• Nenhum resultado encontrado

3 GOSTOS, PREFERÊNCIAS, USOS E FUNÇÕES MUSICAIS: A NECESSÁRIA

3.1 A construção social de gostos e preferências musicais

A fim de tecer uma discussão sobre gostos e preferências musicais, faz-se necessário, previamente, considerar a legitimidade de se buscar a satisfação diversa por meio da música. Nesse sentido, a discussão sobre relação entre pessoas e repertórios é bem fértil. Às artes estão associadas também a gostos e qualidades experienciadas no âmbito individual e coletivo. Por tal razão, não emprego aqui o conceito de estética de forma isolada ou como uma simples definição inequívoca do “belo”. Isso porque há fatores sociais e culturais que incidem sobre julgamentos estéticos dos indivíduos. Quando nós achamos algo “belo ou feio”, não achamos isso sozinhos, alguém já compactuou ou compactua conosco dessa mesma percepção. Assim, proponho Bourdieu (2008) como base teórica explicativa:

Os julgamentos estéticos não são simplesmente reflexos de vontades individuais (primado da ação), nem tampouco substancialmente macro determinações de arranjos coercitivos (primado da estrutura). Resultam, pois, de toda herança cultural e social do indivíduo, segundo seus níveis de capital cultural, obtidos por meio da família e da instituição escolar, que, relacionalmente, definem atitudes em relação à cultura e, num jogo de aceitações, negociações e recusas – nas estruturas estruturadas e estruturantes (habitus) –, deliberam as disposições sociais (dentre elas, o gosto) (p.10).

Ao se achar algo belo, nos inserimos em grupos sociais que também o acham. Nossa relação com a subjetivação do belo está inter-relacionada não só em como interpretamos o mundo, porém, como temos acesso a ele. Por tal razão “as diferenças de capital cultural marcam as diferenças entre as classes” (BOURDIEU, 2008, p. 67), assim como, nossas concepções estéticas. Se considerarmos as inúmeras perspectivas abordadas sobre o conceito de estética, pode-se observar que as interpretações induzem a múltiplas definições. Por isso o velho jargão no qual afirma que “a beleza está nos olhos de quem a ver” também referencia a lógica do corpus epistemológico do qual obtivemos o conceito de belo. De acordo com Leite (2015), “para a filosofia, estética relaciona-se com o estudo do belo e do sentimento que esse suscita nos homens. A estética aparece ligada à noção de beleza e por isso a arte tem lugar privilegiado nessa reflexão” (p.35). As concepções estéticas para Koellreutter (1997) são pensadas em torno de universos sonoros dinâmicos e indivisíveis, não separando definições objetivas das subjetivas, mas pensando na relação desses conceitos no qual ele chamou de mundo onijetivo. Se eu tentar aqui definir e limitar o conceito sobre as concepções estéticas, corro o risco de ser prolixo na argumentação, visto que, há um esforço intelectual enorme para entendermos as complexificações desse aporte teórico. Todavia, o fator estético dos indivíduos é subjetivo em seus critérios de escolhas. Assim, proponho aqui pensar a estética como uma ação social implicada também nas influências do acesso ao capital cultural que os indivíduos possuem e externam. Sobre o assunto, é interessante observar a perspectiva de Vigotski (1999), no qual defende:

Um enfoque sociológico da arte, no qual a abordagem do objeto artístico e da experiência estética acontece do ponto de vista sócio-histórico e não somente do ponto de vista psicológico individual ou formal/estético. Como toda atividade psíquica humana, a experiência estética/artística é uma atividade de fundo social, que integra tanto os aspectos individuais do psiquismo quanto os aspectos sociais. Em sua opinião, a arte, enquanto objeto de estudo da ciência, deve ser considerada como uma das funções vitais da sociedade em relação permanente com todos os outros campos da vida social e no seu condicionamento histórico concreto (p.9).

Não podemos, contudo, desvincular o que se pressupõe sobre as estéticas dos indivíduos sem considerarmos suas emoções. A estética atinge também o âmbito emocional. A arte como meio de expressão do ser humano, evocadora e reforçadora de emoções deve ser analisada, portanto, considerando-se tal aspecto; pois muitos ouvintes ao falarem sobre música externam suas definições sobre uma música com base na emoção que sentiram dentro do contexto em que a experienciaram.

Para isso, lançamos uma grosseira sistematização atribuindo ao elemento estético duas dimensões: uma dimensão física, percebida pelos órgãos dos sentidos, e uma dimensão espiritual, percebida pela sensibilidade enquanto emoção. O elemento estético, uma vez recebido pelos sentidos repercute no sujeito em forma de sentimento e atinge a dimensão espiritual com caráter individual e subjetivo que se agregará ao caráter coletivo e objetivo que se constrói ao redor dos elementos musicais associando a eles determinados sentimentos – melancolia, euforia, alegria e outros. Assim, a sensibilidade enquanto sentimento depende da sensibilidade enquanto sensualidade/sentido e ambas atuam na leitura objetiva e subjetiva que se faz das músicas. Portanto, diremos que a audição se dá a priori e o gostar a posteriori, porque não se gosta do som em si, mas do que se sente ao ouvi-lo (CURTÚ, 2011, p.54).

Ao considerar tais relações, se faz necessário inter-relacionar estética, gosto e preferências musicais. Antes de apresentar o conceito de ‘gosto’, é necessário diferenciá-lo de ‘preferência’. Preferir vem da palavra em latim praefere, que é uma manifestação de distinção entre uma coisa ou outra, alguém ou algo – ‘primazia’ melhor definiria o conceito – (FERREIRA, 2010). Há algumas outras diferenciações sobre preferência e gosto. Meyer (1963) considera preferência como uma eleição deliberada, já Leblanc (1982) considera a mudança de gosto por preferência musical por não entender a questão da escolha de algo melhor que outra. Gonçalves (2010), por sua vez, destaca a diferença entre a preferência e gosto na questão da duração entre ambas: gosto segue-se por muito tempo e a preferência se dá momentaneamente.

Tratando-se de música, as preferências podem ser construídas tanto de maneira autônoma – a partir da eleição consciente do indivíduo do que quer escutar em seu cotidiano – como de modo induzido – a partir da escuta involuntária por imposição do meio ou por influência de outros. Quando a preferência por algo se torna frequente, ela transpassa ao nível de gosto, ou seja, uma preferência estável e de longo prazo (DE QUADROS JÚNIOR; QUILES, 2010, p.111).

Entendo gosto aqui baseado no conjunto de valores adquiridos pelos indivíduos em seus processos educacionais, nos acúmulos de valores ligados pela herança cultural ou a origem social daquele indivíduo (BOURDIEU, 2008). Imbricado com esses princípios, compreendo também que o meio que nos cerca e as pessoas com quem mantemos contato nos possibilitam a construção do gostar e do não gostar. “Exatamente porque a música é uma linguagem, consideramos familiar aquele tipo de música que faz parte de nossa vivência – justamente porque o fazer parte de nossa vivência permite que nós nos familiarizamos com os seus princípios de organização sonora” (PENNA, 2003, p.77). Tais características são tão reais na construção do gosto que cito como exemplo

o perfil composicional do “brega” e de suas ramificações em Belém do Pará para atestar essas assertivas:

No calipso, por seu turno e de modo contrastante, estariam encerradas dinâmicas melódicas e rítmicas evidenciando maior movimentação sonora, andamentos mais acelerados, ou mesmo uma feição humorística bastante explorada na produção musical brega de Belém do Pará. No entanto [...] a influência do calipso na formação desta música mais tem a ver com a construção de uma identidade cultural e musical do que propriamente com similaridades entre forma e estrutura do som (AMARAL, 2009, p.29).

Pelo fato de algumas músicas fazerem parte das nossas escutas, muitas vezes, através da repetição, bem como, através do convívio com as pessoas que as escutam e através dos meios que as difundem, nosso repertório de gostos se altera. Consolidar assim o gosto a partir de uma única concepção e vivência é criar estranhamentos e prováveis paradigmas errôneos sobre as diversas produções musicais com que nós temos contato. Não é porque não se compreende aquela expressão artística que aquilo não é bom. Só se gosta daquilo que se conhece. É a partir do contato com as inúmeras produções musicais que se criam os juízos de valores sobre as músicas que se escutam. Então, quanto mais músicas os indivíduos tiverem acesso mais probabilidade de se aumentar o gosto musical deles.

Em contrapartida, costumamos “estranhar” a música que não faz parte de nossa experiência. Quem é que já não ouviu alguém dizer – ou até mesmo disse – a seguinte frase: “isto não é música”? Esta atitude em relação à música do outro pode ser encontrada, por exemplo, por parte de um músico erudito em relação ao rap, de um velho seresteiro em relação ao barulhento rock do filho do vizinho, de um jovem roqueiro em relação à música erudita contemporânea, ou de um fã de música sertaneja em relação a uma música indígena (PENNA, 1999, p. 15-16).

Assim como existem indivíduos diferenciados uns dos outros há consequentemente gostos diferentes também. É fato que a música boa para um pode ser classificada por outro de uma maneira não muito boa. Assim como o silêncio é música e comunica algo, há “ruídos” sonoros que são utilizados em determinadas expressões musicais que também são considerados músicas. Então, qualificar a música da indústria cultural como não “musical” é um problema de percepção; pois há indivíduos que fruem e expressam-se através daquela manifestação sonora. Perceber estas dinamicidades nos remete a reflexão de que: “o alargamento do olhar sobre música nos levou a perceber que não há música, mas sim músicas… nos permitiu aceitar que música não é, mas que música são… nos desestabilizou com a certeza de que a musicalidade humana se manifesta de muitas formas” (QUEIROZ, 2015, p.206). Assim,

Dizer que determinada música “não serve para nada” significa negar o que ela manifesta. Se ela existe, ela “serve” e manifesta algo (na realidade uma rede complexa de sentidos, sensações, etc.). Pode-se, no entanto, dizer que esta música não comunica aquilo que algum observador gostaria que ela comunicasse. Se sua ressonância é relativamente pequena (atinge um grupo restrito de pessoas: um pequeno território) isto não a deslegitimiza. Dependendo do ponto de vista, até muito pelo contrário (COSTA, 2004, p.7).

A partir daí torna-se mais fácil a compreensão da música que se torna familiar para uns e as músicas que fazem parte dos repertórios de outros. Entender que música não é uma só e que exprime características múltiplas de diversos povos é um exercício sobre a diversidade que precisa estar presente nos processos educacionais. Ao se problematizar sobre “música apropriada” deve-se remeter-se a fatores culturais e situacionais (ABELES, HOFFER e KLOTMAN, 1995), dessa forma não se pode julgar em padrões estéticos o que seja a música boa dá que seja uma música ruim. Cada povo produz, frui, expressa e se comunica seja ela pelas músicas das indústrias culturais ou de outros contextos musicais. O que se pode questionar é a difusão em série das músicas midiáticas massivas em detrimento de outras expressões. Quanto mais se difunde uma música mais haverá probabilidade de se atingir um grande público e consequentemente se “consumirá” mais aquela música. Da mesma maneira, se estabelecerá um padrão de gosto maior por essa música – já que, sendo mais tocada, atinge um maior número de pessoas (WIEBE, 1940). Dessa maneira,

Com este processo instaurado, a indústria parece não experimentar tanto, buscando assim dar tiros certeiros, quando da contratação ou lançamento de produtos e artistas. Por isso, só uma ínfima parte da expressão artística das sociedades é absorvida e transformada em produto cultural. Isto torna a cena musical comercial limitada a um dado padrão estético, ficando uma imensa legião de criadores e manifestações musicais isoladas, sem acesso às mídias, as principais formas de ofertar sentidos coletivamente. Durante um período, de um a dois anos, há uma repetição incessante de um dado estilo musical, até que sejam demandadas inovações pelo mercado (BRITOS; DE OLIVEIRA, 2006, p.117).

Minha busca aqui é como relacionar essa homogeneização do gosto com a estatização da indústria cultural em relação a outras culturas musicais, assim como, compreender se tal incidência contribui para a formação do desenvolvimento humano na esfera social, moral e funcional. A música e as concepções sobre gosto estão indiretamente interligadas com a apropriação e transmissão dos bens simbólicos (ORTIZ, 1988). Então, desvincular um estudo sobre repertório musical em sala de aula indubitavelmente é discorrer sobre padrões estéticos

dos gostos dos professores e dos seus alunos. Por isso que observar e compreender contextos como a da escola de educação básica é essencial, além de oferecer subsídios para analisar o nível de influência das mídias, redes sociais e tecnologias no trabalho do repertório em sala de aula.

Em minhas pesquisas até aqui, tenho destacado que as definições estéticas e seus desdobramentos são multifacetadas. Chamo a atenção também ao fato de algumas estéticas seguirem modelos pré-estabelecidos que são manipuladas pela indústria cultural no sentido da padronização de repetições de alguns estilos musicais que minimizam novas criações artísticas. A despeito dessas manipulações industriais culturais, discorri em capítulos anteriores a este. Ao analisar os padrões estéticos funcionais de uma música da indústria cultural é possível observar que elementos que se repetem em várias outras músicas configuram padrões estéticos próprios repetitivos. Destaco assim que,

Percebemos que a semiformação é consequência e ao mesmo tempo causa da continuidade da padronização do elemento estético musical, uma vez que ela atinge tanto os processos de apreciação auditiva dos compositores como os dos ouvintes desses compositores. O uso dos padrões musicais por músicos semiformados dá-se de maneira sistematizada, transmitida e assimilada como técnica e como método de manipulação dos elementos estéticos. Esta situação artística distorcida faz com que as composições e os arranjos se distanciem da criatividade artística e se aproximem de simples produções protocolares (CURTÚ, 2011, p.64).

Outra problemática identificável são os padrões estéticos veiculados pelas músicas populares massivas hoje. Insiste-se em caracterizar as músicas – em grande parte – no ocidente em padrões pré-estabelecidos que são definidos pelo sistema tonal europeu nos séculos XIX. No qual, geralmente há um centro tonal que irá caracterizar essas músicas e consequentemente gerir seus padrões de melodia e harmonia. “Esses equívocos nos fazem ainda hoje adotar padrões estéticos de uma determinada música para analisar, valorar e ensinar outras, por vezes sem problematizar se tais padrões são adequados” (QUEIROZ, 2015, p. 211). Perceber que as estéticas são subjetivas e que pessoas diferentes se apropriam e fruem músicas em diversos contextos fazem-nos refletir sobre o que seja gosto e como essa percepção de gosto define o que seja a ‘música boa’ e a ‘música ruim’.

Destarte, a construção social do gosto se dá por via de influências múltiplas, consolidando o que os indivíduos entendem por música “ruim” e música “boa”. Desmistificar em sala de aula essa conceituação errônea sobre o senso estético do que seja uma música boa da ruim ou de arte legítima e inapropriada é contribuir diretamente para a formação dos alunos,

no sentido da promoção ao respeito da diversidade. Dessa maneira, o discurso a respeito desse assunto nas práticas pedagógicas dos professores deve se ater na concepção da defesa da diversidade musical e na livre expressão musical. Não deve-se dizer o que seja música boa ou ruim, porém, deve-se problematizar questões a despeito das músicas que são produzidas. Entender que toda música tem seu valor e representa alguém ou grupos é fomentar a ideia de que somos diversos, nos expressamos e identificamos com expressões musicais diferenciadas. Sendo assim, o conceito de uma suposta evolução – em seu sentido hierárquico e não no histórico – em música também deve ser afastado de nossos discursos e da sala de aula. Cada música contém em si um valor com o qual seus produtores e fruidores se identificam – seja via estética, representações, símbolos, seja por usos – que serão tratados a seguir.