• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2. AS FACES DA MODERNIDADE NO BRASIL E OS IMPACTOS NAS

2.5. Não só o massacre, mas também a resistência 66 

Segundo Bogoni (2008) a reação dos povos indígenas contra as intervenções de uma cultura dominante pode acontecer em função de três aspectos: a violência, como única maneira de eliminar o sentimento de inferioridade e levar à libertar-se da dominação, o surgimento de patologias devido à absorção de culturas e ideologias dominantes e a discriminação decorrente da relação com novas culturas e políticas que subjugam. Essas três situações promovem um novo homem, novas “humanidades” (FANON, 1961, apud BOGONI, 2008). Este autor considera que o revide é uma forma de preservar a própria vida e a sua cultura, um ato de legítima defesa. Assim, existem relatos em que “pajés construíam altares isolados nas matas para adorar os esqueletos de três índios como as imagens que eram expostas nos altares das igrejas (BOGONI, 2008:69). A adoção de práticas semelhantes ao catolicismo (BOGONI, 2008), na verdade camuflava uma adesão religiosa que era mais fictícia do que real e na qual se exercia uma subversão dos conteúdos simbólicos, substituindo-se a figura de Cristo por índios de carne e osso, sacrificados.

Conforme Fanon (2006) o mundo colonial era maniqueísta, portanto para a ação do colonizador, havia uma reação do colonizado e mesmo considerando a desvantagem na tecnologia da guerra, o confronto existia. O mundo do colonizado estava repleto de hostilidade, a falta da liberdade causava revolta, inveja e disputa, mas causava também o desejo de lutar contra a opressão “o colonizado sonha sempre instalar-se em lugar do colono” (Fanon 2006, apud BOGONI 2008:69).

Outro exemplo refere-se ao período das incursões dos bandeirantes, nas terras que hoje forma o Estado do Paraná, vastamente habitadas pelos índios Guarani. Os conflitos aconteciam mutuamente entre bandeirantes, Guarani e jesuítas, pois os índios invadiam as “propriedades” dos espanhóis (que eles

haviam tomado dos índios), apoderavam-se das plantações espanholas repetindo, sob sua ótica, a coleta de alimentos (BOGONI, 2008).

A idéia é que os Guarani não tinham limites territoriais e, portanto, a cidade também era um território de todos. Mas reagiam à presença do espanhol em seu entorno, porque este representava uma ameaça a sua integridade, delatada pelas experiências anteriores de sujeição pela força. (BOGONI, 2008: 151).  

Outro elemento que também causou revolta, referido por Bogoni (2008), foi a alteração das relações de trabalho imposta pelos europeus, que desrespeitavam a divisão sexual do trabalho própria da cultura Guarani; onde se impôs a inversão de atribuições entre homens e mulheres, numa lógica voltada para o interesse capitalista e essas intervenções levavam “a explosão do sujeito objetificado e, assim, transformado novamente em sujeito colonizado, colocava o índio em condição de igualdade com o colono e com força para promover a si próprio como ser natural, mas alterado em sua essência” (BOGONI, 2008: 152). Este autor atribui o revide ao período de submissão e ao acúmulo de conhecimento, numa realidade que fazia surgir novas necessidades, inclusive a liberdade.

Vendo-se privados de bem tão grande e sobrecarregados de trabalhos, os naturais da terra tomaram as armas, sacudiram de si o jugo, meteram-se em correrias pelas terras e estâncias dos espanhóis, mataram a muitos e destruíram as suas fazendas, gados e plantações, despovoaram uma aldeia de espanhóis, e tinham intenção de destruí-las todas” (MONTOYA, 1997, p. 48, apud BOGONI, 2008:152).

Um movimento típico de reação à dominação e cerceamento da liberdade foi a Cabanagem, iniciado em Belém-PA, mas que teve uma vasta amplitude territorial que extrapolou a Amazônia. Sua grandiosidade também se deu pelo número e diversidade de pessoas envolvidas, reunindo indígenas, negros e mestiços, criando uma identidade frente aos problemas comuns decorrentes da insatisfação com a política do Império regencial do Brasil

(RICCI, 2006). De acordo com Ricci, “essa identidade se assentava no ódio ao mandonismo branco e português e na luta por direitos de liberdade” (RICCI, 2006: 7).

Se por um lado a expropriação destruiu e mudou a vida tradicional dos índios, por outro lado a resistência também foi impondo mudanças no colonizador e nos governos que se sucederam ao longo da história. A criação de órgãos específicos para conduzir a política de atendimento aos indígenas é uma ação própria do Estado capitalista que exerce o papel de mediador entre as distintas classes sociais. É nessa lógica que em 1910 foi criado o Serviço de Proteção aos Índios – SPI, substituído em 1967 pela Fundação Nacional do Índios – FUNAI. Este órgão favoreceu a articulação do cenário indígena e indigenista nas década de 1970 e 1980, período que marcou a luta e o reconhecimento pelos direitos indígenas.

Lima e Hofmann consideram que o apoio que os índios receberam na década de 1980 de associações civis e ONGs, foi fruto de uma organização dos próprios índios, que passaram a ter maior compreensão do mundo moderno e começaram uma luta mais intensificada no campo político. Em busca de apoio, passaram a contar com financiamento de instituições internacionais, de igrejas e fundações defensoras dos direitos humanos. Nesse contexto foi criado o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, que também contribuiu com o fortalecimento dos grupos indígenas na reivindicação de seus direitos. Foi também destaque desse período a atuação de lideranças indígenas durante a elaboração do texto da Constituição Federal de 1988 e a participação dessas lideranças no legislativo das diferentes esferas governamentais, principalmente na municipal (LIMA e HOFMANN, 2002).

A partir de 2003, no cenário nacional, alguns fatos fazem supor um maior avanço na luta pela conquista de direitos como a homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol; a ocupação de 14 fazendas pelos índios Kaiowá do Mato Grosso do Sul e as retomadas de sítios arqueológicos pelos Guarani- Ñandeva no Oeste do Paraná (BORGES, sem data).

No Acre a organização das etnias apoiada por diferentes segmentos da sociedade civil, como a Comissão Pró-Índio – CPI, a União das Nações Indígenas do Acre e Sul do Amazonas – UNI, e o Conselho Indigenista

Missionário - CIMI favorece as primeiras experiências com educação indígena e se firma o propósito de demarcação das terras indígenas, o que só ”veio a acontecer apenas cinco anos depois, em 1991, num contexto em que a UNI declarou sua autonomia em relação à coordenação da União das Nações Indígenas” (AQUINO e IGLESIAS, 2005a :1), que até então era ocupada por não-índios. É nesse período que o Estado brasileiro começa a reconhecer de fato a luta e os direitos dos índios e estes a ampliar seus conhecimentos e apresentar proposições de políticas para a vida na aldeia e na relação com a cidade.

Essa mobilização pela criação do "movimento indígena" foi engrossada por um considerável número de jovens indígenas, de vários povos, chegados das aldeias em busca de estudar em escolas da capital. Em 1986, representantes dos povos Kaxinawá, Yawanawá, Katukina, Jaminawa, Kulina, Kampa, Nukini, Poyanawa, Manchineri, Arara, Apurinã e Kaxarari presentes à III Assembléia Indígena decidiram pela criação da União das Nações Indígenas do Acre e Sul do Amazonas (UNI) (AQUINO e IGLESIAS, 2005a :1)

Falar da luta política por educação e reconquista de territórios indígenas por meio da legalização de suas terras, necessariamente remete à “Aliança dos Povos da Floresta” em 1989, que reuniu índios, seringueiros, ribeirinhos e outros trabalhadores rurais que se organizaram por meio de sindicatos e conselhos representativos, num processo que levou à formação de lideranças importantes. A Aliança se deu entre o Conselho Nacional dos Seringueiros - CNS7 e a UNI:

Em diferentes fóruns políticos, nos anos de 1988-89, a UNI assumiu posições conjuntas com o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), reivindicando que o governo federal procedesse com a regularização de áreas indígenas e reservas extrativistas e efetivasse políticas públicas que garantissem a permanência e a melhoria da qualidade de vida das populações da floresta. Lideranças dos seringueiros e do movimento indígena, atuando pela primeira vez em conjunto,       

7

Uma das razões de criação do CNS é fazer reconhecer o seringueiro como uma classe que já

deu a sua contribuição, que luta e que tem uma luta importante (Palavras de Chico Mendes apud Porto-Gonçalves, 1998: 447-448).

também tentaram influenciar os rumos da política oficial para a borracha, incentivar a realização de pesquisas adequadas às necessidades dos povos da floresta, assim como angariar apoio para os programas de cooperativismo, educação e saúde, que vinham desenvolvendo em parcerias com entidades da sociedade civil (AQUINO e INGLESIAS, 2005a: 2).

A Aliança é resultado do amadurecimento político de seringueiros e índios, acumulado ao longo da luta contra a perda de territórios e de lideranças importantes como Wilson Pinheiro, presidente do primeiro sindicato rural do município de Brasiléia – AC, assassinado em 1980. Embora de importante relevância o movimento ainda sofreu baixas com a morte de Chico Mendes, presidente do sindicato rural de Xapuri – AC, assassinado em 1988, entre outros seringueiros, embora menos conhecidos. A luta desses seringueiros teve importância não só no contexto regional amazônico onde ocorriam os conflitos, mas com amplitude nacional e internacional a partir da atuação de Chico Mendes.

Outras organizações representativas começaram a surgir com o reconhecimento dos direitos indígenas, que foram as associações de agentes agroflorestais, professores e mulheres, por exemplo, que superam as lutas por uma estratégia de sobrevivência. Estas associações surgem da constatação do poder, agora adquirido e resultam do acesso à educação e a articulação política que permitiu aos índios ter voz no mundo externo indígena, como se pode perceber na fala de Fátima Domingos Kaxinawá:

Nós mulheres índias do Rio Humaitá, estamos pensando na nossa vida no futuro para que possamos melhorar a nossa situação [...] fizemos algumas reuniões, nas quais nós, que somos alfabetizadas, explicamos para as pessoas que não entendiam o que estamos tentando organizar [...] o nosso artesanato: como fazer rede, capanga, pulseira, chapéu [...] existem também homens tentando fazer flechas para vender (CPI/AC, KAXINAWÁ, 2002).

A terra indígena do Rio Humaitá, dos índios Kaxinawá, foi uma das primeiras a receber o apoio da sociedade civil e de recursos financeiros para a implantação da educação indígena, tema que será tratado mais

detalhadamente no último capítulo. Esse pequeno trecho da fala de Fátima Kaxinawá expressa uma variedade de resultados decorrentes da resistência indígena contra a violência sofrida pela atuação dos patrões seringalistas. O processo de alfabetização hoje dá suporte para a organização e produção artesanal de mulheres e homens e mostra a importância da formação das associações e a absorção de novos elementos culturais que criaram a necessidade da inserção no mercado.

Nota-se, com isso, que há um conteúdo daquilo que Rodrigues (1997) aponta no primeiro capítulo, que é a interação da tradição com a modernidade, pois, ao mesmo tempo em que há uma apropriação do discurso da sociedade nacional pelos índios, possibilitado pelo processo educacional, aponta-se, também, para a possibilidade de formulação de políticas públicas pensadas a partir dos próprios índios, no momento em que eles formam associações e definem qual o artesanato querem produzir, o que pressupõe também uma percepção do mercado para esses objetos.

CAPITULO 3. Políticas Públicas, a quem elas atendem?  

Nos dois primeiros capítulos tratam o projeto da modernidade, como ocorreram as suas intervenções no ocidente e como as populações que se encontraram fora desse projeto foram atingidas. A discussão sobre políticas públicas neste capítulo permite compreender como elas constituem um suporte para esse processo modernizante e de desenvolvimento do capitalismo, que é característica marcante da modernidade. Busca-se assim, identificar como as políticas públicas são feitas para os povos indígenas, em que medida vão ao encontro de suas realidades, principalmente as políticas de ATER que são o ponto de lança, que vão planejar e intervir no campo a partir da modernização e da Revolução Tecnológica. Trata-se de uma proposta de desenvolvimento hegemônico na América Latina para modelar o pequeno produtor com mudanças.de comportamento. Frente a essa realidade cabe observar que os Jaminawa estão relacionados como público beneficiário do Programa de Extensão Indígena do Acre, devendo-se questionar se eles de fato precisam de uma política de ATER.

3.1. Da formulação à execução, como as políticas Públicas são pensadas

Para se fazer uma avaliação de políticas públicas é necessário considerar as “questões de fundo” que são aquelas relacionadas às decisões, escolhas, maneira de implementação e de avaliação das intervenções adotadas através de programas, projetos ou ações. É fundamental também entender alguns conceitos, como o de Estado e o de Governo, que muitas vezes se confundem, assim como os próprios conceitos de políticas públicas e políticas sociais, uma vez que há um imbricamento entre eles (HÓFLING, 2001).

Considerando o objetivo geral desta dissertação, que consiste na análise do Programa de Extensão Indígena do Estado do Acre, neste capítulo serão levantadas as questões que Hófling (2001) considera como fundamentais para o estudo de políticas públicas, assim como será trazida também a abordagem de outras políticas que têm interface com o referido Programa, como a Política