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A CONSTITUIÇÃO DO NOVO ESPÍRITO DO CAPITALISMO

Como apresentamos acima, o modelo de empresa dos engenheiros e o habitus de engenheiro em alguma medida foram transformados a partir da constituição do modelo japonês. Nesta seção, trataremos de algumas transformações nas empresas que foram desencadeadas como resposta dos capitalistas às críticas feitas à forma como estavam arranjadas as relações sociais nas empresas e a repartição dos benefícios nos anos 60 e 70,

quando, pode-se dizer, foi o momento de auge da realização do modelo clássico de empresa e da ordem industrial. Essas respostas e seus desdobramentos estão intimamente relacionados com a forma de enquadramento cognitivo das empresas tal como propiciado pelo modelo japonês.

A dinâmica de estabelecimento e transformação do espírito do capitalismo tem por móvel a crítica. Entre os anos 1960 e 1970, na França, foram geradas críticas ao segundo espírito do capitalismo. Segue uma apresentação da dinâmica destas críticas — de modo esquemático e resumido.

Por um lado, os representantes imputados aos trabalhadores, fundamentalmente, fizeram uma crítica social contra a exploração capitalista. Ela se exprimia, nos anos 60, basicamente contra uma repartição desigual dos custos e benefícios do crescimento econômico do pós-guerra e demandava seguridade social — crescimento regular da carreira, estabilidade dos salários, garantia de emprego, aposentadoria, serviços sociais, etc. Em seguida, os estudantes e os jovens assalariados, que, num momento de explosão das formações universitárias, viam risco de menores chances de ascender em empregos autônomos e criativos, formularam a crítica artística; fundamentalmente, desenvolveram a crítica da alienação, da desumanização do mundo sob o império da técnica e especialmente da perda de autonomia e de criatividade. O ponto alto e mais visível dessa crítica foi o movimento de Maio de 1968 na França.

Nas empresas, as resistências dos trabalhadores às formas vigentes de organização do trabalho aconteciam de tal forma que constrangiam os ganhos de produtividade e desorganizavam a produção. Visivelmente elas apareciam através de aumento nos índices de abstenção ao trabalho, de greves, de contestação da hierarquia, de desinteresse, etc. Em conjunto, elas resultaram em má qualidade dos produtos e dos trabalhos realizados, em desperdiço de insumos, etc.

As respostas patronais, em um primeiro momento, enquadram a crise como um problema de institucionalização insuficiente das relações sociais do patronato como os sindicatos, isto é, o patronato enquadrou as relações sociais em termos de coletividade e dirigiu suas respostas à crítica social, via negociações com os sindicatos. Essas negociações resultaram em melhorias de salários, de seguridade, de direitos coletivos e mesmo em ampliação dos níveis hierárquicos nas empresas. Entretanto, apesar de que isso tenha decorrido em aumento do custo da política contratual para o patronato, a “paz social” não foi alcançada.

Em um segundo momento, nos anos 1970, os patrões enquadraram a crise a partir de uma representação individualista dos trabalhadores, e, assim, em um sentido de retribuição diferenciada e meritocrática do desempenho individual. Então, incorpora as reivindicações de maio de 1968: concentraram as respostas às reivindicações qualitativas, isto é, à crítica artística — autonomia e criatividade —, contornaram os sindicatos e partiram para negociações no nível local.

Essa forma de gerir a parte do social significou que o controle das relações sociais mudou de mão: dos sindicatos para os gerentes. Ou seja, a melhora das condições de trabalho, o enriquecimento das tarefas, os horários flexíveis tiveram efeito de conseguir uma adesão de parte dos assalariados devido às vantagens individualizadas. Essa individualização das condições de trabalho e de retribuição deu iniciativa ao patronato. As inovações consistiram, principalmente, em fazer das exigências de autonomia e criatividade “um valor absolutamente

central da ordem industrial43” (Boltanski e Chiapello, 1999: 274) em favor dos que reivindicavam; dos engenheiros, gerentes e executivos de grandes empresas e dos operários. Basicamente, as medidas anteriores que procuravam dar seguridade aos assalariados foram

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substituídas por medidas visando tornar mais suave o peso de controle da hierarquia e tomar em consideração o potencial individual.

As disputas com os sindicatos e a concessão de mais autonomia e vantagens individuais foram levadas a cabo juntamente com mudanças na organização do trabalho e dos processos produtivos. Fundamentalmente, a estrutura das empresas foi desmantelada em unidades organizacionais independentes e, na seqüência, foram desmantelados os agrupamentos coletivos, como os grupos profissionais e mesmo as classes sociais — as categorias de pessoas. Uma das conseqüências disso foi que os sindicatos ficaram sem as coletividades nas quais se apoiavam (Boltanski e Chiapello, 1999: 274).

A idéia de autonomia e responsabilidade reivindicada era uma coisa, relacionava-se basicamente ao menor controle direto da hierarquia sobre as pessoas. Entretanto, a idéia de autonomia efetivada passou também pela autonomia das unidades internas da empresa, e seus possíveis desdobramentos como gestão independente, centros de resultados, terceirização, etc. De qualquer forma, em conjunto, as respostas às reivindicações de autonomia possibilitaram ao patronato retomar o controle das empresas. Essas respostas absorveram a crítica, modificaram a idéia de autonomia, transformaram o mundo do trabalho em diversas “instâncias individuais conectadas em rede44”, diminuíram o poder e o tamanho das linhas hierárquicas e tornaram a capacidade de manifestar qualidades de autonomia e responsabilidade os princípios da nova forma de controle (Boltanski e Chiapello, 1999: 274).

“Pode-se esquematizar essa mudança, considerando que ela consistiu em substituir o controle pelo autocontrole e assim a externalizar os custos muito elevados do controle deslocando o peso da organização sobre os assalariados45” (Boltanski e Chiapello, 1999: 275). 44 Tradução livre. 45 Tradução livre.

A partir do início dos anos 1970, e a partir deste eixo de reflexão sobre as condições e as relações de trabalho, foram “pensadas, depois experimentadas, a maior parte dos

dispositivos do qual a difusão, generalizada no curso da segunda metade dos anos 80, se acompanhará [...] ao mesmo tempo de um aumento da flexibilidade e do papel dos sindicatos46” (Boltanski e Chiapello, 1999: 278). Dessa forma, a retomada do controle das empresas foi obtida por diversas medidas que

“se coordenam umas com as outras por ensaios e erros e, de uma maneira geral, jogando sobre uma série de deslocamentos de ordem morfológica (deslocamentos, desenvolvimento de subcontratações, por exemplo) organizacional (just in time, polivalência ou ainda diminuição do comprimento das linhas hierárquicas) ou jurídica (utilização, por exemplo, de quadros contratuais mais flexíveis em matéria salarial, importância crescente acordada ao direito comercial em relação ao direito do trabalho)47” (Boltanski e Chiapello, 1999: 278-79).

Nos anos 80, essas múltiplas mudanças tornaram-se “coordenadas, reaproximadas e

rotuladas em um vocabulário único: o da flexibilidade” (Boltanski e Chiapello, 1999: 279).

De início, as mudanças em direção à flexibilidade eram uma possibilidade para as empresas adaptarem rapidamente o aparelho produtivo às mudanças no mercado de trabalho e da evolução da demanda. Mas elas foram associadas também a movimentos por maior autonomia no trabalho independentemente das ordens de uma burocracia, deste então amplamente qualificada de ineficiente.

O termo flexibilidade e o consenso sobre ele foram adotados pelo gerenciamento, pelo patronato, por socioeconomistas de esquerda, por agentes sociais como “novos consultores” (formados nos anos de efervescência seguintes a Maio de 1968), por “economistas de alto

nível” (que apoiavam a legitimidade de seus conhecimentos na econometria e na micro-

economia, autorizadas no campo internacional da economia) e, paradoxalmente, foram favorecidos pela chegada ao poder dos socialistas e da geração de 1968 — economistas,

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Tradução livre.

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sociólogos, estatísticos, sindicalistas, etc., Esse consenso foi favorecido também por circunstâncias econômicas e sociais. O aumento do desemprego e a incapacidade orçamentária do Estado para absorvê-lo enfraqueceram os sindicatos e levaram o governo a cair no encanto dos empresários de que com maior flexibilidade seria possível resolver o problema (Boltanski e Chiapello, 1999: 280-85).

Enfim, as mudanças na organização do trabalho inverteram as relações de força em favor do patronato e aumentaram o nível de controle sobre o trabalho sem aumentar os custos de vigilância. O novo espírito do capitalismo tomou forma progressivamente a partir dos anos 60 e 70 como uma maneira de revalorização do capitalismo: por um lado, opondo-se “ao

capitalismo social planificado e emoldurado pelo estado” e à critica social; e, por outro,

apoiando-se na crítica artística — autonomia e criatividade. O conjunto de respostas a essa crítica também incorreu em mudanças que os autores referidos chamam de “deconstrução do

mundo do trabalho” e de “enfraquecimento das defesas do mundo do trabalho” (Boltanski e

Chiapello, 1999: 285-90). Eles fazem um levantamento exaustivo dessas mudanças. Algumas delas serão tratadas na seção seguinte.