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1. A DISCIPLINA JURÍDICA DA CONCORRÊNCIA: SURGIMENTO, APLICAÇÃO

1.5. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: UMA ANÁLISE CONSTITUCIONAL DA

CONCORRÊNCIA E A LIBERDADE DE INICIATIVA.

Não é possível falar sobre Direito Concorrencial, atos de concentração e desenvolvimento sem que a análise desses elementos não seja precedida de uma clara alocação topográfica desses importantes princípios dentro da Ordem Econômica (e, portanto, da Constituição Econômica) inaugurada pela Carta Magna de 1988 (OLIVEIRA, 2011, p. 17). Nesse sentido, alguns autores trazem digressões mais filosóficas ou epistemológicas acerca da Ordem Econômica dentro da realidade pátria (GRAU, 2010, p. 58-85), mas, para fins da presente pesquisa, a abordagem dada (mais pragmática) tentará aproximar a Ordem Econômica e Constituição Econômica, correlacionando-as, especialmente, com os princípios

da Livre Concorrência e da Livre Iniciativa (BERCOVICI, 2005, p. 36-37) e o Direito Concorrencial – este sim, principal objeto de análise e elemento norteador dessa investigação científica.

Sobre Constituições Econômicas, vale mencionar que paralelamente elas encontram sua correlação com outros fenômenos e acontecimentos históricos de extrema relevância dentro do constitucionalismo: a Revolução Francesa e a Independência Norte-Americana.

Ora, se esses dois acontecimentos históricos foram responsáveis pela criação dos pilares dos catálogos de garantias fundamentais das Constituições atuais, pode-se dizer que a Primeira Guerra Mundial e a Crise de 1929 serviram igualmente para fornecer as bases teóricas e principiológicas das Constituições Econômicas contemporâneas. (LEOPOLDINO DA FONSECA, 2005. p. 92-93)

Figurativamente, portanto, poderíamos explicar a Constituição Econômica brasileira fazendo uma breve analogia com a Constituição Federal (como um todo), entendendo-as como centros de gravidade ao redor dos quais orbitam alguns elementos que lhes dão tônica e conformidade.

Partindo dessa lógica, portanto, poder-se-ia ilustrar a Constituição Federal através da seguinte figura:

Figura 8 - Representação da Constituição Federal Fonte: (BRASIL, 1988).

Ter-se-ia, portanto, uma Constituição Federal que pode ser visualizada (de uma maneira superficial) através de, pelo menos, três diferentes perspectivas.

Em um primeiro plano, é possível tentar entender a Constituição Federal através dos seus fundamentos, quais sejam: (i) a soberania; (ii) a cidadania; (iii) a dignidade da pessoa humana; (iv) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e (v) o pluralismo político.

Através de outra perspectiva, pode-se visualizar a Constituição Federal através dos seus principais objetivos, quais sejam: (i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (ii) garantir o desenvolvimento nacional; (iii) erradicar a pobreza e a marginalização; (iv) reduzir as desigualdades regionais e sociais; (v) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Ademais, é possível tentar entender a Constituição Federal com base nas garantias

fundamentais que busca resguardar, dentre as quais podemos destacar: (i) a liberdade; (ii) a

igualdade; (iii) a propriedade; (iv) a vida; (v) a integridade física e moral; (vi) a moradia; (vii)

Constituição

Federal

Dignidade da Pessoa Humana Valores Sociais do Trabalho e da Livre Iniciativa Construção de uma sociedade livre, justa e solidária Erradicação da Pobreza e da marginalizaç ão Redução das desigualdad es sociais e regionais Garantir o Desenvolvi mento Nacional Promover o bem de todos, sem preconceito. Pluralismo Político Princípios e Garantias do Artigo 5o Soberania, cidadania

o contraditório e a ampla defesa; dentre tantas outras garantias fundamentais reconhecidas, principalmente, nos artigos 5º e 6º do texto constitucional.

Fazendo uso de um raciocínio análogo, é possível tentar entender a Constituição Econômica brasileira através da seguinte ilustração:

Figura 9 - Representação da Constituição Econômica Fonte: GRAU, 2010, p. 195-196

Ora, partindo desse mesmo raciocínio, natural, portanto, encarar a Constituição Econômica sob diversos prismas.

É possível encarar a Constituição Econômica em relação aos seus objetivos (fundamentais): (i) redução das desigualdades sociais e regionais; (ii) erradicação da pobreza e da marginalização; (iii) construção de uma sociedade livre, justa e igualitária; (iv) integração do mercado interno ao patrimônio nacional.

Também é possível visualizar a Constituição Econômica em relação aquilo que busca resguardar (fundamentos): (i) dignidade da pessoa humana; (ii) direito a greve; (iii) liberdade

Constituição

Econômica

Dignidade da Pessoa Humana Valores Sociais do Trabalho e da Livre Iniciativa Construção de uma sociedade livre, justa e solidária Erradicação da Pobreza e da marginalizaç ão Redução das desigualdad es sociais e regionais Liberdade de Associação Profissional ou Sindical Garantia do Direito a Greve Justiça Social Princípios do Artigo 170 Integração do mercado interno ao patrimônio nacional.

de associação profissional ou sindical; (iv) justiça social.

Por fim, é possível encarar uma Constituição Econômica de acordo com os princípios que lhe dão sustentação, quais sejam: (i) a soberania nacional; (ii) a propriedade; (iii) a função social da propriedade; (iv) a livre concorrência; (v) a livre iniciativa; (vi) a defesa do consumidor; e (vii) o desenvolvimento nacional (aqui também compreendidos “redução das desigualdades regionais e sociais”, “defesa do meio ambiente”, “busca do pleno emprego” e o “tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte”).

Em analogia a sistemática constitucional geral fica fácil entender, portanto, que dentro da Constituição Econômica, livre concorrência e livre iniciativa assumem um papel de extrema relevância – na medida em que podem ser consideradas “garantias fundamentais” previstas pela Constituição Econômica.

Desta feita, a Constituição Econômica pode ser entendida como uma Constituição dentro de uma outra Constituição. Enquanto há uma Constituição responsável por organizar toda a relação entre “indivíduos – Estado” e “Estado – demais Estados”, há uma Constituição Econômica responsável por organizar todos os elementos que compõem a Ordem Econômica nacional – ou, em última instância, a relação “Estado – Economia”.

Em uma expressão mais genérica e objetiva, pode-se dizer que o objetivo precípuo do constituinte, portanto, ao edificar a Constituição Econômica brasileira, foi o de salvaguardar que o desenvolvimento dos agentes econômicos fique adstrito aos ganhos derivados de suas eficiências econômicas, extirpando da realidade mercadológica, qualquer possibilidade de obtenção de posição dominante através de condutas anticompetitivas e desleais (OLIVEIRA, 2011, p. 18; CASTRO, 2011, p.40).

Por óbvio, como não é possível falar em prevalência per se de um princípio que compõe a ordem econômica sob os demais, também entram no cômputo da fórmula supra grafada os ideais de desenvolvimento nacional (que serão estudados no último capítulo), a defesa do consumidor, a propriedade e sua função social e a própria soberania nacional.

Em que pesem às críticas (já mencionadas e) dirigidas a terminologia adotada pelo constituinte no capítulo destinado a ordem econômica (GRAU, 2010, p. 58-89), vale reservar um pequeno espaço desta pesquisa para tratar, em especial, das questões atinentes à livre iniciativa e à livre concorrência.

A Carta Magna de 1988 elevou a livre concorrência à condição de princípio constitucional integrante da ordem econômica (OLIVEIRA; RODAS, 2013, p. 33) ou garantia fundamental da Constituição Econômica, atribuindo-lhe, como se pode imaginar a priori – e sem qualquer maior reflexão – , o sentido daquilo que Grau (2010, p. 211-216) denomina de

livre jogo das forças de mercado, na disputa da clientela.

De igual forma, uma análise meramente superficial acerca da livre iniciativa pode levar ao (ledo) engano de que tal princípio encontra-se adstrito, exclusivamente, à liberdade econômica ou a liberdade de iniciativa econômica.

Em que pese a (aparente) clara redação utilizada pelo constituinte, a função dos mandamentos basilares acima mencionados, vai muito além da mera interpretação jurídico- literal. De igual forma, o estudo de ambos jamais pode se dar de forma apartada, devendo sim, na verdade, haver uma interpretação conjunta (sistemática), uma vez que são princípios conformadores da Constituição Econômica tal como estabelecida no digesto constitucional.

A liberdade de iniciativa pode ser desdobrada em várias faces. Da forma como nos é exposto o texto constitucional, percebe-se que o constituinte teve cuidado com a tutela de dois aspectos fundamentais: a liberdade de iniciativa econômica (cujo sujeito de sua titularidade será a empresa); e a liberdade de iniciativa enquanto consequência da valorização do trabalho. A liberdade de iniciativa econômica, conforme conta Eros Grau (2010), foi originariamente disseminada no Décret d’Allarde, de março de 1791, na França, que assim afirmava:

Article 7: A compter du 1er avril prochain, il sera libre à toute personne de faire tel négoce ou d'exercer telle profession, art ou métier qu'elle trouvera bon ; mais elle sera tenue de se pourvoir auparavant d'une patente, d'en acquitter le prix suivant les taux ci-après déterminés et de se conformer aux règlements de police qui sont ou pourront être faits. (JURISDIARIUM, 2009)

É, portanto, garantia de liberdade pública, ou, em última instância, mandamento basilar que em muito se assemelha a noção genérica do princípio da legalidade administrativa, qual seja: não sujeição dos indivíduos (no caso em questão, das empresas ou algo que o valha) a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei.

Doutra banda, a liberdade de iniciativa, enquanto princípio vinculado a valoração do trabalho humano, é um mandamento de cunho positivo. Nesse sentido Ferraz Júnior (1989, p. 50) elucida que não há que se falar em uma visão da liberdade de iniciativa absoluta, impassível de uma atividade regulamentadora por parte do Estado, mas, contudo, os termos dessa regulamentação não podem impedir a ilimitação inerente a liberdade de iniciativa, ou seja, a capacidade dos indivíduos de estarem sempre criando coisas novas.

Em outras palavras, não cabe ao Estado, negar ao indivíduo, essa verdadeira espontaneidade que é a base para produção de riquezas em qualquer sociedade (a busca pelo

que ali não existia antigamente). Se assim o fizer, estará, a bem da verdade, não ofertando um elemento (ou fato) estrutural (obrigação positiva) e, ao mesmo tempo, obstacularizando (por intermédio de intervenção) e valendo-se de um verdadeiro dirigismo para extirpar uma estrutura fundamental do mercado.

A livre concorrência, por sua vez, possui uma série de influxos (conceituais e pragmáticos) com a própria livre iniciativa (TAVARES, 2011, p. 255). Ora, tomando como verdade que a existência de concorrência prescinde de uma prévia rivalidade entre as empresas – ou até mesmo algo que acirre entre os componentes do mercado a busca incessante pela conquista deste –, o que é de certa forma um tanto quanto lógico (do ponto de vista mercadológico – ao se partir de uma concepção liberal de mercado), chegaremos a proposição conclusiva de que só existirá concorrência a partir do momento em que a livre iniciativa seja efetivamente respeitada tal como disposta na constituição, e, consequentemente, existam diversos players (ou diversos potenciais agentes) no mercado, de diferentes tamanhos, dispostos a competirem entre si.

Partindo dessa proposição conclusiva, chega-se a uma segunda, qual seja: a existência da livre concorrência tal como fora contemplada no ordenamento constitucional pátrio é meio de efetivação da defesa do consumidor e, também, remédio efetivo na análise das concentrações econômicas.

Ora, se entendermos a livre concorrência, assim como Ferraz Júnior (1989, p. 50), enquanto princípio necessário para que haja descentralização de coordenação como base da formação de preços – e aqui nem se fala em fragmentação do mercado (ou seja, possível aplicação do direito concorrencial para divisão de market share/power entre diversos agentes do mercado) – resta claro que, a efetiva tutela da concorrência (termo que será trabalhado adiante) beneficiará, em última instância, o consumidor, porquanto a competitividade gerada possivelmente induzirá os agentes a uma alocação mais eficiente de recursos o que, por sua vez, impactará em preços mais acessíveis.

Ou seja, se tentarmos entender a livre concorrência sob uma perspectiva “política” (ou de mercado), chegaremos a conclusão que ela tentará promover a igualdade de condições de participação no mercado para todos os players de um determinado nicho mercadológico; por outra perspectiva, mais “social”, poder-se-á entender a livre concorrência como uma importante ferramenta para diminuir as diferenças entre os pequenos e grandes players, os quais, na busca pela conquista (lícita) do mercado, ofertarão seus produtos sempre a um custo próximo do custo (de produção) marginal.

mandamentos basilares emanados pela aludida cártula magna, já devidamente esmiuçados, foram também sentidas alterações infraconstitucionais, especialmente no que pertine a edição da Lei 8.158, de 08 de Janeiro de 1991.

A predita legislação foi responsável pela criação do que posteriormente seria a Secretaria de Direito Econômico (SDE). Restou claro que a atuação de um órgão especializado, juntamente ao CADE, não somente conferia mais celeridade a apuração dos processos de infração à ordem econômica, como até mesmo melhorava a qualidade das decisões exaradas.

Não tardou, porém, para que um novo diploma, mais completo, dessa vez contemplando praticamente toda a matéria, surgisse. Assim, em 11 de Junho de 1994, a Lei 8.884 foi então promulgada, criando o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), composto pelo CADE (que agora gozava o status de autarquia federal), pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) e pela Secretaria de Direito Econômico (SDE).

A legislação em foco, não só sistematizava a atuação conjunta desses três órgãos, como também, ainda que embrionariamente, fazia uma clara distinção entre a apuração de práticas anticompetitivas (condutas) e as apurações relativas as concentrações de agentes econômicos (estruturas).

Sob a égide da nova legislação, ainda que as práticas de concentração tenham se acirrado – muito disso, em virtude de ser uma tendência natural das próprias estruturas de uma economia de mercado em amadurecimento, a busca pelo aprimoramento das economias de escala e redução do custo marginal de produção –, com a necessidade de submissão dos atos de concentração (ainda que a posteriori), o órgão máximo de defesa da concorrência pátrio passou a ter mais relevância, e influência direta, na tutela das estruturas mercadológicas brasileiras.

Em assim sendo, é necessário, antes de se pormenorizar todos os desdobramentos da reforma no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, proceder a uma análise conceitual dos principais elementos que constituem as estruturas de mercado, e a forma como estes são analisados pelos órgãos antitrustes pátrios, estudo esse, feito no capítulo que segue.