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CAPITULO 3. Políticas Públicas, a quem elas atendem? 72 

3.2. A Política Indigenista Nacional 77 

3.2.1. A contribuição antropológica para as políticas indigenistas no Brasil 86 

A realização do IV Congresso Indigenista Interamericano ocorrido na Guatemala em 1960 rendeu a conceituação mais apropriada para a interação social por “Darcy Ribeiro, bem como Carlos Mejia Pivaral, Gregoria Hernandes de Alva e Joaquim Noval definindo que “a interação social pode significar a unidade de todos os habitantes de um país, mas não sua identidade, nem mesmo uma semelhança fundamental” (RIBEIRO, 1960:10, apud ATHIAS, 2007: 73). Para Athias (2007) essa definição esclarece que nenhum povo teria que se converter a outro, como se pretendia com a visão integracionista.

Os estudos de Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira sobre a relação de contato entre índios e “brancos” tiveram importância fundamental para desviar a discussão oriunda da Antropologia norte-americana de aculturação, direcionando para duas novas orientações teórico-metodológicas: uma “na direção das teorias de mudança social proveniente da Antropologia social britânica, e a outra para a crítica dos modos de colonização mercantil e capitalista nas sociedades colonizadas” (ATHIAS, 2007:74).

Athias (2007) faz um breve histórico dos três tipos de orientação sobre aculturação que influenciaram os estudos antropológicos brasileiros. O primeiro tipo que ele se refere:

consistia em escolher um grupo indígena cuja organização interna revele os resultados da acomodação com a sociedade nacional, principalmente nas regiões onde os contatos entre brancos tornaram-se de certa maneira permanentes e as influência não foram seriamente atingidas pelas transformações regionais bruscas (ATHIAS, 2007:76).

O autor aponta que os estudos de Herbert Badus, Charles Wagley e Eduardo Galvão seguiram essa direção, que se orienta “pela descrição etnográfica sistemática do povo indígena que fornece um critério positivo para a análise dos pontos de mudança e de reelaboração culturais” (ATHIAS, 2007:76).

Na segunda orientação Athias (2007) aponta que o pesquisador opta por um grupo indígena em que as “‘tendências aculturativas’” permitam sua descrição por meio da “caracterização da sua configuração interna em situações extremas de um contínuo histórico-cultural”. O que para o autor leva a “uma manipulação total da interpretação dos dados históricos e culturais no intuito de caracterizar a cultura indígena nos diferentes períodos de contato com a sociedade nacional” (ATHIAS, 2007:76). Classificam-se nessa tipologia os estudos de James Watson e os primeiros estudos de Roberto Cardoso de Oliveira (1960) “sobre os Terena do Mato Grosso do Sul. (ATHIAS, 2007).

A terceira tipologia que orientou as pesquisas etnológicas de antropólogos brasileiros sobre o tema “foi aquela através da qual se seleciona um grupo indígena, cujas relações frente-a-frente da sociedade nacional pudessem ser descritas e interpretadas graças a observação de situações intermitentes de contato com os brancos”. O autor esclarece que essa orientação tem como foco “as influências e mecanismos internos da cultura que determinam o modo e o ritmo da mudança”. Foi seguidor dessa orientação o antropólogo Egon Schaden (ATHIAS, 2007:76 e 77), que privilegiou a análise de processos aculturativos no plano tecnológico e na cultura material.

Athias (2007) aborda os estudos de alguns pesquisadores que se debruçaram sobre o tema e deram uma contribuição não só acadêmica, mas também na definição das políticas indigenistas. O primeiro deles é Herbert Baldus que estudou sobre a mudança cultural dos povos “Tapirapé, Karaja,

Terena, Bororo e Kaingang” que tiveram distintas experiências de contato com a sociedade nacional ao longo da história. A partir de sua definição sobre cultura, traz elementos importantes a serem considerados na teoria da mudança cultural (ATHIAS, 2007:81 e 82).

Entendemos por mudança de cultura a alteração da expressão harmoniosa global de todo o sentir, pensar e querer, poder e agir de uma unidade social, expressão que nasce de uma combinação de fatores hereditários, físicos e psíquicos, e de fatores coletivos morais, e que, unida ao equipamento civilizatório, como por exemplo, os instrumentos, as armas etc., dá à unidade social a capacidade e a independência necessárias à luta material espiritual da vida ( BADUS, 1937, p. 279, apud ATHIAS,2007:84)

Segundo Athias (2007) Baldus considera que por motivo do processo de mudanças decorrente do contato, os povos indígenas têm como alternativa “a assimilação recíproca do novo à cultura existente e desta ao novo da outra cultura, conservando a identidade do grupo”. Uma segunda alternativa que Baldus aponta é “assimilação unilateral”, ou seja, a completa mudança cultural para o novo sistema. A definição do tipo de mudança só pode ser identificada quando a mudança já tem se processado de fato no grupo (ATHIAS, 2007: 84 e 85).

A conclusão de Baldus, segundo Athias (2007) é que na relação permanente dos brancos com os índios, estes perderiam completamente sua cultura. Após este estudo novos trabalhos de outros pesquisadores manifestaram uma preocupação científica na preservação das culturas indígenas ou até mesmo de “reconstrução da cultura tradicional” a partir de pesquisas nos “elementos da cultura material”. O que também revelou certa preocupação, que Athias (2007) considera de ordem prática, como a de “traçar programas de orientação para os administradores encarregados da política indigenista” (ATHIAS, 2007:85).

Os estudos brasileiros sobre povos indígenas não apresentavam até 1949, “monografias sistemáticas e bem elaboradas sobre as populações indígenas que pudesse permitir um trabalho comparativo” (ATHIAS, 2007:85). A partir de então, surgem os trabalhos de Charles Wagley, Eduardo Galvão e

Altenfelder Silva. Este último estudou a relação de contato entre a sociedade nacional e o grupo Terena da aldeia Bananal, na época localizada no Estado do Mato Grosso.

Como resumo dessa pesquisa Altenfelder “mostra como a igreja evangélica (Inland South America Missionary Union) desempenhou um papel essencial nas transformações recentes sofridas pelos índios” (ATHIAS, 2007:85). Segundo este autor, esta é uma constatação específica, que não pode ser estendida aos demais Terena da região. Em uma das conclusões Altenfelder considera que “graças ao Serviço de Proteção aos Índios” os Terena quase que totalmente destribalizados pelos efeitos da expansão agropecuária, conseguiram recuperar e revitalizar a consciência étnica, reorganizando parte dos grupos locais (ATHIAS, 2007).

Os estudos sobre “cultura em transição” de Eduardo Galvão e Charles Wagley foi realizada sobre os povos Guajajara. Os pesquisadores consideraram que esse grupo indígena apresentava excepcional facilidade de adaptação às mudanças culturais mediante o contato com a população branca do Estado do Maranhão (ATHIAS, 2007). Este autor diz que o resultado dessa pesquisa, que considerou organização social, economia, vida pessoal, religião e mitos, foi que “estes índios conseguiram realizar de maneira coerente uma ‘integração cultural’ e que puderam sobreviver enquanto grupo étnico” (p.88). Isso se devia pelo fato de os Guajajara terem mais disposição para abandonar as tradições e aceitar as novas técnicas e idéias.

Essa pesquisa ainda apresenta uma previsão de que, decorrido o tempo de duas ou três gerações e caso fosse mantida a mesma situação da relação com os brancos, os Guajajara “seriam transformados em ‘caboclos’” (ATHIAS, 2007:88 e 89). Prova das contradições e equívocos cometidos por esses dois pesquisadores é que os Guajajara, em meio ao contato com a sociedade nacional, mantêm a resistência enquanto grupo étnico e lutam por seus territórios atualmente (ATHIAS, 2007).

Athias (2007) aponta que as perspectivas dos estudos de Wagley e Galvão “alargaram o campo das observações” sobre o processo de aculturação entre os grupos por eles estudados, apresentando formas distintas de relação com comunidades “’caboclas’, que se estabelecem próximas às indígenas e

com as quais os índios mantém relação de troca” (92). Segundo Athias (2007) Galvão considerou que as comunidades amazonenses (caboclas) “são depositárias da cultura indígena e ibérica” decorrente da miscigenação entre índios e portugueses; Galvão observou mudanças tão marcantes entre as duas culturas que tornava-se difícil “senão impossível identificar ou retraçar a origem de uma crença ou de uma prática determinada” (ATHIAS, 2007: 92).

Segundo Athias (2007) Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira apresentam distintas opiniões sobre a relação do contato, fazendo oposição a algumas críticas da teoria de aculturação. Darcy Ribeiro considerava a “’sociedade nacional um todo uniforme’ onde ocorreu um ‘movimento exógeno de expansão étnica’ [que] entra em contato com as outras etnias” (ATHIAS, 2007:97).

A contribuição de Darcy Ribeiro foi importante no campo teórico e para as políticas indigenistas. Esse antropólogo foi contratado pelo SPI em 1947 e junto a esse órgão realizou as suas primeiras pesquisas etnológicas (ATHIAS, 2007). Na década de 1950 entre outras contribuições, “Ribeiro defende as diferentes políticas de integração e de assimilação do índio à sociedade nacional” (p.98); pesquisa sobre os efeitos do contato junto aos povos indígenas; propõe a incorporação dos índios em um programa de educação e opõe-se de certa forma ao isolamento desses povos em reservas.

Em outras obras analisa certos aspectos da Transfiguração Étnica quando examina as formas de transição de uma etapa evolutiva para uma outra, utilizando o conceito de ‘aceleração evolutiva’ [...] conceito utilizado ‘para descrever os procedimentos’, intencionais ou não, de indução do progresso preservando a autonomia da sociedade [...] analisa os conceitos de diferenciação dos povos americanos e do desenvolvimento desigual. Analisando o contato entre índios e brancos estabelece quatro categorias que denomina ‘graus de integração’:índios isolados, índios em contato intermitente, índios em contato permanente e índios integrados (ATHIAS, 2007: 99 a 104).

A classificação de Ribeiro referente à relação de contato é evolutiva e desconsidera as regiões de ‘frentes de expansão’, assim como não distingue a

situação de índios “assimilados” ou “extintos” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978 apud ATHIAS, 2007).

Principalmente a partir de 1960, a teoria da aculturação não mais respondia à realidade da sociedade nacional, tornando-se alvo de críticas dos etnólogos brasileiros. Muitas previsões apontadas nos estudos de Baldus, Galvão, Schaden e Ribeiro não se confirmaram; embora tendo havido uma redução da população indígena, estes povos mantêm até hoje sua identidade étnica. Roberto Da Matta admite o equívoco cometido pela antropologia da integração que estava mais preocupada em “decretar a morte dos índios do que compreendê-los enquanto sociedade concreta e específica (ATHIAS, 2007:108).

A teoria da Fricção Interétnica, de Roberto Cardoso de Oliveira, tem como base a pesquisa realizada junto aos Tukuna, Estado do Amazonas. O estudo trata das “relações sociais entre os grupos tribais e os segmentos regionais da sociedade brasileira aos quais estão ligadas; passa-se assim de uma orientação ‘culturalista’ a uma orientação teórica de caráter sociológico” (ATHIAS, 2007:109). O autor diz que se trata também de uma crítica à teoria da aculturação.

Os componentes mais importantes do contato interétnico estão integrados em um sistema único constituído de duas sociedades. O sistema compreende grupos étnicos quando um contato é contínuo ou mesmo permanente, forçado a uma existência co-participativa ao nível das relações e da mudança da economia, de ordem política, e de organização social [...] as relações no seio desse sistema são necessariamente relações de oposição (ATHIAS, 2007:110).

Nessa teoria, o que resulta do contato interétnico é a forma como cada uma das sociedades em contato “reorganiza o complexo estrutural, de suas relações econômicas, políticas e sociais de maneira a manter no curso do contato e no seio do sistema determinado por este um nível ao menos razoável de relações com o sistema interétnico” (ATHIAS, 2007:111).

Isso é o que orientou o projeto de pesquisa “Regiões de fricção interétnica” de Cardoso de Oliveira juntamente com Roberto Da Matta, Roque

B. Laraia e Júlio César Melatti (ibdem). Os estudos sobre fricção interétnica de Cardoso de Oliveira ganham consistência metodológica ao incorporar “a noção de fronteira de expansão conjuntamente à de colonialismo interno [que] explica em parte o desenvolvimento desigual dos países subdesenvolvidos” (ATHIAS, 2007: 114 e 115). No caso brasileiro essa teoria ajuda a compreender as diferenças regionais e os impactos das grandes frentes de expansão agrícola, urbana e industrial.

O estudo de Cardoso de Oliveira (1966) em que ele insere o colonialismo interno “dão consistência metodológica à teoria de fricção interétnica”, pois com isso o autor é levado a examinar as manifestações da sociedade nacional, não limitando-se a investigar apenas o comportamento dos grupos indígenas. O núcleo de suas pesquisas passa a ser “a dialética das relações entre as classes (trabalhadoras e patrões) e os grupos tribais (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1966ª, apud ATHIAS, 2007:115).

Outro conceito desenvolvido por Cardoso de Oliveira dentro dessa temática foi o de Identidade Étnica como ideologia: considerando “a reorientação dos valores ideológicos a sociedade tribal se reorganiza a partir dos modos pelos quais se identifica como unidade diferenciada e consegue se opor ativamente à sociedade regional” (ATHIAS, 2007: 117). Sobre identidade étnica, Cardoso de Oliveira criou uma tipologia a partir das relações interétnicas que podem ocorrer em “’sistemas de interação tribal’ e de relação conflituosa de contato entre sociedade tribal e sociedade nacional” (p.119).

A formulação desses conceitos forma um cenário das distintas situações que resultam da relação do contato entre grupos indígenas e a sociedade não- índia, bem como da relação entre os próprios grupos indígenas. Esses estudos consistem na importante contribuição que a antropologia brasileira tem oferecido aos órgãos oficiais, não só a FUNAI, mas também às unidades federadas para a definição das políticas públicas que vêm sendo implementadas ao longo dos anos. Eles permitem pensar políticas públicas com o olhar específico para cada grupo e local onde ele habita, sem o risco de repetir os erros cometidos historicamente, quando ainda não se dispunha do conhecimento aprofundado dessa realidade.

Embora as teorias acima referidas tenham sido reformuladas, é importante destacar que em seu conjunto elas refletem um momento histórico particular no qual o movimento de contatos interculturais estava acelerado, em virtude da ideologia desenvolvimentista da época.

Com a Constituição federal de 1988 os grupos indígenas e quilombolas tiveram os seus direitos garantidos, devendo ser reconhecidos como cidadãos etnicamente diferenciados. Se a condição cidadã está longe de ser uma realidade para muitos desses grupos, que ainda permanecem em situação vulnerável, temos, por outro lado, que destacar a existência de um conjunto grande de políticas públicas envolvendo vários ministérios e agentes sociais de mediação e intervenção voltado especificamente para esses grupos. Uma dessas políticas é a de Extensão Rural, que traz para os extensionistas o desafio de trabalhar com grupos étnicos distintos.

3.3. Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a