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3 O JEITO BRASILEIRO DE CONSTRUIR/DESCONSTRUIR DIREITOS

3.2 A construção/desconstrução dos direitos no Brasil

Discorrer sobre os direitos no Brasil significa lançar olhares sobre o seu processo de construção, suas faltas e ausências e a dificuldade de enraizamento da cidadania em sua plenitude. Contestando a tese de que “o direito no Brasil não existe”, Rodriguez (2004) defende que se procure explicar o direito pelo que efetivamente se formou, mesmo com suas distorções, mas sem desconsiderar os avanços históricos – comparados aos tempos passados – e zelar pelo seu funcionamento.

Essa abordagem orienta, nesta seção, a sistematização de ideias sobre a dimensão contraditória e ambivalente da instituição dos direitos formais no processo histórico brasileiro, considerando a ambiguidade dos seus efeitos: ora conservadores, ora revolucionários, seguindo o pressuposto adotado por Rodriguez (2004) de que cada país, a partir de seus valores e experiência histórica, acaba por construir uma forma de direito e de Estado.

Retomando o fio dos argumentos, como diz o ditado popular: adiante com a carroça. Existem inúmeras ideias que – a partir das interpretações e análises a respeito da especificidade da formação nacional – trazem elementos elucidativos na explicação sobre as contradições do Estado de direito no Brasil.

Na interpretação de Fernandes (2005), o Estado brasileiro estruturou-se com peculiaridades e singularidades próprias de uma sociedade de capitalismo tardio, referenciadas na escravidão e numa sociedade de privilégios, cujo legado histórico inscreve-se nas contradições profundas da sua formação socioeconômica e política. Em sua tripla função de conciliar as transformações capitalistas internas, a dominação burguesa e o capitalismo imperialista externo, o poder burguês ganhou forma e conteúdo na estrutura social vigorosa do regime escravocrata e em instituições políticas tradicionais e conservadoras que, de alguma forma, persistem até os dias de hoje.

O Brasil do presente, afirma Florestan Fernandes (2005), deve ser explicado pelo seu próprio passado. As condições e fatores histórico-sociais que justificaram e influenciaram os processos sociais por meio dos quais se originaram a organização do poder da economia, da sociedade e do Estado no Brasil são elementos determinantes nas explicações sobre as mudanças estruturais que marcaram a construção da sociedade nacional.

Uma nação não aparece e se completa de uma hora para outra. Ela se constitui lentamente, por vezes, sob convulsões profundas, numa trajetória de zigue-zagues. Isso sucedeu no Brasil, mas de maneira a converter essa transição, do ponto de vista econômico, no período de consolidação do capitalismo (FERNANDES, 2005, p. 44).

Esse é um bom ponto de partida para compreender o cenário onde se ergueu o novo projeto de Estado nacional dos anos 30 no início do século XX. O poder da aristocracia rural, deslocado para os centros urbanos, assumiu papel relevante no ambiente político, secularizando suas ideias, suas concepções políticas e aspirações sociais. No mundo moral da emergente burguesia, as lealdades pessoais e situações de interesses que fundaram o espírito burguês impulsionador da nova ordem social competitiva penetraram nas instituições jurídicas e políticas.

Os signos da aristocracia agrária subsistiram na disseminação dos privilégios e no aparecimento da “dualidade ética”, que dividiu a fronteira do poder entre o “nosso grupo”, reduzido à família dos interessados, e ao “grupo dos outros”, referente à coletividade como um todo, afirma Florestan Fernandes (2005).

Nesse entrecruzamento do público e do privado, moldou-se a sociedade nacional com base nas estruturas econômicas, sociais e políticas da sociedade colonial, resultado da combinação, necessária e útil, do arcaico e do moderno, num processo de modernização conservadora. 32

32 Em Fleury (1994, p. 66) encontra-se a explicação sobre o conceito do termo modernização conservadora.

“Trata-se da modernização ocorrida em sociedades onde o processo de industrialização se deu com algum atraso em relação aos demais países industrializados: capitalismo retardatário, o que agravava ainda mais a debilidade política e econômica da burguesia, face ao vulto da mobilização de capital requerido para introduzir-se em um processo que já andava a caminho desde o início da Revolução Industrial inglesa. Dada a ausência de uma burguesia hegemônica, a modernização se faz sem alijar as classes tradicionais do bloco no poder. Ao contrário, há uma modernização da elite agrária que estabelece uma coalizão com a burguesia industrial débil, através da mediação do Estado, denominada revolução pelo alto, via Estado, embora não se trate propriamente de uma revolução, mas de um processo de modernização que restaura e conserva aspectos essenciais das relações de autoridade tradicionais.”

“Com vaivéns, avanços e recuos, ele se desenrola através de um século e meio de vicissitudes”, ressalta o historiador Prado Jr. (2011, p. 8). As renovadas formas de organização social do povo brasileiro, introduzidas nos tempos coloniais, permaneceram igualmente presentes na contemporaneidade, marcadamente nas estruturas econômicas e sociais, conservando-se nos tempos modernos os traços do regime escravista, ausência de uma sólida economia nacional, processos produtivos arcaicos, relações sociais pautadas no antigo/novo modelo de paternalismo colonial.

Essas interpretações reforçam as teses de que as raízes da visão patrimonialista de Estado encontram-se nesse passado, de onde provém a forma de poder, em que os negócios públicos são conduzidos pela comunidade política como negócio privados seus, institucionalizando-se um tipo peculiar de dominação, que – no Brasil moderno – foi legitimado no tradicionalismo da sociedade oligárquica.

“Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse” (FAORO, 2008, p. 837). As novas/velhas práticas de exercício do poder político – fundado no mando e no favor – vão servindo de sustentáculo às modernas instituições brasileiras. No desenho institucional do capitalismo industrial impulsionado do alto, a presença marcante de um modelo de Estado autoritário – principal vetor do processo de modernização – que encontrou no paternalismo a forma de sua legitimidade.

Mas, como sugere Rodriguez (2004), é preciso situar historicamente a questão do favor como mediação (quase) universal das relações sociais para avançar nas análises sobre o direito no Brasil. Para este pesquisador do Cebrap-SP, o favor é um conceito que se coloca como uma barreira teórica intransponível para qualquer tese que se destine a pensar o direito, esvaziando o seu conteúdo, subtraindo-lhe todo o sentido, reduzindo-o a uma mera superestrutura a serviço da dominação de classe.

Na marcha dessas ideias, é no tempo histórico dos anos novecentistas que se dá a iniciação tardia do Brasil no capitalismo industrial, ainda sob a hegemonia oligárquica. Nos anos pós-1930, quando o Estado brasileiro – travestido de novo –, por meio da regulação e participação direta na produção, assumiu o papel principal na acumulação capitalista, inaugurou-se, no País, a transição para a modernidade.

Inicia-se um novo tempo pautado na recomposição das estruturas de poder sobre as quais se configuraram o poder da burguesia emergente, sob a batuta do Estado. Para Florestan

Fernandes (2005), a burguesia brasileira – no contexto da recém-inaugurada economia industrial e ainda frágil sociedade de classes – buscou inscrever a sua dominação pelo Estado, antes mesmo de converter a dominação socioeconômica, como o fez historicamente as burguesias de capitalismo avançado.

Paradoxalmente, a burguesia – porta-voz dos valores da modernidade – não se desvencilhou imediatamente dos valores ultraconservadores da oligarquia rural. Mergulhada na contradição entre as concepções liberais e republicanas e os valores da ordem vigente, a classe dominante alicerçou seu poder em um terreno conflituoso de múltiplos e divergentes interesses, expressos numa relativa “oposição dentro da ordem” e na ampliação de possibilidades de emergência de “oposições contra a ordem”.

Na visão de Florestan Fernandes (2005), as elites brasileiras, despreparadas, acomodaram-se moralmente à pressão de dentro, tolerando as divergências internas, mas atribuíram à segunda forma de oposição uma ameaça à sua dominação, mobilizando mecanismos de repressão para impedir que as massas populares produzissem um espaço político próprio, no interior da ordem vigente, abrindo-se o flanco para o paternalismo, o mandonismo e a manipulação eleitoral.

Mas, como todo Estado de natureza capitalista – entendido como expressão do movimento contraditório das classes sociais –, o Estado brasileiro, embora tenha assumido com desenvoltura a sua função de “revolução de cima para baixo”, frente à politização das massas se viu obrigado, por vezes, a estabelecer alianças com as classes subalternas, a exemplo do populismo dos anos pós-1930, analisado por Octavio Ianni na sua obra clássica: O colapso do populismo no Brasil, lançado nos anos duros da ditadura militar pós-golpe de 1964.

Compartilhando desse pensamento, Carlos Nelson Coutinho (2011) dá ênfase ao esforço de busca de legitimidade da burguesia emergente, junto aos segmentos subalternizados, e às formas estabelecidas de poder autocrático, colocando na invisibilidade as lutas sócio-históricas da classe trabalhadora rural e dos movimentos do operariado urbano.

Ao longo dos anos pós-1945, quando, no cenário mundial, a batalha entre o socialismo e o imperialismo capitalista ganhou envergadura, a burguesia brasileira, aliando-se às velhas classes dominantes, de costas para as classes subalternas – pela “via não clássica” –, criou as condições objetivas ao amadurecimento do capitalismo.33 (COUTINHO, 2011).

Na explicação de Nunes (2010, p. 39), a gramática política brasileira – sintetizada na interação entre o clientelismo, o isolamento burocrático, o corporativismo e o universalismo procedimental – deu robustez ao Estado nacional desenvolvimentista, configurando-se, como em toda a América Latina, num traço marcante no processo de democratização do País. O Estado Novo varguista foi palco de inúmeras legislações corporativas, da criação de empresas estatais e da ampla reforma no serviço público. Com base na meritocracia, novas práticas na gestão dos negócios públicos interagiram com a antiga gramática do clientelismo, instalando- se, no Brasil, um “Estado de compromisso” – contraditório – disposto a agradar a muitos interesses, inclusive antagônicos.34

Resgatando a ideia de Rodriguez (2004) de que o direito tanto pode produzir efeitos conservadores como revolucionários, cabe observar que, naquelas circunstâncias, se em um determinado momento o governo sinalizou com a institucionalização de regras sobre o trabalho assalariado, por outro reforçou o seu braço ditatorial sobre o direito de organização dos trabalhadores, com a lei de regulação da sindicalização.

Nesse conjunto de interpretações são identificadas inúmeras convergências. Primeiro, o jeito brasileiro35 de inserção no capitalismo industrial – mesmo que tardiamente –, alinhando os interesses da burguesia emergente da recente economia aos interesses da hegemonia oligárquica, recompondo as estruturas de poder no Brasil, que passa a ser mediado pelo Estado.

Segundo, a burguesia – porta-voz dos valores da modernidade –, na prática, não se desprendeu de imediato do conservadorismo da oligarquia rural, criando contradições acentuadas entre os ideais liberais de base republicana e a ordem vigente. Terceiro, os pilares que deram sustentação à classe dominante foram erguidos sobre o autoritarismo, a repressão, o mandonismo e o amordaçamento das massas populares.

destruição da grande propriedade pré-capitalista e a criação de um campesinato livre, enquanto o caminho „não clássico‟ tem lugar quando a grande propriedade e a velha classe latifundiária se conservam, introduzindo progressivamente e „pelo alto‟ novas relações capitalistas”.

34 Para José Murilo de Carvalho (2010), a construção da cidadania no Brasil contrasta com a sequência histórica

de fundação dos direitos desenvolvida por Marshall, para quem a cidadania é expressão do amadurecimento e ampliação dos direitos civis, políticos e sociais. Diferentemente da trajetória dos direitos na Europa, no Brasil a cidadania se ergueu por caminhos tortuosos, com ênfase, principalmente, nos direitos sociais.

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A expressão “jeito brasileiro”, sem qualquer teor pejorativo ou folclórico, é utilizado nesta tese a partir das referências teóricas construídas na obra Jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual do que os outros, entendido como “mecanismo de adaptação face às condições de „vida‟ ou da „sociedade‟” (BARBOSA, 2005, p. 83), que, na constatação da sua pesquisa, aparece tanto nos discursos eruditos quanto nos populares.

Mesmo nos anos pós-1945, quando o processo de democratização36 assentou novas bases de um sistema político regido por partidos, as antigas práticas clientelistas da velha República se fizeram presentes na vida política do País.Apesar da centralidade da política partidária e eleitoral, da valorização do Congresso com poder de controle sobre o orçamento da União, do controle legislativo sobre as ações do executivo, ergueu-se um modelo de Estado focado na tecnoburocracia.

Enquanto o Congresso e os partidos estavam ocupados com questões gerais, embora ligadas ao debate político nacional, às políticas redistributivas ou a temas fundamentais, como o problema fundiário, a burocracia insulada dedicava-se à formulação e administração de políticas vinculadas ao processo de industrialização (NUNES, 2010, p. 131).

A crise capitalista mundial dos anos pós-guerra, atrelada ao crescimento das demandas sociais da classe trabalhadora – organizados em novas formas de reivindicação no campo e na cidade – e mesmo dos grupos empresariais emergentes, são fatores que contribuíram para que o curto espaço de tempo do regime político inaugurado na Constituição Federal de 1946 entrasse em colapso (LEMOS, 2011).

No Estado institucional, em nome da segurança nacional, adotou-se como base o mesmo “sincretismo político”37 que ergueu o moderno Estado brasileiro para dar forma e conteúdo ao aparelho estatal durante a ditadura pós-1964. Sob o discurso da planificação, a burguesia concentrou poder no incremento de condições favoráveis à maior lucratividade do capital. Ganhou vulto um modelo híbrido de burocracia, organizada com referência nos aspectos técnicos e políticos na formação da elite governante e na formulação de políticas públicas indutoras da aceleração do desenvolvimento capitalista.

Entre a necessidade de intensificação da acumulação capitalista de uma economia periférica em crise e a pressão social eclodida com a brusca expansão da sociedade de classes, a classe dominante encontrou, na repressão policial-militar e na compressão política, os mecanismos necessários à normalidade e à legitimidade, que, de acordo com Florestan Fernandes (2005), conduziram à consolidação da autocracia burguesa.

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Democratização é entendida como processo histórico, concreta força política ordenadora de formação econômica sobre a qual nasce, opera, problematiza e desaparece. O termo é utilizado por Luckács para enfatizar a dimensão dinâmica da democracia, tirando-lhe a perspectiva a-histórica e estática que muitos autores lhe atribuem. LUKÁCS, 2008.

37 “Sincretismo político” é uma expressão utilizada por Oliveira Nunes (2010) na sua interpretação da política de

Para manter seus próprios privilégios e conter os anseios da crescente massa de trabalhadores, a burguesia não só instituiu formas de manter a “situação sob controle”, sob o signo de promoção da paz social necessária ao crescimento e ao progresso, como institucionalizou mecanismos de neutralização de forças antiburguesas de dentro e de fora da classe dominante.

Nesse caldeirão chamado Brasil – de muitas contradições e variados interesses –, o imaginário político brasileiro reproduziu o mesmo movimento contraditório que marcou o desenvolvimento capitalista no Brasil, onde o velho e tradicional – revitalizados – se incorporaram ao moderno, dando forma e conteúdo às práticas sociais e políticas. As estruturas arcaicas de produção baseadas nas relações escravocratas – origem do poder político centrado na terra, o coronelismo38 – coexistiram com as reformas modernizadoras do emergente capitalismo industrial, no início do século XX.

Nesse cenário – entre o velho e o novo –, a antinomia dádiva versus direito amalgamam-se à estrutura social autoritária, constituindo-se uma unidade dialógica explicitada nas diferentes formas institucionalizadas de poder no percurso de construção democrática no País.

Fundada na polaridade da divisão social das classes no Brasil – instalando-se num polo o mundo das “carências” e, no outro extremo, o universo dos “privilégios” –, essa contradição ganha expressão e vulto no populismo39, eixo articulador da política brasileira, apontado por Chauí (1994) como principal obstáculo à democratização da sociedade.

Uma carência é sempre específica e particular, não conseguindo generalizar- se num interesse comum nem universalizar-se num direito sem deixar de ser privilégio. Um privilégio é sempre particular e específico, não pode generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito sem deixar de ser um privilégio (CHAUÍ, 1994, p. 28).

As velhas práticas oligárquicas alicerçadas nas invenções históricas e construções culturais dos colonizadores, travestidas de novas, alimentaram a formação do Estado

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Coronelismo, expressão conceituada como o “compromisso que resultaria num sistema de reciprocidade em que de um lado estão os chefes municipais e os coronéis com seus currais eleitorais, e, de outro, a situação política dominante do Estado que dispõe do erário, dos empregos, dos favores, da força policial” (SALES, 2006, p. 7).

39 O populismo é explicado por Chauí (2000) como uma forma de exercício de poder da classe dominante, sem

mediações com as instituições políticas, em que se procura uma relação direta entre governantes e governados. O poder é pensado e realizado sob a forma de tutela e favor, personalista, autocrático, despótico e teológico.

nacional, reproduzindo relações sociais sob a forma de mando/obediência e do favor, sem discernimento entre o público e o privado, configurando-se, na tese de Chauí (2010), um forte obstáculo à construção dos direitos no Brasil.

Nas relações escravocratas de base patriarcal espraiadas em toda a vida econômica e social, Caio Prado Júnior (2011) identifica as raízes da relação contraditória entre a dádiva e o direito. Em suas análises, as práticas da colônia de recursos escassos atravessaram a linha do tempo, ampliando o fosso entre os extremos da escala social. De um lado, os possuidores, dirigentes da colônia. De outro, aqueles que viriam a se constituir, ma is tarde, como a massa trabalhadora.

Na apreciação de Schwarz (2009), a estrutura social da modernidade fez nascer uma terceira classe de população destituída de qualquer propriedade: homens e mulheres, livres das correntes da escravidão, não proprietários e não incorporados ao trabalho assalaria do, cuja reprodução social ficara à mercê do favor dos homens de bem, os proprietários.

Assim, a ligação do país à ordem revolucionada do capital e das liberdades civis não só não mudava os modos atrasados de produzir, como os confirmava e promovia na prática, fundando neles uma evolução com pressupostos modernos, o que naturalmente mostrava o progresso por um flanco inesperado. O estatuto colonial do trabalho, desassistido de quaisquer direitos, passava a funcionar em proveito da recém-constituída classe dominante nacional, a cujo adiantamento a sua continuidade interessava diretamente (SCHWARZ, 2009, p. 37).

Essas referências à pesada herança colonial escravista também estão presentes nos estudos de Chauí (2010), que identifica na forma hierarquizada e verticalizada de como a sociedade brasileira se organiza na contemporaneidade o seu maior legado. São relações sociais assimétricas e desiguais, fundadas em relações de mando e subserviência originadas no autoritarismo e no clientelismo. Entre os traços mais marcantes, destaca as relações de favor e tutela, a naturalização da desigualdade e da diferença, o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado.

As relações de clientelismo, afirma Bahia (2003), significadas como costume, são relações sociais que têm como atores o cliente e o patronus40, traduzido na figura do padrinho ou protetor, que assume papel de dominante. Podem ser trocas diretas, baseadas no

40 Patronus é uma expressão de origem latina, utilizada na Roma antiga como “defensor da plebe”, sendo

utilizada a expressão cliente para o protegido (Disponível em: http://origemdapalavra.com.br. Acesso em: 30 dez. 2011.)

imediatismo e no individualismo envolvendo recompensas materiais ou indiretas, medidas por valores sociais como aprovação e aceitação.

No caso das trocas institucionalizadas, fundadas em normas coletivas, a autoridade independe da pessoa que a exerce, gerando uma obrigação moral – diferentemente do uso pessoal do poder que aplica indiscriminadamente a norma, ameaçando a mútua confiança, estabelecendo uma relação de interesse imediato entre quem doa e quem recebe. Nas análises sobre o fenômeno do clientelismo, Bahia (2003) identifica algumas características estruturais, comuns em todas as modalidades de patronagem: distribuição e acesso desigual de renda, insegurança social e dependência socioeconômica, falta de acesso ao poder político, a bens e serviços públicos.

O clientelismo, característica marcante na cultura política dominante, floresceu e criou raízes na sociedade agropecuária no Nordeste brasileiro, embrenhando-se em todo o agreste e no semiárido do sertão, centrada na figura do latifúndio – domínio de extensas