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O controle democrático e os espaços públicos participativos: desafios para sua consolidação

4 SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: BONITO PRA CHOVER

4.2 O controle democrático e os espaços públicos participativos: desafios para sua consolidação

Na verdade, a estruturação, formatação e organização da assistência social, conforme dispõe o marco legal que lhe dá forma e conteúdo, desde a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social em 1993, já institucionalizou a participação popular na formulação da política e controle das ações, sinalizando para um novo parâmetro no jeito de gestar a coisa pública.

O sentido era propor formatos organizacionais mais democráticos, abertos à interlocução com diferentes sujeitos locais: usuários, entidades, trabalhadores e outros agentes públicos, o que deveria ocorrer por meio da criação de instâncias deliberativas, de caráter permanente e composição paritária – governo e sociedade civil – nos diferentes níveis de governo.

Foi assim que os primeiros instrumentos normativos da assistência social na perspectiva do direito – PNAS/1998 e NOB2 –, reconhecendo a importância estratégica de institucionalização de espaços de democratização, negociação de consensos e controle da gestão, indutores de relações mais diretas entre a administração do Estado e a sociedade, determinaram que os conselhos fossem criados por meio de legislação específica, sendo- lhes atribuída, entre outras, a competência de aprovar, fiscalizar e avaliar os resultados da política de assistência social. Como mecanismo de alargamento da participação popular, instituíram-se as conferências e os fóruns permanentes de debates sobre os temas pertinentes à política.

Em 2005, de 5.564 municípios em todo o País, contavam com a estrutura de conselhos municipais de assistência social como controle social da política 98 ,8% dos municípios. Desses, 94,8% se identificavam com caráter deliberativo e 98,4% com composição paritária, embora se tenha o registro de que em 20,2% dos municípios a representação da sociedade civil ainda era indicação do poder público. Em relação à composição da sociedade civil, os dados indicam que, naquele ano, em 77,3% dos municípios era assegurada a participação de representação de entidades de assistência social; em 66,0% existia a representação de trabalhadores da área e em 65,8% registrava -se a presença de representação dos usuários na composição dos conselhos (BRASIL/IBGE, 2005).

Do mesmo modo que foram criadas as instâncias de diálogo entre a administração do Estado e a sociedade civil, as normativas também previram a criação das comissões intergestoras como espaços de interlocução entre os entes governamentais, viabilizando a construção de consensos entre os diferentes interesses dos três níveis de governo, estimulando a organização de gestores estaduais e municipais em fóruns próprios: Fórum Nacional de Secretários Estaduais de Assistência Social (Fonseas) e Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas), espraiado em todo o País pela criação de fóruns em cada estado da federação na forma de colegiados estaduais de assistência social (Coegemas).

Do ponto de vista institucional – em relação ao controle social democrático –, a PNAS/2004 e NOB/2005 reeditam as determinações das normas anteriores em relação aos mecanismos instituídos de participação popular, mas incorporam nas tarefas que estariam por vir a adoção de medidas fomentadoras do protagonismo dos usuários nos espaços públicos de debate sobre a operacionalização e efetivação do Suas.

Reconhecendo que, nesse campo do controle democrático, não há relação de causa/efeito entre institucionalização e participação direta, mas de uma invenção construída nas práticas sociais cotidianas, nos embates e lutas, a novidade embutida no Suas é a perspectiva de alargamento de espaços abertos à participação e a indução de práticas democratizantes na gestão do sistema. Recomendam-se, a partir do Suas, conforme consta na PNAS/2004, a estruturação de ouvidorias viabilizando que o direito seja reclamável para os cidadãos e cidadãs; a promoção de eventos temáticos para além dos espaços já instituídos; reuniões itinerantes dos conselhos; o incentivo à instalação de espaços informais de debates sobre assistência social; e a criação de instrumentos e formas de dar maior publicidade às informações da assistência social, tornando-as alcançáveis a todos os usuários da política.

Indiscutivelmente, o Suas é portador de inovações gerenciais significativas, em se considerando o fato de que dá materialidade a uma política a qual, há pouco mais de duas décadas, não estava incluída entre as funções do Estado, ainda presa às amarras da filantropia. Na sua gestão, estão previstas tecnologias e redesenhos nas estruturas organizacionais, antes inexistentes na área da assistência social, marcada tradicionalmente pelo voluntarismo, impondo novos arranjos organizacionais que entram em conflito direto

com os mecanismos de gestão burocrática da clássica administração pública expressos em rotinas e procedimentos orientados por padrões universais e homogeneizantes.65

São novas linguagens democratizantes, que ressignificam saberes, competências, habilidades, posturas e atitudes profissionais. Dos trabalhadores é requerida melhor instrumentalidade para fazer a mediação teórico-prática necessária à concretização do acesso aos direitos socioassistenciais, rompendo com as práticas conservadoras associadas à caridade e à benemerência. Aos gestores, a promoção da nova ordem institucional e organizacional na esfera local, ampliando os espaços de participação democrática nas decisões. Aos demais agentes sociais e políticos, o desafio de ampliação dos espaços públicos, a autonomia e a soberania necessárias para, além de assegurar direitos historicamente conquistados, serem capazes de produzir novos direitos.

O rol de providências impostas às três esferas de governo para fazer a gestão do sistema é infindável. Vai desde a existência de um marco legal básico sobre conselho, fundo e plano à estruturação da rede de serviços, definição de infraestrutura básica para funcionamento da gestão, criação de instrumentos de gestão adequados ao planejamento, execução, monitoramento e avaliação das ações, mecanismos de capacitação, fortalecimento de instâncias de participação dos usuários, trabalhadores e entidades, entre outras iniciativas necessárias ao adequado funcionamento do sistema (NOB/SUAS, 2012).

E se, do ponto de vista conceitual, permanece a necessidade de maior clareza e objetividade, na diretriz da democratização da política são muitas polêmicas que circulam na efetivação do Suas como um sistema participativo. Seja em relação à própria democratização da gestão pública, vez que coloca em xeque o jeito tradicional de conduzir a coisa pública – marcada por práticas burocráticas ancoradas na cultura conservadora do clientelismo e patrimonialismo –, seja relacionada à participação popular na formulação e na fiscalização da execução da política, em que a partilha do poder de decisão se depara com o legado histórico de construção de uma cidadania às avessas no Brasil, onde a luta social é frequentemente criminalizada e o protagonismo da sociedade civil relegado ao segundo plano.

Certamente, assim como as demais políticas setoriais – saúde, educação, habitação e outras reorganizadas a partir da fundação do atual Estado democrático de direito –, a

65 O termo “arranjos organizacionais” é utilizado nas teorias organizacionais modernas em reconhecimento à

necessidade se atribuir a diferentes formas organizacionais abordagens mais contextualizadas que levem em consideração as especificidades locais com suas peculiaridades sociais, políticas, culturais e econômicas. “[...] toda forma organizacional é o resultado de disputas de poder e da sua imersão em contextos socioculturais, com fronteiras sem delimitação clara” (LOPES; BALDI, 2005).

organização da assistência social no formato de um sistema único, descentralizado e participativo alarga o conceito de gestão pública. Implica muito debate e negociação com diferentes atores políticos locais, inclusive aqueles que, diante da ausência do Estado, com base na filantropia, atuaram durante muitas décadas nesse campo.

O Estado da nova república, instituído pela Carta Magna de 1988, assume dupla função: garantir um Estado de direito e proteger com equidade e igualdade os direitos básicos de cidadãos e cidadãs, assegurando-se a ampla participação popular. Consta no preâmbulo do texto constitucional que a instituição do Estado democrático se destina “[...] a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias [...]”.

Na interpretação de Coutinho (1996), trata-se de um Estado, construído historicamente da manifestação dos anseios populares de um novo momento na luta política, em que a sociedade civil assume-se como protagonista, com voz e voto. A arquitetura desse novo Estado pós-1988 já não expressa uma luta entre as burocracias administrativas, de um lado, e de outro os representantes das classes subalternas constituídas de eleitores proprietários. Alarga-se o horizonte para a inventividade democrática. O novo Estado republicano, expressão da luta de classes, insere-se no movimento histórico de uma variedade de instituições e diversidade de interesses de grupos sociais distintos, produzindo e difundindo novos valores e ideologias que vêm impactando na gestão das políticas sociais, redefinindo a agenda política e ressignificando os espaços públicos.

Esse é o contexto, em que o controle social democrático ganha visibilidade na gestão descentralizada e participativa do Suas. Uma invenção nascida dos movimentos sociais dos anos 1980, o controle social democrático prevê o poder popular no exercício do controle sobre ações e finanças públicas, sem prejuízo do controle institucional dos órgãos internos – ouvidorias e controladorias – e dos órgãos externos – os tribunais de contas, instrumentos de controle público inscritos na Constituição Federal de 1988.

São diretrizes normativas de vies democratizante que se colocam em linha de confronto com o “autoritarismo social”, expressão utilizada por Marilena Chauí (2010) para desvendar e desconstruir a ideia de “identidade nacional” advinda do acaso, como se não tivesse sido construída historicamente no processo de formação da sociedade brasileira. São regulações que propõem novas arenas políticas em um cenário onde o clientelismo, o

corporativismo e o burocratismo – na interpretação de Edson Oliveira Nunes (2010), gramáticas da política brasileira – estão ainda tão enraizadas na estruturação das relações sociais e do Estado brasileiro.

Todo esse processo revela que, para além das formalidades, o processo de construção do Suas traduz o movimento histórico de invenção da descentralização do poder decisório entre as esferas de governo e os diferentes espaços da sociedade no campo da assistência social. Como sugere Márcia Pinheiro (2013), o poder democratizado e compartilhado é condição sine qua non para haver participação política.

É inegável o peso da legalidade das instâncias deliberativas, espaços de negociação intergovernos – as chamadas instâncias de pactuação –, dos espaços de articulação e mobilização para a consolidação do direito à assistência social.

A Loas e, posteriormente, o Suas vão fortalecer a expansão dos conselhos gestores de política como espaço de controle democrático da política pública. Presentes em todos os municípios brasileiros, os conselhos de assistência social são hoje chamados por todas as normativas do Suas a fiscalizar e a garantir a operação da assistência social enquanto direito de cidadania (NEVES; SANTOS, 2012, p. 421).

Em 2013, dos 5.570 municípios brasileiros, em 99,9% já existem conselhos de assistência, dos quais 23,8% estruturaram canais de denúncia abertos aos usuários da assistência social. Um parâmetro que pode mensurar o grau de comprometimento desses conselhos com a implementação da política de assistência social é o fato de que 99,8% dos conselhos existentes efetuam a fiscalização dos serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais do Suas (BRASIL/IBGE, 2013).

Não resta dúvida que o crescimento dos conselhos de assistência social contribui para ampliar e ressignificar até mesmo os procedimentos da democracia formal e para agregar novos elementos à invenção da participação popular.

Porém, a implementação legal não garante por si só o seu fortalecimento porque depende da relação entre a cultura política existente nas práticas do Estado e da própria sociedade civil na ruptura com práticas antidemocráticas – aqui destacamos o clientelismo e patrimonialismo do Estado brasileiro no uso do dinheiro público. Uma das principais dificuldades no desenvolvimento de uma cultura pública de direitos é a vontade do governo em entender que esse é o melhor caminho para garantir a democracia, as

decisões públicas no sentido da transparência e partilhar o poder de decisão com a sociedade civil (NEVES, 2014, p. 241).

A participação popular não ocorrerá apenas pelo poder imperativo da lei: é preciso assegurar legitimidade à consolidação da assistência social como direito. Para tanto, são necessárias práticas participativas, centradas em metodologias dialógicas, principalmente em se tratando de operacionalização do Suas.

Tendo como parâmetro uma política com característica paliativa e de atendimento aos incapazes, uma ação social restritiva, focalizada em categorias como crianças, idosos e deficientes, a CF/88 e as legislações posteriores não transformaria os usuários da assistência social de forma automática em sujeitos “empoderados” de direitos, lutando para a conquista e ampliação dos mesmos. Afirma-se: há uma nova travessia a ser percorrida. Um processo em construção (PINHEIRO, 2013, p. 160).

Resultado de uma consultoria prestada ao Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Pinheiro (2013) elenca alguns exemplos de práticas participativas que já vêm sendo adotadas nos municípios: realização de seminários e debates públicos sobre o fazer profissional; formação de grupos reflexivos com usuários por meio dos quais se constroem identidades coletivas; as próprias unidades de atendimento da assistência social se transformando em espaço de organização de demandas coletivas; iniciativas de comissões locais de acompanhamento dos serviços. Identifica ainda algumas dificuldades a serem superadas: a racionalidade instrumental implícita nas atribuições dos conselhos, a tendência à burocratização na organização do cotidiano das equipes, atendimento socioassistencial ainda muito centrado em demandas individuais.

Adotando essa linha de raciocínio, é possível identificar – no próprio percalço do reconhecimento da assistência social no campo do direito – traços reveladores da inventividade democrática no campo da assistência social. Desde a aprovação da Loas em 1993 até 2013, foram realizadas dez conferências nacionais, precedidas de conferências estaduais e municipais, mobilizando milhares de pessoas para o debate sobre temas pertinentes à política de assistência social em todo o País.

Já em 2001, os estudos de Boschetti davam conta da importância dos conselhos, conferências e fóruns na área da assistência social, considerando suas características históricas.

A conversão do direito leal em direito legítimo dependerá, sobremaneira, da consolidação destes espaços de participação e controle social. Ocupá-los e (re)construir as intervenções na área com base nos princípios e diretrizes indicadas na Loas é condição sine qua non para a assistência social seja efetivada na condição que a Constituição lhe elevou: direito do cidadão e dever do Estado (BOSCHETTI, 2003, p. 171).

Como discorrido anteriormente, a linha do tempo da assistência social no patamar dos direitos sociais é delineada por meio do intenso debate democrático e construção de consensos no modelo federativo brasileiro. É importante registrar que, num cenário de ausência de instrumento legal que regulasse o Suas – entre 2005 e 2011 –, foram os espaços de deliberação, pactuação, articulação e mobilização da assistência social que se constituíram em importantes mecanismos de democratização da política.

É inegável o avanço no marco regulatório do Suas – agora inscrito em lei, desde 2011 – e o traçado do novo desenho institucional no modo de atender na assistência social, buscando dar-lhe materialidade como direito social – obrigação do Estado – com controle social democrático. Entretanto, ainda são visíveis práticas cotidianas e fazeres marcados pelo assistencialismo e pela benemerência, expondo fraturas entre o discurso do direito e o dia a dia na efetivação da política de assistência social.

Na pesquisa empírica organizada por Berenice Couto, Carmelita Yazbek, Ozanira Silva e Raquel Raichelis sobre a implantação do Suas em sete estados brasileiros e publicada no livro O Sistema Único de Assistência Social no Brasil: uma realidade em movimento (2010), veem-se as marcas de um processo em contradição, em transição, no qual são identificados a convivência entre valores da nova institucionalidade e os jeitos de fazer referenciados na cultura conservadora do patrimonialismo e do clientelismo.

O traçado de efetivação do Suas revela diferentes estágios, próprios de um sistema complexo e dinâmico, que ainda não concluiu completamente o processo de transição do modelo tradicional de ações pontuais e fragmentadas para o modelo sistêmico de gestão compartilhada, descentralizado e participativo. E, como toda tarefa inacabada, ainda requer ajustes, principalmente no jeito de fazer e adequações nas legislações locais – desafios associados à própria cultura política brasileira –, questões postas na efetivação da assistência social, sob a lógica do direito, que não podem ser ignoradas.