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CAPÍTULO 2 – A MEMÓRIA E O SENTIMENTO DE JAPONESIDADE ENTRE OS

2.2 AS MEMÓRIAS FAMILIARES DO PAÍS DE ORIGEM

Para falar sobre algumas memórias familiares e do país de origem e ancorada nos autores mencionados, é necessário entender certos conceitos como o de memória e identidade. Na intenção de reconstruir a memória e a identidade de certo grupo ou momento histórico, por vezes, utiliza-se da memória dos “outros”, de maneira que os episódios, fatos e ocorrências que podem ter sido esquecidos, sejam recompostos e façam relembrar fatos e momentos únicos do passado. Utiliza-se, muitas vezes, o que outros sujeitos recordam, para ajudar a reconstituir um espaço-tempo que foi esquecido com o passar dos anos.

Halbwachs, salienta que:

Não estamos ainda habituados a falar da memória de um grupo, mesmo por metáfora. Parece que tal faculdade não possa existir e durar a não ser na medida em que está ligada a um corpo ou a um cérebro individual. Admitamos, todavia que haja, para as lembranças, duas maneiras de se organizar e que possam ora se agrupar em torno de uma pessoa definida, que as considere do seu ponto de vista, ora distribuir-se no interior de uma sociedade grande ou pequena, de que elas são tantas outras imagens parciais. Haveria então memórias individuais e, se quisermos, memórias coletivas. Em outros termos, o indivíduo participaria de duas espécies de memória (1990, p. 53).

41 No verão, em algumas residências era oferecido “suco integral de uva” gelado, tradicional da imigração italiana, a proximidade com a Quarta Colônia de Imigração Italiana influencia os hábitos regionais.

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Deve-se salientar, contudo, que toda memória é seletiva, é possível que os sujeitos, por algum motivo, façam questão de esquecer ou de relembrar determinados fatos ocorridos.

Para este estudo, faz-se importante conhecer a memória coletiva e a memória individual, e que uma se utiliza ou se favorece da outra. A memória individual, se refere à fatos que foram vividos de forma pessoal, experiências pessoais, que constroem nossa memória e identidade e afeta quem somos enquanto sujeito social. A memória coletiva, por sua vez, destaca aqueles fatos que não foram necessariamente vividos diretamente pelos indivíduos e sim transmitidos pelo grupo ou comunidade da qual se faz parte, através de fotos, histórias e estórias. Pode-se observar ocorrências assim, no que se refere às lembranças do país de origem de quem nasceu no Japão mas emigrou ainda criança. Lembrar do período difícil em que o Japão se encontrava no momento da emigração, por exemplo.

É possível que o indivíduo nem tenha participado de tal evento ou acontecimento por não ter vivenciado à época em que aconteceu, é uma memória que ganha legitimidade de tanto ser ouvida e repetida pelo grupo. Nesse caso, o sujeito já não sabe mais se participou ou não daquele momento (POLLAK, 1992). Para Halbwachs (1990), a memória individual não está absolutamente separada e fechada aos demais acontecimentos. Uma pessoa, para evocar seu próprio passado tem, frequentemente, necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros.

Como assegura Pollak:

[...] critérios como acontecimentos, personagens e lugares, conhecidos direta ou indiretamente, podem obviamente dizer respeito a acontecimentos, personagens e lugares reais, empiricamente fundados em fatos concretos. Mas, pode se tratar também da projeção de outros eventos (1992, p. 202).

Como ressaltado por Hobsbawm (1997, p. 9), as memórias de algumas “tradições”, as vezes, parecem ou são consideradas como antigas mostram-se bastante recentes, quando analisadas em profundidade.

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (HOBSBAWM, 1997, p. 09).

O fato das tradições não serem totalmente duradouras e por serem de certa forma dinâmicas e inventadas, muitas delas podem até ser esquecidas, deve-se atentar sempre em

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como elas surgem ou se mantêm dentro do grupo. Por esse motivo, recorre-se à memória coletiva para entendê-las. Como a memória coletiva, tem um caráter mais organizado, por se tratar da memória de um grupo ou comunidade específica, pode se constituir acervos organizados particulares ou não, guardados em instituições de memória e disponibilizados para consulta.

Hobsbawm, destaca ainda:

O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo – ás vezes coisa de poucos anos apenas – e se estabeleceram com enorme rapidez (1997, p. 09).

Considera-se que a invenção de tradições é fundamentalmente um artifício de formalização e ritualização, marcado por referir-se ao passado, ainda que seja apenas pela obrigação da repetição (HOBSBAWM, 1997). Pode-se inferir que as tradições são inventadas, quando há uma alteração social que afeta a antiga tradição, de maneira que essa possa perder sua capacidade de adaptação e flexibilidade.

A hipótese de uma construção da identidade no sentido de realidades que já foram definitivamente constituídas – como as etnias, as nacionalidades e diversos outros sistemas de pertencimento – pode ser entendido como inventado. Teorias recentes que denotam uma invenção ou construção de alguma realidade social ou cultural são defendidas por Eric Hobsbawm e Ranger (1984), e são possibilidades de a identidade nipo-brasileira ter sido construída ou inventada.

Normalmente, são feitas “adaptações” para conservar os velhos costumes em condições novas. A “nova” tradição passa a fazer parte então da memória do grupo como um novo elemento, que sempre observada no passado das tradições, pode se assemelhar com o presente.

Podemos, portanto dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992, p. 204).

A identidade é construída em relação aos outros, para que exista uma aceitação e credibilidade dentro da sociedade receptora, por exemplo, o que acontece partir da interação ou negociação direta com os diferentes sujeitos. A memória e a identidade são, na maioria das vezes, ajustadas ou negociadas e são compreendidas como sendo o cerne de um grupo ou de um indivíduo, principalmente quando se trata de grupos étnicos, caso da presente tese.

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Para Pollak (1992, p. 204), “[...] é perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou identificação com um determinado passado tão forte que podemos falar de uma memória quase herdada”. Existem fatos, experiências e tradições que identificam e unificam muito um grupo étnico, e ainda pessoas, lugares e instituições que se responsabilizam pela transmissão dessa memória ao longo dos anos, de geração a geração.

Sabe-se, a partir de Pollak (1992), que a memória não é constituída unicamente pelos acontecimentos, mas também, e principalmente, a memória é composta por pessoas, personagens, personalidades e autoridades dentro de grupo. Esses seriam os protagonistas dessas memórias, vivenciadas ou herdadas.

Outro ponto comum na memória coletiva e que vem ao encontro do que pensa-se nessa tese, são os lugares de memória (NORA, 1993). Eles são ligados à vida do indivíduo em coletividade, podem guardar ou salvaguardar lembranças pessoais e comunitárias. Os espaços de memória estão relacionados a espaços e acontecimentos vividos pelo grupo podendo ou não ter um tempo cronológico determinado. De acordo com Nora (1993), podem ser instituições, acervos públicos e particulares e, no caso desta tese, a Nihonjinkai.

Existem ainda lugares distantes que não fazem parte diretamente da vida de uma pessoa, mas podem se tornar parte importante da memória de um grupo, ou para o próprio indivíduo, seja por ter herdado ou por pertencimento, como o caso dos japoneses e seus descendentes que vivem no Brasil e que se organizam cooperativamente para viverem suas memórias e manterem vivas suas tradições através das associações.

A cultura determina a identidade de um grupo, e a identidade é a identificação desse grupo frente aos demais, aos “outros” e também a identificação desses sujeitos com sua própria cultura. Enquanto os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, os sujeitos são confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderiam se identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2006, p. 13).

Hall (2006), salienta que as identidades são formadas culturalmente:

A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginado” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada” (HALL, 2006, p. 38).

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ou coletivo, está no centro e é formado no seio do meio social do qual faz parte. Do mesmo modo, esse sujeito precisa dos outros indivíduos para conservar seu caráter social e atua para a conservação da sociedade na qual está inserido. Para isso, utiliza-se das memórias do passado que cada sujeito carrega em suas lembranças e que são transmitidas com a finalidade da construção da identidade e com o intuito de manter viva a história do grupo.

A motivação que levou as famílias a decidirem vir ao Brasil e dedicar-se enfrentando as dificuldades crendo em um futuro promissor, aparece em Cardoso:

Entre as razões apontadas para a emigração, encontramos com frequência formulações do tipo: “Viemos visando uma vida melhor... porque no Japão não havia futuro devido à superpopulação”; ou ainda, “No Japão meu sogro não poderia se estabelecer porque não era o filho mais velho, tinha 5 irmãos, e o pai não tinha terra para todos”. Aparece claramente a percepção da limitação de oportunidade de ascensão em seu país e a imagem, talvez não muito adequada, do Brasil como país de fortunas fáceis (1998, p. 58).

Foi em função dessa motivação, que ocorreu a imigração no Rio Grande do Sul, onde, em 1955, os primeiros imigrantes diretos chegaram, como Ushida demonstra:

Este primeiro grupo de imigrantes era constituído de duas famílias e cerca de dez solteiros. (...) (nota de rodapé: Os dados referentes ao número de imigrantes que vieram no primeiro grupo para Rio Grande do Sul foram retirados do Boletim do Centro Cultural e Informativo do Consulado Geral do Japão – RJ, p. 2, out./1998) [...] No dia 20 de agosto de 1956, atracou no porto da cidade de Rio Grande, que fica a aproximadamente 320 km ao sul de Porto Alegre, o navio Brasil-Maru com 23 jovens nipônicos solteiros e formados no kookoo (equivale ao atual ensino médio brasileiro) (1999, p. 21).

Soares e Gaudioso (2009) apontam que a imigração japonesa no Rio Grande do Sul havia começado antes dessa data. Embora, de forma isolada e voluntária, pois alguns japoneses, que já haviam emigrado para outros Estados do Brasil, tiveram a iniciativa de se deslocar para o RS com suas famílias, de maneira não oficial ou organizada. Bem como encontra-se em Ushida (1999), que salienta que a criação do órgão que cuidaria da imigração no Estado foi somente em 1956.

Esses jovens imigrantes foram os primeiros a participar do projeto de colonização, planejada pelo governo Japonês no Estado gaúcho. (...) Para isto, foi criada, em 1956, a Japan Migration and Colonization Limited (JAMIC) um órgão que assessoraria os imigrantes. Atualmente a JAMIC foi substituída pela JICA (Agência Internacional de Cooperação do Japão). Muitos dos imigrantes nipônicos, que vieram para o Rio Grande do Sul, o fizeram-no a pedido de fazendeiros e prefeitos de alguns municípios que solicitavam à JAMIC, famílias para trabalharem no cultivo de arroz, feijão, soja, mandioca e verduras (1999, p. 22).

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construída e determinada normalmente dentro da família. É, portanto, na unidade familiar, o eixo que permite essa experiência vivenciada em conjunto, sendo que, nesse sentido, pode-se dizer que muitos hábitos familiares transportam-se com os migrantes, que também são recebidos na sociedade adotada por outra atmosfera cultural.

Os imigrantes japoneses sempre tiveram a sua identidade marcada por suas diferenças com a sociedade brasileira. O parâmetro para marcar essas diferenças são aqueles que se referem às distâncias geográfica e cultural entre o grupo e a sociedade receptora. São diferentes, estranhos para os brasileiros (SAKURAI, 1998, p. 03).

O mesmo ocorreu entre os japoneses no RS, que também passaram por um processo de adaptação cultural, bastante peculiar pelo período histórico-social em que chegaram ao Estado, em especial os imigrantes da cidade de Santa Maria.

As famílias trazidas por Mitori Kimura, a bordo do navio Afurika-Maru, chegaram ao porto de Rio Grande em 25 de março de 1957. Formavam um total de 50 famílias, e, dessas, 17 foram para a cidade de Ernestina e as outras 33 tinham como destino a cidade de Uruguaiana. Soares e Gaudioso (2008) observam que, após enfrentarem uma longa viagem de trem, os imigrantes chegaram à Uruguaiana no dia dois de abril de 1957. Os japoneses puderam apreciar durante a viagem de trem, e se admirar com a paisagem das terras que os acolheria.

(...) passamos a noite no trem. No dia seguinte partimos de trem rumo à Uruguaiana. Vendo a imensidão das terras, finalmente fiquei com sensação de ter chegada ao Brasil. Vi gados, cavalos e ovinos pastando no imenso campo42.

A intenção de instalar-se no Brasil por, no máximo, cinco anos e voltar ao país de origem é semelhante à imigração nipônica do período Pré-Guerra. Os japoneses que vieram ao RS, no ano de 1957, eram famílias formadas por indivíduos que possuíam um grau de estudo que se equivale ao ensino médio no Brasil, em sua maioria, possuíam ensino técnico. As famílias imigrantes objetivavam alcançar melhores condições de vida para retornar ao Japão.

Minha família deixou-me vir com condição de ficar por quatro anos já que a vizinhança seria de pessoas conhecidas e que iria para o local já desbravado e que eu não sofreria tanto43.

Em outra fala, da mesma forma, encontra-se referência aos motivos da emigração para

42 Fala do senhor S. Y., utilizada por Soares e Gaudioso 2008, p. 83 – acervo do Memorial de Imigração e Cultura Japonesa do Rio Grande do Sul.

43 Fala de E. U., utilizada por Soares e Gaudioso 2008, p. 65 – acervo do Memorial de Imigração e Cultura Japonesa do Rio Grande do Sul.

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o Brasil:

Meu marido disse que o Japão é muito apertado. Disse que queria ir ao Brasil. Eu não queria vir mas por influência de meu marido, os filhos também passaram a querer viajar. Como era menino, acho que queria andar de navio. Eu resisti dizendo que não queria mas até os irmãos mais novo de meu marido apareceram em casa e me convenceram a vir. Eles disseram que também viriam ao Brasil. Assim, me convenci a vir já que eles também viriam44.