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A CONSTITUIÇÃO DA ASSOCIAÇÃO ENQUANTO ESPAÇO DE SOCIABILIDADE

CAPÍTULO 3 – AS NIHONJINKAI – ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE E MEMÓRIAS

3.1 A CONSTITUIÇÃO DA ASSOCIAÇÃO ENQUANTO ESPAÇO DE SOCIABILIDADE

Ao chegarem no Brasil, os japoneses se encontraram em um país de língua, cultura e hábitos distintos dos trazidos de seu país de origem. Portanto, para que pudessem se estabelecer a união do grupo foi a maneira adotada para a superação dessas dificuldades com as diferenças culturais. Tal união se deu inicialmente pelas associações japonesas criadas pelos primeiros imigrantes, que eram informais e, mais tarde, foram formalizadas. Posterior à Segunda Guerra, as associações se consolidaram da mesma forma, mas, dessa vez, por meio da constituição das associações nipo-brasileiras, tal qual na cidade em estudo, que da mesma forma se organizaram em grupo cooperativo, inicialmente de maneira informal e somente em 1978 oficializaram a associação local com CNPJ. As associações foram essenciais no processo de adaptação dos imigrantes japoneses à sociedade brasileira, independente do período em que imigraram, os quais foram vistos no capítulo I.

As associações possuem funcionamento semelhante às do seu país de origem e têm se demonstrado como uma ferramenta de grande valor para a ressignificação dos laços familiares, de amizade e de compadrio. São organizadas em departamentos de senhores (Nihon-jin-kai)75, de senhoras (Fujin-kai) e de jovens (Seinen-kai), estabelecem um formato de integração entre

75 Termo que refere-se também à associação de maneira geral: Nihon-Japão, jin-pessoas, kai- associação.

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os componentes da comunidade japonesa e de manutenção de sua cultura.

Em Santa Maria não foi diferente, como visto no primeiro capítulo. Assim que se estabeleceram, fundaram a associação que, por certo período de tempo, era formalizada e, posteriormente até os dias atuais, voltou a ter formato informal, mas que exerce o mesmo espaço e papel de sociabilidade. Ramos (2000; 2016) trata do assunto:

É a “história das associações voluntárias nas quais há uma sociabilidade formal e organizada dos clubes (de jogos à política) e a história da sociabilidade informal dos costumes, que inclui hábitos, vida privada, família e folclore” (RAMOS, 2000, p. 07). A primeira exige estatutos e organização de associados pagantes. A segunda não prevê estatutos, mantendo-se na informalidade (RAMOS, 2016, p. 137).

Vale lembrar que em Santa Maria, no início da imigração japonesa, todos os departamentos da associação tiveram vez e atuação. Ainda que a segunda e terceira gerações tenham internalizado a cultura brasileira, podiam manter hábitos e costumes japoneses através de seu envolvimento com as atividades das associações de jovens (seinen-kai). O primeiro presidente da seinen-kai em Santa Maria foi o próprio Mitori Kimura, o responsável pela vinda dos japoneses de Uruguaiana.

A associação de jovens na época possuía 35 participantes. Mitori Kimura, que foi o presidente da associação dos jovens por vários anos, abriu um mercado na rua 7 de Setembro e costumava doar verduras para hotéis e restaurantes, afim de “estimular” o consumo, é o que conta o senhor N76. Os hábitos alimentares dos cidadãos santa-marienses se modificaram a partir da chegada dos japoneses na cidade, e, através do cultivo e do comércio de hortifrutigranjeiros, nos mercados abertos pelos japoneses como o Mercado Itaimbé (Imagens 11, 12, 13 e 16), por exemplo, localizado na rua Venâncio Aires, no centro da cidade. Os hábitos alimentares ainda constituem-se como forma de manutenção da identidade. Alimentos e pratos típicos são elementos integrantes da dieta dos japoneses, principlamente dos Issei, mas também de seus filhos e netos. Alguns exemplos são: O Missô, feito somente pela senhora R.I. e vendido aos demais, pois é a única que sabe a receita da pasta de arroz que é ingrediente do Misoshiro77.

Assim como o Missô, o Tofu78 e os doces Doraiaki79 e Manju80 são receitas que somente a primeira geração ainda faz de forma tradicional e são elementos que formam a identidade nipo- brasileira ou nipo-gaúha, e não exigem necessidade de serem confeccionados na associação. No

76 Entrevista concedida em março de 2014. Acervo Memorial.

77 Sopa de Missô, prato típico japonês, servido antes do prato principal. 78 Queijo a base de soja.

79 Doce de pasta de arroz. 80 Doce de feijão.

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entanto, em âmbitos familiar e social, eles compõem os hábitos familiares japoneses.

Imagem 16 – Mercado Itaimbé

Fonte: Acervo pessoal da família Kimura

Para os mais jovens havia também a escola de língua japonesa (Nihongo-gaku) que funcionou durante certo tempo em Santa Maria, assim como em outras colônias, devido à importância dada para:

A manutenção da língua materna, as dificuldades de comunicação com a nova sociedade, os conflitos linguísticos entre os mais velhos e a nova geração, entre pais e filhos, marcam também o fenômeno da imigração. O desejo de ser bilíngue se apresenta como meio de o imigrante se tornar brasileiro e ascender socialmente (OLIVEIRA, 2001, p. 12-13).

De acordo com Oliveira (2001), pode-se inferir que em Santa Maria tenha ocorrido de forma semelhante, para reforçar os laços através das associações. Handa (1987) descreve que a origem das associações de imigrantes japoneses no Brasil ocorreu nos núcleos coloniais, passando a existir nos momentos em que era necessário que os chefes de família se reunissem para a discussão de problemas comuns às famílias. O autor expõe que os primeiros imigrantes japoneses, que não possuíam a intenção de permanecer em solo brasileiro, viveram por certo tempo de modo “provisório” em suas colônias no Brasil.

A Nihongo-gaku em Santa Maria, funcionou na década 70, não durou muito tempo, de acordo com os testemunhos de H. N., S. S. e J. N. Pertencentes à segunda geração, eles contam que eram alugadas salas de aula, aos finais de semana, no Colégio Santa Maria, escola localizada no centro da cidade. Nesse período, não foram tiradas fotografias das aulas, pois a maioria das famílias não possuía máquina fotográfica. No entanto, recordam-se de, aproximadamente, 20 crianças participarem das aulas, que duraram um ano.

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S. S. conta que foram poucas aulas, como gostava muito de ler, aprendeu muito sozinha, lendo Mangás81. Seu irmão mais novo, que aprendeu japonês na Nihongo-gaku e, posteriormente, na década de 90 quando muitos Nisseis daqui foram para o Japão - no chamado fenômeno Decasségui -, foi morar no Japão, onde reside até os dias atuais. Ele teve facilidade em aprender a língua materna de seus pais, e hoje fala fluentemente e convive no Japão como japonês, sem se autoidentificar como brasileiro ou sem o estigma de brasileiro pelos japoneses. O que normalmente não acontece, pois, ao chegar no Japão, os nipo-brasileiros já são reconhecidos como brasileiros e o sentimento de ser japonês no Brasil se altera em ser brasileiro no Japão82.

De forma que foi somente no período posterior à Segunda Guerra Mundial que os imigrantes, chegados no primeiro período imigratório83, determinaram estabelecer-se no Brasil, o que Handa (1987) chama de segunda terra natal para eles e seus descendentes. O fato de não poderem voltar ao Japão, local no qual os seus filhos criados no Brasil teriam problemas de adaptação, fizeram com que o imigrante japonês se convence-se a criar raízes no Brasil, e também, em função de que alguns imigrantes, acabavam por morrer nas colônias e então teriam entes queridos e ancestrais enterrados no Brasil. Por isso, a criação das associações e das escolas de língua japonesa foram sobremaneira importantes, inclusive nos momentos de cerimônias e funerais (SILVA, 2013).

De maneira semelhante, ocorreu a permanência em Santa Maria, pois no período em que chegaram também pretendiam ficar pelo menos cinco anos, juntar dinheiro e voltar ao Japão. Por isso, Soares e Tomoko (2008) e Silva (2013) inferem que eles possuíam uma mentalidade Pré-Guerra. No entanto, acabaram fincando raízes a medida que o tempo passava, que os filhos cresciam e que se adaptavam. Isso se justifica, quando nas últimas eleições da Nihonjinkai, em janeiro de 2019, ainda somente japoneses nascidos no Japão podiam/podem votar ou ser votados e o corpo diretivo da associação ainda é composto por Isseis, tal qual os modelos de associações do período Pré-Guerra. A diferença, no entanto, é que atualmente a presidente é uma mulher. A senhora S. foi eleita presidente pela segunda vez consecutiva. Ela conta que as mulheres somente passaram a compor o corpo diretivo há, aproximadamente, cinco anos e hoje

81 O Mangá (em japonês: 漫画, manga, lit. “história em quadrinhos”), é a palavra usada para designar história em quadrinhos feita no estilo japonês. No Japão, o termo designa quaisquer histórias em quadrinhos.

82 Conforme estudo sobre identidade Decasségui de Beltrão e Sugahara (2006) que diz: “A maior parte, embora apresente um fenótipo de nativo japonês e possua ancestrais japoneses razoavelmente próximos, não se comporta mais como japonês. Esta aparente contradição entre o ser e o parecer gera conflitos de adaptação dos migrantes e de aceitação pelos nativos. Este conflito de identidade já existia no Brasil, mas a ida ao Japão só reforça o sentimento de não pertinência a este país”.

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elas são a maioria na diretoria, o que pode ser visto no fato de somente o cargo de vice- presidente ser ainda ocupado por um homem, o senhor K.

Voltando ao período Pré-Guerra, em Handa (1987) encontra-se que, dentro das colônias, tentou-se reproduzir o modo de vida japonês, o que Shibata (2012) chama de “quistos linguísticos” e Seyferth (2000) de “enquistamento étnico”, através da criação de escolas japonesas e das associações dentro das colônias. Para tais associações, estabeleceu-se a divisão dos integrantes, conforme a faixa etária e/ou sexo, em setores ou departamentos. Os grupos mais comuns nas associações são os de Nihon-jin-kai, formado por senhores, Fujin-kai, que é a associação de senhoras e o Seinen-kai, composto pelo grupo dos mais jovens. Não obstante, as associações de jovens podiam surgir inclusive antes das de senhores, pois eram aos jovens que atribuíam a responsabilidade de organizar as gincanas (Undokai) e confraternizações (Shinbokukai) da comunidade (Imagens 17, 18 e 19).

Imagem 17 – Gincana (Undokai)

Fonte: Acervo pessoal da família Hayshasida

Imagem 18 - Undokai

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Imagem 19 – Japoneses fazendo churrasco para o almoço no Undokai

Fonte: Acervo pessoal da família Nishino

Em função da necessidade de se reunirem aproveitavam a conveniência para se reconhecer, conviver e criar laços de amizade (HANDA, 1987). A imagem 19 representa bem a identidade nipo-gaúcha, em eventos de cultura japonesa, pois um dos pratos principais era o churrasco.

Esse contexto de criação das associações se deu de forma semelhante nos diferentes Estados brasileiros, onde os japoneses se estabeleceram. A principal diferença no estudo de caso de Santa Maria é que não se configura em uma colônia tradicional, conforme Hirata (2006)84, pois não residem próximos uns dos outros, mas o cerne da associação é o mesmo, tal qual o conceito de colônia de Inagaki (2002), que se refere aos traços diacríticos comuns aos membros da colônia. Outra diferença importante em relação às associações de outros Estados é que, nesse caso, os imigrantes chegaram no período pós Segunda Guerra.

Um dos aspectos mais mencionados pelos imigrantes entrevistados foi a realização dos

Undokais, posteriormente outros eventos entraram na agenda da associação, inclusive àqueles

que se referem as cerimônias fúnebres, bem como outras comemorações da comunidade, como, por exemplo, o cinquentenário da imigração em Santa Maria, comemorado em 2008. Portanto, as comemorações e o espaço de sociabilidade são características das associações nipônicas, assim como de outros grupo étnicos.

Arruda afirma que as comemorações ou celebrações “são manifestações vivas da história. Mas são, também, dimensões explícitas do lembrar e do esquecer” (1999, p. 43). Catroga ainda adiciona aos demais autores a ideia de que que as comemorações, festejos ou celebrações foram “criadas para serem vividas como manifestações simbólicas em que se

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reafirma a continuidade histórica dos povos e da humanidade” (...), sendo “uma forma de luta pela reprodução de uma nova memória” (CATROGA, 2005, p. 109).

O cinquentenário da imigração japonesa, comemorado em 2008, com a participação da

nihonjinkai, colaborou com o livro comemorativo de Soares e Gaudioso (2008), que é uma

exposição comemorativa, entre outras atividades. Há dez anos, o corpo diretivo ainda era composto por homens e os imigrantes eram portadores de mais saúde e disposição, conforme fala da senhora S., atual presidente.

A Sociedade Nipo-brasileira de Santa Maria pode ser dividida em três momentos: ascenção (1958-1978), estabilidade (1978-1990) e decadência (1990-2019). Esses períodos foram trabalhados no capítulo II. No entanto, é importante ressaltar aqui que durante o primeiro período, principalmente e conforme Soares e Gaudioso (2008), os japoneses participavam ativamente da vida social da cidade. Um exemplo muito lembrado ainda hoje pelos imigrantes é a participação na Feira da Amizade, evento organizado pelo Rotary Club de Santa Maria, que ocorreu na Praça Saldanha Marinho entre os anos de 1968 a 1977 (Imagens 18, 19, 20, 21 e 22). Nessa feira, todos os grupos étnicos da cidade tinham uma “banca” onde podiam comercializar artesanato, gastronomia e fazer apresentações culturais (Imagens 20, 21, 22, 23 e 24).

Imagem 20 – Jornal A Razão, de 11 dez. 1970.

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Imagem 21 – Jornal A Razão, de 19 dez. 1973.

Fonte: Arquivo Municipal de Santa Maria

Imagem 22 – Feira da Amizade, em 06 abr. 1977

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Imagem 23 – Feira da Amizade

Fonte: Acervo pessoal da família Nishino

Imagem 24 – Feira da Amizade

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Todos os eventos e conceitos apresentados estão ligados as atividades de uma associação, tanto nas comemorações quanto nas cerimônias fúnebres ou nos momentos de ajuda mútua e ainda de confraternização e criação dos laços de amizade e manutenção da cultura de origem. Em entrevista, o senhor I. conta que os eventos como Undokai e outras comemorações foram realizados mesmo dentro do navio, durante a viagem (Imagens 5, 6, 7 e 8). Com relação as dificuldades enfrentadas no navio, disse ter emagrecido muito e, sobre se havia eventos durante a viagem diz: “Sim, como festival de Linha do Equador. As pessoas queriam me jogar

na piscina mas eu pedi para não me colocarem porque eu estava gripado”85. Esse festival ocorreu em comemoração à passagem pela linha do equador, aos moldes do Undokai (Imagem 8).

Com relação a seleção de eventos e de lembranças que são elencados pelos sujeitos de pesquisa durante suas narrativas, observa-se uma “vontade de memória”, de manter as lembranças da sua terra natal e de seus ancestrais e costumes sempre vivos. A associação, mesmo que informalmente, atua como “lugares onde a memória se cristaliza e se refugia”. As memórias se repetem, ainda que não organizadas, o que corrobora a ideia de Candau (2011) de que “um enunciado que membros de um grupo vão produzir a respeito de uma memória supostamente comum a todos os membros do grupo” (p. 24). As Feiras da Amizade e os

Undokai são lembrados por todos ainda hoje numa memória que se manifesta forte, tal qual

Candau (2011) expõe.

O Undokai, é um dos eventos mais lembrados pela segunda geração em Santa Maria, pois, nas décadas 1970 e 1980, eles eram realizados anualmente e conhecidos em todo o Estado do RS. Muitos imigrantes japoneses de Porto Alegre, Passo Fundo e outras cidades do Estado vinham participar da gincana (Imagens 25 e 26). Nesse período, a liderança da associação ainda estava sob os cuidados da família K. O evento que acontecia no bairro Pé de Plátano, onde moravam algumas famílias japonesas na época, atraia os Nikkei de diversas cidades, que chegavam no dia anterior e ficavam hospedados nas casas dos japoneses. Ressalta-se que as décadas de 70 e 80 podem ser consideradas como um período de estabilidade da Sociedade Nipo-Brasileira, tendo em vista que, nesse período, estavam relativamente integrados à comunidade local, mas mantinham seus hábitos e costumes através de eventos promovidos pelos imigrantes, para imigrantes e descendentes, mas com convidados brasileiros.

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Imagem 25 - Undokai

Fonte: Acervo pessoal da família Kimura.

Imagem 26 – Undokai

Fonte: Acervo pessoal da família Kimura.