• Nenhum resultado encontrado

1. A DISCIPLINA JURÍDICA DA CONCORRÊNCIA: SURGIMENTO, APLICAÇÃO

1.4. A SEGUNDA METADE DA HISTÓRIA DO DIREITO CONCORRENCIAL: A

FUNDAMENTO PARA A CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA DE 1988.

Feitas todas as digressões históricas capazes de nos situar, na linha de tempo do Direito Concorrencial, em relação as diferentes fases que foram vividas para além das linhas territoriais do Estado brasileiro, passemos a entender os influxos de todas essas teorias com o realidade brasileira.

Historicamente, muito se discute sobre a origem da legislação antitruste no Brasil e demais normas de Direito Econômico e Concorrencial: (i) para alguns (SCHIEBER, 1966, p. 4) há uma nítida relação entre o surgimento do Direito Concorrencial e as primeiras normativas do Direito Penal Econômico; (ii) para outros (WADA, 1999, p. 1-3) o Direito Concorrencial tem sua gênese demarcada nas primeiras normas que visavam defender os consumidores (Direito do Consumidor).

Para fins de não levar essa discussão adiante, abordaremos as questões relativas ao Direito Concorrencial no Brasil a partir das previsões constitucionais que buscavam tutelar a economia popular (LEOPOLDINO DA FONSECA, 2005, p. 114).

Desta feita, é correto afirmar que a economia popular foi regulada pela primeira vez na Constituição Federal de 1934, mais precisamente no seu artigo 117, na medida em que foi previsto que a lei promoveria o fomento a economia popular, dentre outras coisas (FORGIONI, 2010, p. 98-99).

Três anos após, a Constituição de 1937 continuou a tratar da economia popular em seu título destinado a Ordem Econômica, especificando, porém, o tratamento que seria reservado àqueles que viessem a ofendê-la. Em outras palavras, continuava-se a previsão genérica de fomento a economia popular, mas prevendo (genericamente), pela primeira vez, os chamados “crimes contra a economia popular” (LEOPOLDINO DA FONSECA, 2005, p. 115-116).

No final do ano seguinte, os legisladores regulamentaram as previsões genéricas do texto constitucional, discriminando um rol daqueles que viriam a ser os crimes contra a economia popular, através do Decreto-Lei n. 869, de 28 de Novembro de 1938 – e para alguns, nasce aqui, a primeira legislação concorrencial brasileira.

Conforme dito anteriormente, independentemente da corrente doutrinaria escolhida, fato é que de toda e qualquer análise acerca da positivação do direito concorrencial no ordenamento jurídico brasileiro, há um elemento comum a qualquer uma das diferentes perspectivas: o fato de que faltava no Brasil não somente qualquer norma que visasse coibir práticas anticoncorrenciais como, também, a familiaridade tanto dos legisladores, como dos próprios juristas da época, com conceitos oriundos do Direito Econômico e, principalmente, do Direito Concorrencial – e ainda hoje isso pode ser sentido, porém em menor intensidade.

Até essa época, portanto, pode-se afirmar que o Brasil estava alocado topograficamente na primeira fase do direito antitruste, qual seja: inexistência de tutela da

concorrência.

Isso muda, dentre outros fatores, a partir do início da década de 40, quando alguns parlamentares com posicionamentos mais vanguardistas e estudiosos sobre o tema, atentam para a importância da defesa da concorrência dentro de um contexto de desenvolvimento nacional.

Na ausência de grandes teóricos do antitruste em território nacional, a primeira legislação essencialmente concorrencial editada no Brasil teve forte influência estadunidense. O próprio responsável pelo projeto de lei que, futuramente, culminou na edição da lei 4.137, de 10 de Setembro de 1962, Agamenon Magalhães, é claro ao afirmar nas razões de exposição da predita lei, que estava adotando as diretrizes da legislação norte-americana (LEOPOLDINO DA FONSECA, 2005, p. 119).

Em discurso realizado no ano de 1949, Agamenon Magalhães tenta elucidar aos parlamentares o que é uma legislação antitruste, qual a sua importância e com que base estava se propondo a disciplina jurídica da concorrência no Brasil.

Sr. Presidente, para justificar o projeto, vou fazer, em síntese, uma crítica da legislação contra os abusos do poder econômico.

Podemos classificar essas legislações em três grupos: um em que a repressão é de direito comum (Inglaterra, Bélgica e Suíça); outro, em que a repressão é de direito penal, cujo exemplo é a França, no famoso artigo 419 do Código Penal; o último em que repressão é administrativa de que é exemplo a legislação alemã de 1923. Há, ainda, a repressão administrativa combinada

com repressão judiciária, tendo como exemplo a legislação da América do Norte.

Em nossa estruturação constitucional dos Poderes, com ascendência do Poder Judiciário, incumbido de zelar pela unidade federal e pela supremacia da Carta Magna, tivemos de seguir o modelo norte-americano, combinando

o sistema de repressão administrativa com o da representação judicial.”

(DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, 1949, p. 3577)

Analisando com maior profundidade os Diários do Congresso Nacional (1948 e 1949), percebe-se que os debates que antecederam a promulgação da predita legislação – debates esses que demoraram cerca de 14 (quatorze) anos, desde a criação do Projeto de Lei 122/48, sua rejeição, e o oferecimento de um novo projeto, nos mesmos termos, pelo filho de Agammenon, o Deputado Paulo Germano Magalhães – e sua própria redação (que por vezes trazia enunciados extremamente genéricos), no entanto, evidenciam não somente a ausência de pesquisas confrontando a realidade nacional com as construções teórico-doutrinárias da época, como o imenso despreparo jurídico e econômico de boa parte das pessoas que discutiam sobre a temática no parlamento tupiniquim.

Apesar do parecer extremamente favorável de parlamentares como o Deputado José Leomil e da visão vanguardista do Deputado Aldo Sampaio (trazendo para o debate da época, muitas questões sobre trustes, holdings e cartéis enfrentadas no cenário internacional), restava claro que poucos eram aqueles que efetivamente entendiam a importância de uma legislação que possibilitasse a defesa da concorrência.

A orientação geral dos parlamentares da época (com exceção dos poucos listados acima) era no sentido da completa desnecessidade de uma legislação concorrencial, uma vez que os pequenos comerciantes não deveriam ser punidos pela prática de condutas anticompetitivas “imperceptíveis” – quando muito, dever-se-ia buscar defendê-las das “grandes empresas”.

Muitos também enxergavam a então Comissão Administrativa de Defesa Econômica (CADE), como uma possível “arma política” em razão dos “grandes poderes e atribuições” que o Projeto de Lei lhe atribuía. Nesse sentido, incontáveis são os protestos encontrados ao longo dos relatos históricos (Protesto da Federação de Indústrias de Pernambuco, Protesto da Associação Comercial de Santos, dentre outros).

É importante não descurar da realidade dos fatos. Poder-se-ia afirmar que independentemente das resistências encontradas, fato foi que com o passar dos anos e, especialmente, com a elevação dos índices de concentração econômica em diversos setores do

mercado nacional, pouco a pouco, a resistência encontrada dentro do Congresso Nacional foi enfraquecendo.

Isso não é verdade. Todas as tentativas de regulamentação da defesa da concorrência fracassaram de maneira retumbante. Mais de três projetos de lei foram engavetados, em fases de trâmite distintas, em um espaço de tempo inferior a 10 (dez) anos.

Ocorre que no início da década de 60, o então Presidente da República, Jânio Quadros, dentro das suas proposições para reestruturação da economia nacional, tentou regulamentar o abuso de poder econômico. Em reação a isso e em razão da sua enorme impopularidade com os parlamentares, o Congresso Nacional desengavetou os projetos já existentes sobre o tema, optou pelo PL 3/55 (o qual se encontrava parado a, pelo menos, meia década) e, em meses, aprovou a legislação concorrencial tupiniquim.

Assim, em 10 de Setembro de 1962, é sancionada (pelo Presidente João Goulart – que havia assumido após a renúncia de Jânio) e promulgada a Lei n. 4.137, regulamentando a repressão ao poder econômico e criando o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), com o principal escopo de apurar e reprimir condutas atentatórias à livre concorrência.

Em recente obra publicado em comemoração aos 50 anos de existência do CADE, há uma excelente compilação das principais dificuldades encontradas pelo órgão nos seus primeiros 20 (vinte) anos de existência, das quais destacam-se: (i) decisões constantemente reformadas pelo Poder Judiciário; (ii) infraestrutura deficitária (o CADE funcionava no subsolo do Palácio do Catete); (iii) período de ditadura (onde qualquer “liberdade” – ai incluídas a de concorrência e de iniciativa – eram categoricamente tolhidas); (iv) ausência de indicação de novos conselheiros; (v) ausência de servidores públicos estáveis no órgão; (vi) políticas públicas de controle de preços (CARVALHO; RAGAZZO, 2013, p. 44-45).

Cumpriu, por muitas vezes, ao próprio CADE, após a promulgação da mencionada lei e nos primeiros anos da sua existência, a suplantação das abstrações legislativas, através da criação de precedentes, durante o julgamento de alguns casos notórios, e. g., o Caso da Barrilha, no qual assim restou decidido:

EMENTA: O abuso do poder econômico caracteriza-se por meios que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros.

A eliminação da livre concorrência ou o emprego de meios para consegui-la é substancial à infração. Importação irregular de barrilha. Uso de meios artificiosos pata eliminar a concorrência.

É salutar a existência de um órgão como o CADE, capaz de promover levantamentos e análises em setores de produção e comercialização para apurar possíveis abusos do poder econômico. Apurar para julgar e punir, mas também para reconhecer a improcedência de denúncias que não encontrem prova nos fatos. É pelo julgamento imparcial e sem paixões que se deve afirmar o CADE. O processo administrativo é instaurado quando há indícios da infração verificados nas averiguações preliminares. (BRASIL, 1966).

Em verdade, inexistia à época (principalmente nas décadas de 60, 70 e 80), apesar dos esforços dispendidos durante a edição da legislação antitruste ora em foco, um controle efetivo sobre as concentrações econômicas, monopólios e/ou oligopólios, uma vez que o próprio Estado, por intermédio de políticas públicas – como os famigerados Planos de Desenvolvimento Nacional – incentivava a concentração de capitais, fosse em suas estatais, fosse em empresas privadas consideradas “indispensáveis ao desenvolvimento nacional”.

Dentro desse contexto histórico, é salutar o trabalho feito por Sérgio Buarque de Holanda Filho (1983), em sua obra “Estrutura Industrial no Brasil: Concentração e

Diversificação”, na qual, analisando os dados da época, fornecidos pelo Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), fornece os índices de Concentração (CCF) e Eficiência (CCE) dos principais setores da economia brasileira.

Seguindo essa esguelha, a análise estatística muito bem realizada na predita obra utiliza cerca de 90.000 empresas, constatando, a priori, que cerca de 60,1% de toda a produção industrial brasileira à época, encontrava-se concentrada na mão de 1.000 empresas (HOLANDA FILHO, 1983, p. 92).

Ainda utilizando como base as análises pelo mencionado autor, em especial àquelas referentes ao ano de 1974 (fim do PND I), cumpre ressaltar que da confrontação do texto dos Programas Nacionais de Desenvolvimento (I e II), com os índices de concentração econômica vigente à época, pouco (para não dizer quase nada) era a preocupação governamental com a criação de verdadeiros monopólios ou oligopólios, vejamos a seguinte tabela:

Tabela 3 - Índices de Concentração em alguns setores da economia do Brasil.

GÊNERO CCF4 CCE4

Minerais Não-Metálicos 0,454 0,395

Metalúrgica 0,331 0,317

Material de Transporte 0,620 0,507

Química 0,381 0,335

Fonte: HOLANDA FILHO, 1983.

A razão de escolha dos cinco setores acima mencionados é se dá pelo simples fato de serem justamente eles, os mencionados com maior ênfase por ambos os PND.

De uma rápida análise dos dados ora colacionados, percebe-se que, apesar de serem todos setores em que os índices de concentração entre as quatro maiores empresas (CCF) supera 1/3 de todo o mercado relevante (chegando a incríveis 62% no setor de transportes – 90% em pneumáticos, 97,3% em câmaras-de-ar e 84,% em veículos automotores), insistia o governo da época, nos textos legais já mencionados, em não só apregoar, mas, igualmente, incentivar os atos de concentração visando a criação de modernas estruturas de produção.

Os ideais contemporâneos e transcurados naquela obra revelam a preocupação dos juristas e economistas (nacionais) da época com as estruturas mercadológicas. De igual forma, inúmeras são as referências aos ideais estruturalistas da Escola de Harvard, permeados não só na obra in comento, mas em diversos outros autores utilizados como referência bibliográfica. Muita dessa preocupação se justifica pelos altos índices de concentração das indústrias brasileiras, quando comparadas aos demais países, veja:

Figura 5 - Índice de Concentração na Indústria de Minerais Não-Metálicos. Fonte: BUARQUE DE HOLANDA FILHO, 1983.

0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 Brasil Estados Unidos Alemanha Ocidental França Itália

Índice de Concentração (CCF4) nas

Indústrias de Minerais Não-Metálicos

Índice de Concentração (CCF4) nas Indústrias de Minerais Não-Metálicos

Figura 6 - Índice de Concentração na Indústria de Material Elétrico. Fonte: BUARQUE DE HOLANDA FILHO, 1983.

Figura 7 - Índice de Concentração na Indústria de Material de Transportes Fonte: BUARQUE DE HOLANDA FILHO, 1983.

É importante ressaltar dentro dessa abordagem que a concentração, per se, não é aqui vista como fator negativo (uma vez que na maioria dos casos, é inegável o ganho com economias de escala, de escopo, progresso tecnológico, científico, etc.). Contudo, a realidade histórica exaustivamente estudada, demonstra que a liberdade absoluta, sem a existência de um aparato técnico e/ou estatal capaz de analisar o que de fato resultará em ganhos à

sociedade, e o que somente reforçará a posição dominante (e possível abuso) de determinado

agente sem maiores impactos sob o bem-estar social, sempre culminou em verdadeiras crises

econômicas, sociais e políticas.

Existia no Brasil, portanto, uma legislação que, em tese, previa a defesa da

0 10 20 30 40 50 60 Brasil Estados Unidos Alemanha Ocidental França Itália

Índice de Concentração (CCF4) nas

Indústrias de Material Elétrico

Índice de Concentração (CCF4) nas Indústrias de Material Elétrico 0 10 20 30 40 50 60 70 Brasil Estados Unidos Alemanha Ocidental França Itália

Índice de Concentração (CCF4) nas

Indústrias de Material de Transportes

Índice de Concentração (CCF4) nas Indústrias de Material de Transportes

concorrência, mas não havia, de fato, uma atuação da autoridade antitruste que permitisse à livre concorrência ou a liberdade de iniciativa.

Importante mencionar que entre os anos de 1962 (ano de criação do CADE) e 1996 (ano em que, realmente, foi dado início a sua reestruturação), a autoridade antitruste nacional julgou, ao todo, 33 (trinta e três) operações.

Desta feita, é possível afirmar que o Brasil, no interstício temporal compreendido entre a criação do CADE e sua efetiva reestruturação, encontrava-se inserido na segunda fase do direito antitruste, qual seja: a tutela formal da concorrência.

A pouca aplicabilidade da legislação antitruste vigente à época, somados aos altos índices de concentração e ineficiência econômica, evidenciaram a necessidade eminente de

reformulação da disciplina jurídica da concorrência no âmbito nacional (FORGIONI, 2010, p.

121).

O legislador brasileiro, precisamente o Constituinte responsável pela elaboração da Carta Magna de 1988, atento as origens históricas do Direito Concorrencial, no título responsável por organizar a atividade econômica do Estado, buscou positivar os princípios da

livre iniciativa e livre concorrência, com o fito de preservar a existência digna do cidadão

brasileiro – mandamento basilar irradiado por todas as disposições constitucionais –, e também de forma a direcionar a política econômica nacional.

Na próxima seção, portanto, tentar-se-á explicar os principais elementos do Direito Constitucional-Econômico responsáveis pelo reconhecimento e ordenação dos princípios que são sustentáculos ao Direito Concorrencial que hodiernamente conhecemos.

1.5. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: UMA ANÁLISE CONSTITUCIONAL DA