas, mas, ao contrário, que cabe à faculdade de entendimento conectar as intuições em representações conceituais, postas sempre pelas determinações de quantidade, qualidade, relação e modalidade, assim como toda a intuição sensível somente pode ser referida e enquadrada dentro do a priori de espaço e tempo.

Ora, o modo como as leis dos fenômenos da natureza têm que concordar com o entendimento e sua forma a priori, isto é, com sua faculdade de ligar o múltiplo em geral, não é mais estranho do que o modo como os próprios fenômenos têm que concordar com a forma da intuição sensível a priori. Com efeito, nem as leis existem nos fenômenos, mas só relativamente no sujeito ao qual os fenômenos inerem na medida em que possui entendimento, nem os fenômenos existem em si, mas só relativamente àquele mesmo ente na medida em que possui sentidos. (KANT, 1999, p. 136)

Nesse processo de ordenação e determinação do múltiplo da natureza mediante categorias do entendimento é determinado, também, o estabelecimento da apercepção, ou autoconsciência, visto que aqui não se trata mais de somente intuir os objetos, mas de estabelecer ligações e ordenações que se agrupam como pensamento de um eu que se esclarece mediante a consideração de que por ele e nele se reúnem as representações na produção de um conhecimento. Aqui a assertiva “penso logo existo” assume legitimidade, uma vez que, para Kant, a colocação de uma ordenação do múltiplo da intuição pelo entendimento pressupõe um eu sob o qual tudo se agrupa e pelo que tudo é determinado.

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Portanto, o primeiro conhecimento puro do entendimento, sobre o qual se funda todo o seu restante e que ao mesmo tempo é inteiramente independente de todas as condições da intuição sensível é o princípio da unidade sintética originária da apercepção. (KANT, 1999, p. 124)

Em termos metafísicos, trata-se de atribuir ao sujeito o elemento transcendental da intuição e do entendimento, uma vez que, mesmo que apareça no campo dos fenômenos como representação entre representações ou intuição entre intuições, reúne agora, pela necessidade a

priori das categorias do entendimento, toda a associação da intuição na elaboração do

pensamento em um eu. Este eu, revelado enquanto fenômeno, oferece todavia uma unidade de representação que só pode ser dada a priori e, portanto, há na própria representação e reconhecimento de si no fenômeno a necessidade de já se admitir como transcendental. De uma forma mais simples, pretende Kant que ao colocar qualquer múltiplo intuído como conceito se afirma uma consciência sob a qual esse conceito se forma; como o conceito exige o agrupamento da intuição pura e como ele mesmo é determinado pelas categorias a priori do entendimento, temos que o homem carrega em si esse a priori e é, nessa perspectiva, sujeito transcendental.

2.3. Os juízos determinantes e as possibilidades judicativas

Vimos acima que a intuição pura é a determinação a priori sob a qual se enquadra todo objeto da intuição sensível; da mesma forma, vimos que conceitos puros do entendimento são nada mais do que as categorias pelas quais toda a intuição do múltiplo da natureza se conforma em termos de quantidade, qualidade, relação e modo. Os conceitos, entretanto, surgidos a partir da faculdade de entendimento e aparecendo como representação de representações (posto que derivam ou da intuição ou de outros conceitos) têm como função trabalhar como ferramentas no estabelecimento dos juízos, uma vez que fornecem a representação pela qual se ligam a outras intuições e conceitos. Assim é que o juízo se caracteriza pela unidade de representações mediatas e não a partir do puro intuir, visto que os conceitos conseguem reunir diversas intuições e, algumas vezes, outros conceitos lhe são subordinados. O pensamento surge como o resultado dessa interação de conceitos mediante os juízos. Os juízos que Kant pretende tratar na Crítica da

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Razão Pura, posto que coloca a tarefa de conhecer o que nos é fornecido pelo mundo em termos

gerais a priori, são os juízos chamados de sintéticos a priori (determinantes).

De um modo geral, juízos a priori ou analíticos seriam aqueles em que sujeito (semântico) e predicado apresentam identidade, ou seja, são meros desdobramentos analíticos um do outro, em geral, outras formas de representar o mesmo. Juízos sintéticos, ao contrário, são aqueles em que o sujeito (semântico) e o predicado não possuem identidade, de modo que a associação entre ambos se dá por acréscimo ou acumulação, posto que se diferenciam e são ligados unicamente no estabelecimento do juízo proposto e não como coisas em identidade independente na experiência. Logo, os juízos sintéticos a priori seriam a forma de reunir na produção de um juízo tanto a acumulação em vista da experiência e falta de identidade entre sujeito e objeto quanto a de reconhecer uma universalidade comungada entre os conceitos. Cabe aos juízos determinantes, portanto, subsumir as intuições e conceitos sob as regras determinantes do entendimento e oferecer um a priori à ligação sintética.

No objetivo de estabelecer uma Metafísica, caminha Kant na elucidação do caráter transcendental da faculdade judicativa, exprimindo a possibilidade de utilização desse procedimento no esquematismo transcendental, ou seja, na associação do conteúdo empírico sob as regras gerais do entendimento puro (categorias). Com o esquematismo transcendental, Kant expõe como a partir das determinações gerais da categoria do entendimento deve ser pensada toda a natureza e aquilo que reconhecemos como suas propriedades ou características. Quer dizer, se esclarece unicamente que toda a condição, ordem e relação estabelecida na natureza enquanto campo fenomênico diz respeito à aplicação das quatro categorias gerais do entendimento ao conteúdo da percepção. Nesse sentido, afirma que o conhecimento do mundo enquanto fenômeno só é dado dentro desse limite da percepção e pela subsunção mediante as categorias do entendimento, fundando-se aí os princípios gerais da natureza. No debate metafísico, Kant adverte que essa elucidação do esquematismo transcendental joga por terra os argumentos idealistas então produzidos.

[...] aonde alcança a percepção e o que dela depende segundo leis empíricas, até lá chega também nosso conhecimento da existência das coisas. Se não começarmos da experiência ou se não procedermos segundo leis da interconexão empírica dos fenômenos, nos vangloriamos em vão de querer adivinhar ou procurar a existência de qualquer coisa. Mas o “idealismo” faz uma poderosa objeção a estas regras para provar mediatamente a existência e é naturalmente aqui que se faz necessária a refutação do mesmo. (KANT, 1999, 192)

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O problema Metafísico que se pretende solucionado aqui diz respeito à consideração de um idealismo tomado a partir da negação geral do mundo. Segundo Kant, esse idealismo pode se estabelecer de duas formas: ou um idealismo racional como o de Descartes ou um idealismo dogmático, como o de Berkeley.

No idealismo de Berkeley parte-se de uma crítica à validade do conteúdo oferecido pela percepção. Para ele, olhamos para as coisas, sentimos e somos impressionados por uma série de variados elementos, de cores, móveis e extensas criaturas que nos fazem crer em algo independente, alheio mesmo ao entendimento, à capacidade disposta ao homem de perceber as coisas no mundo. Mas no instante em que afirmamos essa possibilidade, quando falamos de uma entidade que não percebe, que existe por si mesma, independente de qualquer impressão que tenhamos dela, incorremos, segundo ele, numa completa contradição. Isso porque para expressar essa possibilidade é preciso concebê-la, afirmar sua existência mediante idéias e não há outro modo de fazê-lo. Há aqui uma recusa do mundo enquanto coisa em si ou mesmo como fonte de qualidades primárias, como acontecia em Locke. Ainda segundo Berkeley, ainda que não fosse essa contradição suficiente, ainda que nos encantássemos indefinidamente com os objetos e disséssemos que há algo a ser percebido, que nos toca, que afeta nosso ser, e que, consequentemente, devem existir de maneira independente, não poderíamos considerá-los existentes em si mesmos. Ora, seria possível ao cego cogitar a existência das cores? Seria possível sentir uma forte martelada no dedo não fosse o nosso tato? Poderia, enfim, qualquer impressão nos tocar senão mediante os sentidos ou pela percepção que temos das coisas? A resposta é negativa, nada pode nos ser dado sem o ser ativo do espírito, responde Berkeley. O espírito, responsável pelo entendimento, é um ser ativo, que guia o pensamento e as impressões adquiridas da maneira que lhe cabe como fonte de todo movimento e mudança das idéias; é o guia de tudo que nos toca os sentidos. Entretanto, o entendimento, tomado como esta capacidade de perceber, é independente da vontade, é uma condição própria do homem, do mecanismo que opera nele uma ordem, uma imposição dada por sua condição de existência. Não podemos, é evidente, escolher o que nos toca o entendimento, nem esquivarmo-nos diante dele, porque é dada esta condição por uma ordenação, uma vontade alheia a nossa, em uma palavra, por Deus.

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[...] seja qual for o meu poder sobre os meus pensamentos, as idéias percebidas pelos sentidos não dependem por igual da minha vontade. Quando abro os olhos de dia não posso escolher se verei ou não, nem determinar os objetos particulares que se me apresentam à vista; como para o ouvido e para os outros sentidos as idéias nelas impressas não são criaturas da minha vontade. Há, portanto, alguma outra vontade ou espírito que os produz. (BERKELEY, 1984, p. 18)

Para Berkeley, é assim que nos são dadas as leis da natureza, manifestações regulares percebidas por nossos sentidos, construídas na experiência pelo curso ordinário de nossas impressões. Nas leis da natureza não fala a voz de uma matéria independente, mas o próprio Criador, único ser capaz de ordenar e conjugar tamanha diversidade sob princípios tão regulares. Os objetos chamados reais são sua ordem, a apresentação do divino na realização de todo o existente. Doravante, podemos conceber estes objetos somente por idéias, pelas impressões limitadas que nos cabem, de modo que sejam idéias da imaginação, ou retiradas dessa experiência portadora do divino, não passam por outro caminho senão o da nossa percepção. Concebemos, dessa maneira, na imperfeição e limite que nos cabe, tanto o poder do Criador como nossas próprias ideias. A resposta idealista aqui, segundo a filosofia kantiana, é dogmática, uma vez que concede à natureza uma ordem emprestada do divino e a admite como princípio supremo inconteste, fundador da realidade. Não há uma atribuição crítica da ordem ou da comunidade das coisas, direcionadas então ao além mundo, a Deus, estabelecido aqui como conceito e empregado como verdade última e inconteste.

Com o idealismo de Descartes o problema é outro, pois se faz mister provar que qualquer juízo estabelecido ou pensamento constituído é em verdade tributário da experiência, não um puro pôr assertivo de uma “res cogita” à parte de uma “res extensa”. Ora, é justamente o que prova todo o esquematismo transcendental de Kant, na medida em que todo e qualquer conhecimento, ainda que de si mesmo, pressupõe e reconhece a existência de uma dada experiência, mesmo que posta e reconhecida, ela mesma, como fenomênica e dependente de um aparato a priori transcendental. O pensamento não é uma substância pura e independente do mundo, mesmo a substância só pode ser reconhecida, a partir do esquematismo, como proposição sintética a priori. Assim, Kant erige o teorema que refuta essa consideração idealista cartesiana: “A simples consciência, mas empiricamente determinada, de minha própria existência prova a

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existência de objetos no espaço fora de mim.” (p. 193). Expondo o papel do esquematismo transcendental na elucidação do teorema, Kant nos diz:

Estou consciente da minha existência como determinada no tempo. Toda a determinação temporal pressupõe algo permanente na percepção. Mas este permanente não pode ser algo em mim, pois precisamente minha existência no tempo pode ser pela primeira vez determinada por este permanente. Portanto, a percepção deste permanente só é possível por uma coisa fora de mim e não pela mera representação de uma coisa fora de mim. Por conseqüência, a determinação de minha existência no tempo só é por meio da existência de coisas reais que percebo fora de mim. Ora, a consciência no tempo está necessariamente ligada à consciência da possibilidade desta determinação temporal, logo também está necessariamente ligada à existência das coisas fora de mim como condição da determinação temporal, isto é, a consciência de minha própria existência é simultaneamente uma consciência imediata da existência de outras coisas fora de mim. (p. 193)

Há nessa elucidação kantiana uma importante conseqüência para a consideração Metafísica, a saber: “que o entendimento só pode fazer dos seus princípios a priori ou de todos os seus conceitos um uso empírico e jamais um uso transcendental” (KANT, 1999, p. 203). Ora, nesse estágio da Crítica kantiana se mostra impossível qualquer aplicação dos princípios invariáveis e a priori do entendimento ao transcendental, de modo que ele só se revela (e só diz respeito) mediante a experiência, mediante o conhecimento empírico.

A Analítica Transcendental possui, pois, este importante resultado, a saber, que o entendimento a priori jamais pode fazer mais do que antecipar a forma de uma experiência possível em geral e, visto que o que não é fenômeno não pode ser objeto algum da experiência, que o entendimento não pode jamais ultrapassar os limites da sensibilidade, dentro dos quais unicamente podem ser-nos dados objetos. As suas proposições fundamentais são meramente princípios da experiência dos fenômenos, devendo o soberbo nome de ontologia – a qual se arroga o direito de fornecer em uma doutrina sistemática conhecimentos sintéticos sobre coisas em geral (por exemplo, o princípio de causalidade) – ceder lugar ao modesto nome de uma simples analítica do entendimento puro. (KANT, 1999, p. 206)

Eis que um problema está instituído no projeto geral de uma elucidação da questão Metafísica: como falar em uma apresentação da Metafísica enquanto ciência se nenhum dos nossos conceitos ou princípios (e nem mesmo possuímos intuição que não seja sensível) podem fazer referência, mediante o entendimento, a qualquer coisa que não pressuponha já o atributo sintético da experiência? Embora pareça se firmar aqui uma derrota definitiva da investigação

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Metafísica, há a apresentação de um negativo que é extremamente relevante, bem dizer, na medida em que reconhecemos os limites da intuição e dos conceitos do entendimento admitimos igualmente a possibilidade e mesmo como conseqüência inevitável um além do fenômeno. Esse além do fenômeno aparece aqui, no limite especulativo da razão, como negativo, na medida em que pressupõe, para além e como fundamento de todo e qualquer limite, a coisa-em-si. De certo que não podemos tocá-la conceitualmente nem exprimir qualquer princípio que lhe diga respeito, não obstante, temos de admitir um tal em si, ainda que para nós incognoscível. Esse negativo se apresenta aqui como o noumenon (ou noumena), em oposição ao phaenomena.

Ora, o nosso entendimento obtém desse modo uma ampliação negativa, isto é, ele não é limitado pela sensibilidade, mas, antes, a limita, enquanto denomina noumena as coisas em si mesmas (não consideradas como fenômenos). Mas ele põe imediatamente limites a si mesmo, que lhe impedem de conhecer o noumena mediante qualquer categoria e, por conseguinte, de pensá-la sob o simples nome de um algo desconhecido. (p. 210)

Ao mesmo tempo em que condena o uso transcendental dos conceitos, Kant estabelece aqui a necessidade imposta pelos limites oferecidos pela intuição e pelo entendimento de considerar a existência de uma coisa-em-si, dada para além de toda forma limitada do fenômeno. É esse caráter negativo do esquematismo transcendental que, ao mesmo tempo, invalida as proposições idealistas anteriores e toma como necessária a existência de uma coisa-em-si para além de todo limite da intuição e da representação do sujeito. Esse caráter meramente negativo deve dar lugar a um caráter positivo para que possa se pensar em uma ciência da Metafísica, esse problema, no entanto, exige uma investigação que passa pela exposição de como é ou não possível conceber qualquer transcendental mantendo os limites oferecidos até aqui.

2.4. Filosofando no limite da razão teórica: o anúncio da razão pura prática e as