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3 O JEITO BRASILEIRO DE CONSTRUIR/DESCONSTRUIR DIREITOS

3.3 Os diferentes arranjos de proteção social brasileira

Nas diferentes abordagens sobre política social no Brasil, identifica-se, nas interpretações de Pereira-Pereira (2009), Ivanete Boschetti (2009) e Elaine Behring (1998), a reiteração da premissa de que a política social é um processo inscrito na sociedade burguesa – expressão de suas múltiplas determinações: econômicas, políticas e culturais – de natureza contraditória, resultado das relações complexas do modo de produção capitalista e dos conflitos e luta de classes nele engendrados.

Essa premissa tem se constituído como um dos pilares que sustentam as análises sobre as particularidades históricas do Estado brasileiro, marcado pela desigualdade e pelo autoritarismo, no contexto de transição do capitalismo competitivo ao monopolista no Brasil, que, além de aprofundar a concentração da riqueza socialmente produzida por todos, contribuiu para acentuar o distanciamento entre o Estado e as classes subalternas, excluídas reiteradamente dos processos decisórios.

Outra base de sustentação teórica encontra ancoragem na tese defendida por Salvador (2010) de que a industrialização tardia, associada à limitada pressão social dos trabalhadores e à estrutura política oligárquica, tenha contribuído para que o Brasil tenha tido o atraso de 30 anos na adoção de medidas de proteção em relação aos países do capitalismo central. E, quando adotadas, foram arquitetadas e moldadas no interior das contradições históricas da ordem social vigente, sendo convocadas ora pra atender os interesses do capital, ora as necessidades sociais agravadas com o aprofundamento da questão social brasileira.

“A proteção social, onde quer que tenha sido empregada, sempre foi alvo de interesses discordantes entre os seus estudiosos, executores e destinatários”, confirma Potyara Pereira (2013, p. 285) em recente tese de doutoramento.

Mesmo que não se possa afirmar categoricamente que o Brasil tenha implantado uma política de proteção social ampla, nos moldes do padrão de alguns países europeus de meados do século XX – centrado no pleno emprego e na universalização da cobertura de mínimos sociais como medida de enfrentamento à pobreza –, é preciso reconhecer que os movimentos de inconformismo e resistência às mudanças anunciadas pela modernidade no Brasil conduziram a algumas importantes conquistas no campo dos direitos sociais ligados ao

trabalho, a exemplo da efetivação dos benefícios previdenciários, nos moldes do modelo bismarckiano.42

O reconhecimento legal dos benefícios previdenciários institucionalizados na Lei Eloy Chaves (1923) e a presença da legislação trabalhista na mediação das relações capital versus trabalho podem ser apontados como configuração do primeiro padrão de proteção social no Brasil. Trata-se de um desenho arquitetado no início dos anos novecentistas, sob a lógica do seguro social, definidora dos critérios de acesso à previdência e à saúde, perdurando até a Constituição Federal de 1988.

O princípio dessa lógica é garantir proteção, às vezes exclusivamente, e às vezes prioritariamente, ao trabalhador e à sua família. É um tipo de proteção limitada que garante direitos apenas àquele trabalhador que está inserido no mercado de trabalho, o que contribui mensalmente como autônomo ou segurado especial à seguridade social (BOSCHETTI, 2009, p. 326).

Sem dúvida, um regime de proteção social restritivo, de viés corporativo, destinado somente aos segmentos da população que estavam inseridos formalmente no mercado de trabalho, fundado na contribuição financeira do trabalhador, estabelecendo-se um tipo de “cidadania regulada” 43

, cujos direitos ficaram circunscritos ao lugar ocupado no modo de produção capitalista.

Aos trabalhadores fora do mercado, restava a assistência social como uma ajuda aos necessitados, organizada no campo da caridade e da filantropia, constituindo-se, nos dizeres de Sposati (1992), uma “cidadania de segunda classe”. Embora essa adjetivação seja uma forma de explicitar o caráter excludente do modelo de proteção social focado na lógica do seguro, trata-se, na verdade, de uma expressão que obscurece em certa medida a negação do acesso ao status de cidadania de um elevado número pessoas do campo e da cidade.

42 “O chamado modelo bismarckiano é considerado como um sistema de seguros sociais, porque suas

características assemelham-se às de seguros privados: no que se refere aos direitos, os benefícios cobrem principalmente (e às vezes exclusivamente) os trabalhadores, o acesso é condicionado a uma contribuição direta anterior e o montante das prestações é proporcional à contribuição efetuada; quanto ao financiamento, os recursos são provenientes, fundamentalmente, da contribuição direta de empregados e empregadores, baseada na folha de salários; em relação à gestão, teoricamente (e originalmente), cada benefício é organizado em Caixas, que são geridas pelo Estado, com participação dos contribuintes, ou seja, empregadores e empregados” (BOSCHETTI, 2009, p. 324).

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“Cidadania regulada” é um termo utilizado por Wanderley Guilherme dos Santos (1979) para adjetivar o tipo de cidadania enraizado no sistema de estratificação ocupacional, cujas ocupações eram definidas por lei, assumindo a condição de pré-cidadania todos os trabalhadores rurais e urbanas, cujas ocupações não fossem devidamente regulamentadas.

Nesse tempo, afirma Murilo de Carvalho (2010, p. 61):

[a] assistência social estava quase exclusivamente nas mãos de associações particulares. Ainda sobreviviam muitas irmandades religiosas oriundas da época colonial que ofereciam a seus membros apoio para tratamento de saúde, auxílio-funerário, empréstimos, e mesmo pensões para viúvas e filhos. [...] Mencionem-se, ainda, as santas casas de misericórdia, instituições privadas de caridade voltadas para o atendimento aos pobres.

Tradicionalmente uma ação localizada no campo da benemerência e da filantropia, a assistência social apartada do campo dos direitos sociais mantinha forte vínculos com a ação da Igreja Católica, tendo-se no registro das primeiras experiências de enfrentamento à questão social pelo Estado assentos de medidas pontuais, de natureza corporativa, que perduraram por mais de 50 anos, desde a emergência do Estado nacional (OLIVEIRA, 2009).

Situada no espaço doméstico e do mercado, a assistência social fincou suas raízes no paradigma conservador do amparo aos necessitados e destituídos, cujas alternativas de sobrevivência estiveram limitadas à família e à sociedade, por meio da caridade e solidariedade cristã. Na interpretação de Sposati (2012), enquanto nos países de capitalismo avançado a seguridade social foi erguida associada à conquista de direitos sociais e à ampliação do exercício da cidadania, nos países de capitalismo periférico instalou-se um modelo de proteção fundado na “sociedade providência”, onde a solidariedade social da sociedade civil se constitui a protagonista na atenção aos despossuídos e destituídos.

Cabe destacar que, mesmo quando o Estado brasileiro atraiu para si a responsabilidade para com o atendimento às necessidades sociais, caracterizando-se como uma “típica política social”, a ação estatal se organizou com base na oferta de ajuda às mulheres e aos homens carentes, fundada no dever moral cristão, impregnada de representações simbólicas da benemerência. Na análise de Sposati (2010), alheia aos reclamos sociais dos movimentos inconformistas com a realidade brasileira, a classe dominante insistiu em tratar a pobreza como uma disfunção individual – como caso de polícia –, enfrentada por meio de aparelhos repressivos.

No registro histórico das primeiras práticas estatais – Boschetti (2003), Couto (2010), Pereira-Pereira (1996), Sposati (2010), Santos (1979), entre outros –, é possível identificar, no campo da assistência social, formas subsidiárias de subvenção às organizações para realização

de um conjunto de ações assistemáticas, descontínuas, pontuais e fragmentadas – distantes do seu reconhecimento legal como um direito.

O curioso é que, no modo como se organizou institucionalmente, com foco no amparo social e na caridade originada da boa vontade, a assistência ganhou envergadura – não como direito, mas como “ação social”, expressão linguística presente até os dias de hoje nas referências à assistência social.

Ao analisar a forma como a elite brasileira enfrentou a pobreza de modo a relativizar os conflitos e preservar seus privilégios, Alayõn (1992) também aponta o assistencialismo como uma estratégia historicamente adotada pela classe dominante, com a dupla função de reduzir a miséria que gera e perpetuar o sistema de exploração. De outro ângulo, reconhece que, embora as políticas sociais sejam expressão da forma como as classes dominantes buscam reproduzir a força de trabalho necessária ao desenvolvimento do capitalismo, é inegável a força da luta social dos despossuídos na busca de resposta às suas enormes dificuldades, constituindo-se a principal força motriz para as conquistas, que mais tarde – em 1988 – adquiriram status de direitos sociais no Brasil.

Na visão de Alayõn (1992, p. 50), “[...] é o grau de desenvolvimento das lutas de classes que vai orientando esse processo em relação à implementação ou não de tais ou quais políticas sociais (e em tal ou qual amplitude)”.

No vaivém da luta social por melhores condições de vida, muito lentamente, em aproximadamente 60 anos, o Brasil alargou o regime de proteção social para além da lógica do seguro.

No período histórico de instituição do Estado democrático de direito, em 1988, os novos valores, que vinham se incorporando na vida política, além de (re)significar a dimensão do público, estabeleceram outras âncoras ao sistema de proteção social, incorporando tardiamente nos sistemas públicos de proteção social dos anos pós-1988 as diretrizes beveridgianas.

Inaugurou-se uma nova era no padrão de proteção social brasileiro, provocando inúmeros estudos, análises e debates registrados em ampla literatura. É fato que o novo arranjo constitucional de 1988 impulsionou, nos anos que se seguiram, a criação de sistemas públicos protetivos, de caráter descentralizado e participativo, fundado nas diretrizes e princípios do novo pacto federativo.

Os escritos de Jaccoud (2009) enaltecem o alargamento dos direitos sociais prescritos na Carta Magna, valorizando a instituição da seguridade social – saúde, assistência social e previdência – como um sistema básico de proteção social, a obrigatoriedade do Estado, o reconhecimento da assistência social como política pública e a extensão de direitos previdenciários como alterações radicais que contribuíram para o crescimento das políticas sociais.

Nas análises de Boschetti (2009), esse rearranjo constitucional na seguridade brasileira, apesar de apontar para um sistema amplo de proteção social, acabou caracterizado como um sistema híbrido conjugado de direitos derivados do trabalho (previdência), direitos de caráter universal (saúde) e direitos seletivos (assistência), com dificuldades objetivas de integração e articulação.

No ponto de vista de Yazbek (2012), a diretriz constitucional de descentralização, participação popular no controle das políticas sociais e a perspectiva de integração de políticas sociais revelam o caráter inovador do reordenamento do sistema protetivo do País a partir da Constituição Federal de 1988.

Existem muitos outros aspectos apontados na configuração do padrão de proteção social brasileiro pós-1988 que ganham notoriedade no debate: os princípios da universalidade e equidade; a reconfiguração do fundo público; a redefinição no papel do Estado na garantia do acesso à renda, bens e serviços sociais públicos, para além do seguro social, reconhecidos jurídica e socialmente como exercício de plena cidadania.

Esse processo inscreveu juridicamente a assistência social no novo campo da seguridade social e da proteção social pública, explicita Yazbek (1996). Mas, como o avanço da democratização da política se entrelaça com os rearranjos das políticas sociais, criando antagonismos entre velhas e novas práticas e formas de ser e fazer, a travessia do tradicionalismo ao reconhecimento público da assistência social como direito, apesar do status jurídico legal, tem sido muito difícil, embora os ventos democráticos façam desse momento histórico um tempo decisivo.

Se no campo jurídico institucional há registro de significativos avanços, na sua organicidade e financiamento ainda há muito a ser feito. Instituída para atender às necessidades sociais de cidadãos e cidadãs, como parte integrante do sistema de proteção social brasileiro, juntamente com a saúde e a previdência social, a assistência social se

coloca como um dever do Estado, produzindo-se, no outro extremo, um direito subjetivo (COUTO, 2011).

No modo de produção capitalista, explica Pereira-Pereira (1996), a assistência social sempre esteve no limbo – entre os imperativos da rentabilidade e das necessidades sociais –, vislumbrando-se modelos que transitam entre o assistencialismo – modelo stricto sensu – e a lógica do direito – modelo lato sensu –, ora limitando-se à legitimação do poder das elites, ora estendendo-se à democratização e inclusão social ancorada no princípio da universalização. Avançar na perspectiva do direito – enfatiza a autora – implica rejeitar o perfil stricto sensu e caminhar na defesa da modalidade lato sensu, para além da pobreza absoluta, mas no horizonte de recompor os nexos entre econômico e político, recolocando a assistência social no centro do debate sobre as suas determinações históricas e de classe.44

Temperando os debates sobre as dificuldades de efetivação da conquista de estatuto de política pública da assistência social, Mestriner (2010) acrescenta o cenário adverso da reforma neoliberal do Estado, no qual se estruturou lentamente o arcabouço jurídico-legal do chamado tripé da seguridade social – previdência, saúde e assistência social, resultante de um longo processo de negociação e acordos entre diferentes forças políticas.

No caso da assistência social, pode-se afirmar que somente após 20 anos, com a configuração do Sistema Único de Assistência Social (Suas), obteve-se a completude normativa necessária a uma nova arquitetura institucional que amplia as possibilidades concretas de efetivação de direitos a ela concernentes.

Na avaliação de Yazbek (2006), a efetiva concretização do direito na área da assistência social não está dada pelo viés da regulação. É preciso produzir novas culturas desestabilizadoras das culturas dominantes de pesada herança assistencialista fundida na matriz do favor, do apadrinhamento, do clientelismo e do mando, práticas enraizadas na diferentes culturas políticas em todo o País, sobretudo no trato com as classes subalternas.

Em pesquisa sobre o processo de implantação do Suas em sete estados brasileiros, publicada em 2010, constataram-se as dificuldades que a maioria dos municípios enfrentou na

44 A assistência social stricto sensu, vocacionada para o problema individual do despossuído – pessoa desprovida

de recursos básicos para acessar a bens e serviços públicos –, esgota-se em si mesmo ao assumir a função básica de manter a sobrevida das pessoas sob a égide da rentabilidade, agindo de forma contingencial na reparação de danos. O modelo lato sensu, vocacionado para a atenção às necessidades sociais históricas e de classes, constitui- se um meio em sua função básica de mediar o acesso a direitos com participação popular (PEREIRA-PEREIRA, 1996).

estruturação do Suas, desde a formalização necessária aos requisitos legais até a estruturação das unidades de atendimento e organização dos serviços (COUTO, 2011).

Do mesmo modo, nessa linha interpretativa, as recentes reflexões críticas contidas nas publicações organizadas por Santos Paula (2014) e Crus (2013) sobre o atual estágio do Suas – articulando normatividade e operacionalidade – encontram na materialização da assistência social por meio do Suas um campo fértil de contradições e tensões que abrem espaço para a disputa da dimensão pública dessa política.

Ao assumir-se como política pública, a assistência social inova ao deslocar as “necessidades sociais”45

do espaço doméstico, acolhendo-as publicamente, introduzindo um novo modelo de atendimento descentralizado e participativo. A oferta de bens e serviços públicos de assistência social, em unidades públicas estatais – Centros de Referência de Assistência Social ou Centros de Referência Especializados de Assistência Social –, distribuídos com base territorial, aliada à criação de mecanismos de participação popular nos processos decisórios, traz nova proposta à cultura institucional e organizacional da assistência social.

A consolidação da Assistência Social, enquanto política pública de responsabilidade do Estado e de direito do cidadão, revela-se como um processo em transição, onde os valores e parâmetros afirmados pela nova institucionalidade na perspectiva do Suas, convivem cotidianamente com referência da cultura patrimonialista, tecnocrática e clientelista (COUTO et al., 2011, p. 260).

Apesar das normativas legais expressas nas diretrizes nacionais, práticas conservadoras, fundadas ainda na lógica do primeiro-damismo46, com ações fragmentadas baseadas na benemerência, na mistura do público e privado, sem fronteiras, persistem até os dias de hoje.

Em 2009, 24% dos responsáveis pelo órgão gestor da assistência social eram primeiras-damas, das quais 52,4% tinham cursado até o ensino superior incompleto, cuja prática clientelista teve maior expressão na prestação de benefícios eventuais ofertados

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Para um estudo mais aprofundado sobre necessidades e carências sociais, ver A condição pós-moderna, de Agnes Heller (2002).

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Primeiro-damismo é um termo que designa a institucionalização do assistencialismo na figura da mulher do governante, conforme escreve Carlos Alberto Monteiro de Aguiar, em seu texto Assistência Social no Brasil: a

mudança do modelo de gestão (Disponível em: http://www.fundap.sp.gov.br/publicacoes/TextosTecnicos. Acesso em: 11 mar. 2013.)

diretamente no órgão gestor da assistência social (Pesquisa Munic./IBGE, 2009). O último levantamento nacional realizado para avaliar a implementação desses benefícios evidencia os limites da implementação dos benefícios eventuais sob a lógica do direito, colocando a necessidade de uma agenda urgente em cada esfera de governo, em particular dos municípios, a quem cabe obrigatoriamente assegurar essas provisões.

Inserido nesse contexto de contradições, a assistência social – no fio da navalha entre a(s) cultura(s) política(s) dominante(s) e a política cultural produzida na vida social cotidiana – circula entre os limites das suas determinações históricas e suas possibilidades de efetivação como política pública no campo do direito nos moldes do reordenamento do Estado brasileiro no final dos anos 1980.

3.4 A expansão da cidadania social no Estado democrático de direito, pós-1988

O fio da meada que costura as análises sobre o momento histórico de ampliação da cidadania social brasileira é o reconhecimento de que a Constituição Federal de 1988 é o marco de referência para qualquer discussão sobre os direitos no País. “Ela representa uma possibilidade real de mudança no padrão de institucionalização que vigorou em nosso país por pelo menos um século”, afirma Rodriguez (2004, p. 87).

A possibilidade de ingresso de novos personagens em cena na condição de pessoas capazes de reivindicar e propor novos direitos, de participação popular no controle social democrático, de democratização dos espaços da política, são elementos que podem e devem inverter os processos decisórios, tradicionalmente negociados pelo alto.

Note-se que o contexto da crise capitalista dos anos 1970, de aprofundamento da desigualdade social e acirramento do quadro de pobreza de significativa parcela da população brasileira, foi também a arena central onde a pressão social da classe trabalhadora – na luta pelo atendimento às suas necessidades imediatas – e a intensa mobilização social e política pela ampliação dos espaços públicos ganharam visibilidade na agenda nacional, embalando o movimento contestatório contra a ordem estabelecida.

Nas teses de Florestan Fernandes (2005, p. 422), “[...] numa sociedade de classes em convulsão é impossível impedir que as migrações humanas, o desenraizamento social e

cultural, a miséria e a desorganização social etc. operem, simetricamente, como focos de inquietações e de frustrações sociais em larga escala”.

Nessa interpretação, o modelo contido na “democracia de cooptação”,47

materializado na abertura lenta e gradual da política brasileira, se tornou um casamento incompatível com um Estado autocrático tão complexo, que em tempos de crise não teria excedentes para o custeio das necessárias alianças. A tendência seria o aumento dos atritos internos da classe burguesa e o crescimento das tensões antiburguesas, podendo contribuir para um capitalismo de Estado, ou mesmo precipitar a desagregação revolucionária da ordem estabelecida e a eclosão do socialismo.

Nesse cenário, em meio aos conflitos entre tendências políticas – formas arcaicas e modernas –, ocorreu um ato determinante no processo de redemocratização do País: a discussão e a aprovação da Constituição de 1988, sintetizadas na revisão da organização e do papel do Estado no contexto de crise estrutural do capitalismo. A partir de então, o Estado da nova República assume duas funções básicas: garantir um Estado de direito e proteger com equidade e igualdade os direitos básicos de cidadãos e cidadãs, assegurando-se a ampla participação popular (BRASIL, 1988).

Berço do Estado democrático de direito, a República Federativa do Brasil foi (re)desenhada sob o princípio da unidade dialética concentração/descentralização. De um lado, o poder indissolúvel dos três entes governamentais sob a coordenação geral da instância federal de onde emanam todas as diretrizes; de outro, a plena autonomia dos municípios para se auto-organizar e administrar, revestido de autoridade para atender os interesses e necessidades locais (BRASIL, 1988).

Algumas análises sobre o lento e inacabado processo de democratização do espaço público no Brasil fazem referências à nova ordem democrática instituída a partir da Carta