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3 GOSTOS, PREFERÊNCIAS, USOS E FUNÇÕES MUSICAIS: A NECESSÁRIA

3.5 O papel da educação musical na formação crítico-reflexiva

A educação musical, inegavelmente, possui múltiplas atribuições, entre as quais é possível destacar a formação crítica e reflexiva, partindo de perspectivas em música que rompam com paradigmas restritos ao entretenimento e execução musical. Por isso, ao tratar dessa nova demanda, a educação musical vem paulatinamente se munindo com o aporte das ciências humanas em geral (DEL BEN, 2003, p.77). Então, é necessário fortalecer e difundir o campo epistemológico da área para aproximar cada vez mais a música aos aspectos gerais da humanidade, orientando os pesquisadores a desenvolverem mais conhecimentos que pensem a humanidade, a sociedade e as funções da música. Para Aquino (2015), isto se dá através do:

Diálogo com outras áreas e com aspectos mais amplos do cotidiano escolar e das políticas públicas educacionais que contribuem significativamente para a construção do corpus epistemológico da música que precisa se estabelecer pela confrontação permanente com aspectos macros e micros. No âmbito

dessas relações e em sua imanência, a área de educação musical precisa se deter com compromisso caso aspire a uma formação humanizadora e que gere mudanças qualitativas no aprendizado musical das crianças e dos jovens brasileiros (p.9).

Ao estabelecer a relação entre funções sociais da música com o corpo epistemológico em música é possível desenvolver uma relação mais precisa entre os imperativos da indústria cultural e a educação musical. Conforme mencionado anteriormente, a relação mídia e tecnologia incide diretamente em nossos hábitos de consumo e em nossas relações sociais. A música, assim, se estabelece como meio também dessas relações. De tal forma, que essas novas relações tem gerido além de máquinas e consumo, um “capital humano”, em que pessoas também são produtores e produtos. Acerca desta inquietude, Martins Torres (2009) comenta que: “as organizações continuam funcionando como máquinas e se relacionando como provedoras do mercado global. As pessoas são tratadas como “capital humano” [...] ou como “capital intelectual” – uma mercadoria” (p. 195). Leite (2015) complementa dizendo que:

Na sociedade capitalista, os homens não produzem para satisfazer diretamente suas necessidades pessoais ou comunitárias. Nesse processo, o homem perde sua dimensão especificamente humana – como atividade que revela a sua natureza criadora – para se reduzir a uma dimensão meramente econômica: produzir e consumir mercadorias. (p.48).

Nessa mesma direção, “o conhecimento também se torna mercadoria e junto com ele os valores estéticos, éticos e políticos” (Ibid., p.57). A questão desenvolvida aqui com a música popular massiva está na concepção do sentido de esta gerir conhecimento. Se o indivíduo estiver empregado e for “pai de família” ele é considerado – em última análise – uma pessoa bem sucedida socialmente. Então, como podemos romper com paradigmas de que a aquisição essencial do conhecimento é limitado a imperativos de produção, consumo e sustento? Parece que apenas o letramento, a habilidade laborativa/produtiva e a codificação de símbolos já sejam o suficiente para a formação integral da humanidade. A função atual da educação é “adequar o modo de conhecer, fazer, ser e conviver das pessoas às novas formas de organização e de produção econômica às representações ideológicas que correspondem ao atual estágio de desenvolvimento do capitalismo e às relações que lhe correspondem” (TROJAN, 2016, p. 203). Acredito que há uma necessidade de se romper com tal dialética para formar indivíduos além da dimensão autômata.

Os objetivos políticos, sociais e educacionais de nossa atual realidade, ao meu ver, não estão mais preocupados com a busca de uma formação humana. Se observamos – em última

análise – nossas relações sociais, encontraremos realidades que taxam nossa existência a supervalorização individual do que a um bem estar coletivo. Uma geração que se esconde através de smartphones super inteligentes e rápidos que minimizam ou excluem relacionamentos presenciais. Atentar também que há uma preocupação maior em desenvolver uma humanização das inteligências artificiais do que investimentos nas próprias relações dos seres humanos, indagando-me assim, qual seria o sentido da vida humana e como este se significa no senso de coletividade humana. Humanizar também é estar atento a essas contradições emergentes, que por sinal não são por acaso. Em concordância com Karl Marx (2004), “O homem se apropria da sua essência omnilateral [em todas as dimensões] de uma maneira omnilateral [de uma maneira compreensiva], portanto, como um homem total” (p.108). A partir do momento em que o ser humano se concentrar na compreensão dele mesmo, assim como, considerar que ele não é um ser apenas individual, não poderemos significar o sentido do social, do ético e do coletivo. O processo civilizatório começa quando o indivíduo é autônomo; porém, a autonomia não é significado de interdependência de relações. A construção civilizatória só tem sentido quando estes indivíduos autônomos se juntam em um senso democrático para a coletividade. Por assim entender, a palavra indivíduo deveria ser substituída e compreendida hoje por indivíduos, compreendendo que não existe um ser sem que seja no outro.

Enquanto não construirmos uma educação, seja ela musical ou não, pensando na humanidade em si e na busca desta apenas pelo sucesso individual, cairemos em um pensamento utilitarista da vida, no qual o sentido da mesma se dá insignificantemente em comer e consumir coisas e produtos. O processo educativo ao mesmo tempo que parte do individual – pois cada indivíduo tem sua relação própria com o conhecimento – se configura e se estabelece com o senso de coletividade. Assim, há uma construção recíproca entre o aprendizado individual com a construção social, e a escola como lugar de múltiplas identidades é um meio comum propício para desenvolvermos nossas relações sociais e aprendermos a respeitar as particularidades dos membros, ao mesmo tempo em que convivemos com o senso coletivo do todo. De tal modo que,

Somos todos interdependentes neste mundo que rapidamente se globaliza, e devido a essa interdependência nenhum de nós pode ser senhor de seu destino. [...]. O que quer que nos separe e leve a manter distância dos outros, a estabelecer limites e construir barricadas, torna a administração dessas tarefas ainda mais difícil. Todos precisamos ganhar controle sobre as condições sob as quais enfrentamos os desafios da vida – mas para a maioria de nós esse controle só pode ser obtido coletivamente (BAUMAN, 2003, p.133).

Baseado nessas assertivas, reitero que não se faz educação só. O processo educativo é construído progressivamente e coletivamente. A humanidade não se auto educa. O indivíduo chega ao mundo como meta de seus muitos desafios para adquirir o que chamamos de “senso educativo”. Vale salientar que esta educação tem significado diferente quando se observada através de contextos culturais diversos. Mas, mesmo sendo a educação percebida diferentemente por múltiplos observantes é comum a todas elas que o indivíduo aprenda a conviver com seus dessemelhantes. Em última análise, não se educa apenas para compreender os diversos signos e significados que estão ao nosso redor; espera-se desse indivíduo o senso coletivo; em perceber sensivelmente que ele só está ali por conta de outros. Educação e comunidade se tornam elementos constituintes dos quais a vida precisa para se manter. Então,

Se nossa prática educativa não estiver relacionada com a formação do homem em si e de sua relação recíproca, devemos nos questionar sobre que tipo de educação nós estamos criando, fomentando e discutindo. Se não conseguirmos nos relacionar como seres além das ciências e dos extintos, seremos animais racionais incapazes de vivermos em sociedade. Além disso, devemos entender o processo formativo dos indivíduos e enxergar o outro como responsável direto desse desenvolvimento, possibilitando assim, alçar resultados mais abrangentes para o meio e o bem comum. Aprendendo a viver com a diversidade, participando das responsabilidades sociais e desenvolvendo políticas públicas emancipatórias. (DA COSTA, 2016, p.9).

Correlacionando tudo isso agora exposto com a música popular massiva e a escola – nesse sentido – não se deve mais tratar o assunto como barreiras nos processos socioeducativos, visto que, já entendemos que esta música é expressão e representa um senso de coletividade de muitos. Em contrapartida, já é notório que essa música não deve ser usada pelos educadores de qualquer maneira. Há uma necessidade em ressignificar essas canções de modo crítico/consciente. Seria tornar o processo – como diz Libâneo – uma sincronia entre: “aprender a pensar e aprender a aprender” (LIBÂNEO, 2003, p. 1). Assim, pode-se construir conhecimento em vez de entretenimento. Como relata Setton: “O fato é que, já há algum tempo, é inegável o papel de destaque que a mídia, enquanto fenômeno de circulação de informação, ocupa na formação moral, psicológica e cognitiva do homem” (SETTON, 2002, p. 109). Acerca do assunto e em concordância com Queiroz (2011), ressalto:

A partir dessas reflexões, é fundamental destacar que compreender a inter- relação da música com os sistemas tecnológicos e midiáticos da atualidade é fator fundamental para entender o fenômeno musical como um elemento da cultura contemporânea. Tal perspectiva se dá pelo fato de que, em diferentes

facetas do universo musical, seja no âmbito da música erudita, da música popular urbana ou da música de culturas populares de tradição oral, a configuração tecnológica e midiática do mundo atual tem tido impactos avassaladores. Dessa forma, tecnologia e mídia, no mundo pós-moderno, representam eixos fundamentais para o universo da música, tendo elementos fundamentais para uma compreensão contextualizada do fenômeno musical no âmbito da sociedade contemporânea (p.147).

Entendo que a educação escolar não pode se limitar a alguns aspectos estéticos da música ou atividades recreativas. Da mesma forma, talvez a questão não apenas se restrinja a música boa ou ruim para educação dos indivíduos. Outra questão a ser lembrada é que os professores não devem apenas considerar os contextos de seus discentes, pelo contrário, espera- se que eles partam dele para a confrontação de novas realidades. Se não for assim, qual seria o papel da educação escolar no quesito da reflexão e problemática da realidade? Pensar a partir da realidade dos indivíduos dando-lhes a oportunidade de conhecer o novo e o desconhecido é ir além de uma educação pautada na reprodutibilidade mecânica. Se fizermos da educação uma mera repetição de conhecimentos, criaremos uma doutrinação alienante que gerará consequências drásticas na formação integral dos indivíduos.

Vale ressaltar também que o papel da formação integral dos alunos não se detém apenas no que se aprende e desenvolve-se na escola. Acredito que a educação integral se paute na relação de uma heteroformação, no qual, aluno, família e escola sintam a necessidade de se articularem de forma a fazer com que o confronto problematizado em sala de aula se estenda à comunidade como um todo. Então, pais precisam lidar com questões que envolvam mídias, tecnologias e consumo em suas casas para que se gere uma conscientização coletiva sobre o uso, os porquês e as necessidades da utilização desses em seus cotidianos e, da mesma maneira, nas suas correlações com as várias dinâmicas sociais. Desse modo, oportunizaremos uma educação emancipatória mais presente nos múltiplos contextos em que vivem e interagem os alunos. Proceder assim, subsidia uma formação artística mais crítica e criativa (CUNHA; REMES, 2010, p.13).

É possível perceber na área da educação musical algumas divergências de pensamentos sobre o tema desta proposta dissertativa nas práticas pedagógicas da utilização dessa música nas escolas de ensino regular. Acredito que a divergência é saudável para o estabelecimento de múltiplos pontos de vista e construir um saber significativo sobre esse fenômeno tão real que circunda nossas vidas e as dos alunos. Dentre algumas argumentações, destaco um pensamento a favor e outro desfavorável à presença da música popular na escola. Vejamos:

para pensar, ou simplesmente proporcionar o prazer de ser escutada e compreendida na sua essência. A escuta musical é acomodada; sua escolha é baseada naquilo que a mídia oferece (ou impõe) e é facilmente aceita, de forma que parece estar vinculada à diversão e ao bem-estar. Podemos ainda dizer que é uma geração que não conhece sua própria voz, considerando a falta da prática do cantar na escola, considerando a falta de conceitos e parâmetros que estabeleçam o que é afinado e o que é desafinado, o que é bem cantado e o que é mal cantado, o que é melodicamente simples e o que é bem elaborado (MOREIRA, 2012, p.292).

Outros entendem que a música popular massiva faz parte de uma cultura específica e compreende características de vida de grupos/indivíduos que se encontram nelas, por isso, devem ser consideradas nos processos de ensino/aprendizagem sobre a ótica do viés multicultural. Destaco:

A nosso ver, a postura multiculturalista deve abarcar a diversidade de produções artísticas e musicais, vinculadas a diferentes grupos sociais que produzem ou adotam determinadas poéticas musicais como suas, sejam esses grupos marcados por particularidades de classe, de região ou de geração, por exemplo. Como consequência dessa postura, as referências para as práticas pedagógicas em educação musical não podem se restringir à música erudita, que se enraíza na cultura europeia. Torna-se indispensável abarcar a diversidade de manifestações musicais, incluindo as populares e as da mídia (PENNA, 2005. p.9).

Acredito, então, que a luta não deva ser contra os tipos de músicas a serem utilizadas em sala de aula que não julgamos ser “boa”. Da mesma maneira, não deve ser contra o ensino tecnocrático e muito menos contra as ciências ‘duras’. O pensar inquietador deve ser contra os sistemas políticos opressores e aos imperativos econômicos de certos grupos que querem transformar de alguma forma o saber em meras informações que resultem em um valor econômico. A música como prática da diversidade humana e como um dos meios de crítica social deve externar e problematizar esses conflitos para gerar indivíduos mais conscientes de suas responsabilidades sociais. Qualquer instância social que estatize conhecimento ou seja meio de hegemonização deve ser combatido através do conhecimento crítico, democrático e coletivo que subsidie todas as formas de liberdade de expressão. A ditadura que vivemos não foi só militar; há ditaduras piores que nos cercam a todos os momentos que precisam ser percebidas através de uma reflexão profunda que se dá através da pesquisa, da busca de mais conhecimento e da discussão crítica sobre o mundo que constantemente construímos. A ideologia e as influências da indústria cultural estão aí para serem analisadas, pesquisadas, refletidas e discutidas, já que essas nos assediam e influenciam de algum modo nossos padrões de vida.

4 BASES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DA PESQUISA

Neste quarto capítulo, discorro sobre as bases teórico-metodológicas que alicerçaram todas as etapas de construção e conclusão desta pesquisa. Apresento inicialmente a identificação da abordagem escolhida – a qualitativa –, juntamente com o método – estudo multicaso – que julguei mais adequado frente ao objetivo geral estabelecido para a pesquisa. Explano, também, neste capítulo, acerca do campo empírico, fazendo uma breve descrição de minha inserção nas três escolas que integraram a pesquisa. Apresento, ademais, os procedimentos e técnicas de coleta, organização e análise de dados adotados, indicando o que cada recurso me permitiu realizar antes, durante e após minha inserção em campo. Por fim, trato dos princípios ético-metodológicos que orientaram a minha conduta em todas as etapas deste estudo, de sua idealização à sua finalização.