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CAPÍTULO 1. MODERNIDADE E TRADIÇÃO 11 

1.4. Modernidade, colonização e o fracasso emancipatório 16 

O desenvolvimento da ciência moderna que permitiu o aprimoramento da tecnologia para o avanço das navegações no século XV, com as novas rotas comerciais e a “descoberta” do Novo Mundo, desencadeou o processo de conquista de territórios e povos e concedeu o lugar de centro científico, de riqueza e de poder hegemônico à Europa.

Segundo Vicentino e Dorigo (2005) até 1492, quando se deu a conquista de novas terras e povos pela Espanha e Portugal, a Europa era inexpressiva no que se refere à população, riqueza e existências de cidades, podendo-se considerar que era uma periferia do Império Árabe.

O papel que os europeus passaram a ocupar com a expansão do poder e influência no contexto mundial “é [uma] importante característica da modernidade: de periferia do mundo mulçumano, a Europa passa a ser

‘construtora de periferia’, e a América Latina é a sua primeira grande experiência de dominação” (VICENTINO e DORIGO, 2005: 140). Foi esse momento de contato entre europeus e habitantes do Novo Mundo que o conceito de primitivo tornou-se sintomático, pois refletia o pensamento europeu de sentir-se moderno frente às sociedades “atrasadas” que não correspondessem ao estilo e modo de vida do colonizador (MIGNOLO, 2010).

A situação colonial, ao colocar em confronto culturas, indivíduos, instituições e subjetividades, acabou trazendo à tona uma forte contradição presente no projeto da modernidade que tinha, por um lado, a promessa da emancipação do indivíduo das amarras da localidade, do obscurantismo da fé religiosa e das relações comunitárias de poder e trocas comerciais e, por outro lado, as relações de domínio, as guerras, a produção de desigualdades e eliminação da liberdade impostas aos povos colonizados.

Tal contradição ficou mais nítida no período do Iluminismo, quando os filósofos, principalmente, lançaram-se na árdua tarefa de definir o Homem, procurando a essência da espécie para além de suas particularidades culturais e considerando a liberdade e a busca pelo conhecimento como valores universais.

O Iluminismo marcou um período onde as condições de desenvolvimento da ciência começaram a ter por base o uso da razão e da crítica à fé como fonte de conhecimento, momento em que no plano político e econômico formularam-se criticas ao absolutismo e ao mercantilismo, principalmente pela limitação do direito à propriedade, conduzido pelo movimento de renovação intelectual. O Iluminismo teve início na Inglaterra, no final do século XVII e atingiu seu apogeu na França no século XVIII. Foi um movimento ideológico burguês, de uma classe social que vinha se firmando com a renovação intelectual e as transformações sociais, políticas e econômicas. O Iluminismo, ou “século das Luzes” tinha a base filosófica materialista:

O movimento representa o autodinamismo da matéria e tem sua origem na própria matéria. O conhecimento, que era entendido como um reflexo dos fenômenos existentes na razão

humana nascia das sensações, que por sua vez produzem o conhecimento (PINHO e CÁCERES, 1983:195).

Acreditava-se que a razão humana que permitia compreender a sociedade e a natureza daria a condição para a felicidade humana. Sobre esse aspecto Rouanet (1989) observa que a razão, maior bandeira da Ilustração pode ser contestada: “Sua fé na ciência é denunciada como uma ingenuidade perigosa, que estimulou a destrutividade humana e criou novas formas de dominação, em vez de promover a felicidade universal” (ROUANET, 1989: 26).

A emancipação, considerada o núcleo da ilustração, “foi, apesar de tudo, a proposta mais generosa [...] jamais oferecida ao gênero humano. Ela acenou ao homem com a possibilidade de construir racionalmente o seu destino, livre da tirania e da superstição” (ROUANET, 1989: 27).

A discussão do conceito de emancipação proposto pela modernidade é feita por Mignolo (2010) a partir do olhar na colonização e descolonização. Este autor explica os efeitos da modernidade nesse contexto, tecendo uma crítica ao uso do termo emancipação dos países da África, da Ásia e da América Latina, e procura mostrar as diferenças existentes entre emancipar, liberar e descolonizar, nos processos de “independência” política desses países.

Baseado na obra de Dussel (1977), Mignolo, (2010) considera que o conceito de emancipação pertence ao discurso da ilustração européia e que segue sendo usado hoje na mesma tradição. É uma noção comum aos discursos tanto liberais como marxistas; no entanto, segundo o autor, os termos emancipação ou libertação/descolonização são dois projetos diferentes do terreno geopolítico. O autor observa que essa abordagem não serve para identificar quem está com a razão, e sim compreender quem são os beneficiados, quem necessita desses projetos, quem são os agentes e a quem se destina o projeto emancipatório, sendo importante distinguir quando a emancipação tem uma dimensão universal que parece abarcar os interesses de toda a gente oprimida do mundo (MIGNOLO, 2010).

Para melhor compreender a dimensão do termo emancipação, o autor lembra que no século XVIII ele esteve presente em três experiências históricas importantes da civilização ocidental que foram: a Revolução Gloriosa de 1688,

a independência dos colonos da Nova Inglaterra e Virgínia em relação ao Império britânico na América do Norte, em 1776 (Independência dos EUA) e a Revolução Francesa em 1789. Nas três experiências a emancipação foi o conceito utilizado para afirmar a liberdade de uma nova classe social, a burguesia (MIGNOLO, 2010) no entanto, todas essas experiências estiveram longe de promover a emancipação dos oprimidos “criados” na modernidade.

A libertação, diferentemente, oferece um aspecto mais amplo, pois inclui a classe racial que a burguesia européia colonizou e subsume a noção de emancipação: não se trata só de descolonizar o colonizado, mas fundamentalmente de desvincular o colonizador enquanto detentor do controle da economia e da autoridade. Trata-se de libertar a matriz colonial do poder que sujeita a ambos (MIGNOLO, 2010).

Segundo Bosi (1992) uma outra contradição se estabeleceu no projeto emancipatório da modernidade, notadamente com as teorias evolucionistas do século XIX, que procuraram traduzir em tabelas lineares os estágios de desenvolvimento da Humanidade a partir de um espectro de classificações que iam da barbárie à civilização. Bosi (1992) afirma que a orientação moderna optou pelo conceito de cultura em oposição à natureza, incorporando teorias de evolução social que traziam uma visão da História como progresso técnico e de desenvolvimento das forças produtivas com ênfase dada à produtividade que “requer um domínio sistemático do homem sobre a matéria e sobre outros homens. Aculturar um povo se traduziria em sujeitá-lo ou adaptá-lo tecnologicamente a certo padrão tido como superior” (BOSI, 1992: 17), em retirar a sua liberdade de ser como é.

Referindo-se ao que Marx analisou sobre a ação colonizadora européia que explorou os povos e os recursos naturais da América, África e Índia, Bosi (1992) esclarece “que o processo colonizador não se esgota no seu efeito modernizante de eventual propulsor do capitalismo mundial” (p.20); se for necessário ou quando estimulado, faz ressurgir os mesmos regimes de trabalho usados em tempos arcaicos, como o extermínio e a escravidão dos nativos de qualquer lugar do mundo, desde que seja de interesse econômico. “Contraditória e necessariamente, a expansão moderna do capital comercial, assanha com a oportunidade de ganhar novos espaços, brutaliza e faz

retroceder às formas cruentas o cotidiano vivido pelos dominados” (BOSI, 1992:21).

Segundo Mignolo (2010) o discurso da emancipação proposto na ilustração européia representa a mudança dentro do próprio sistema sem, no entanto, questionar a lógica da colonialidade.

O autor considera que estabelecer diferença entre emancipação por um lado e liberação/descolonização por outro - estes dois últimos enquanto projetos de desprendimento - leva à repensar o conceito de “revolução”, e exemplifica afirmando que nem todas as “revoluções” ocorridas entre o fim do século XVIII até metade do século XIX, referindo-se à insurreição de Tupac Amaru no Peru (1781), a revolução haitiana (1804) e a descolonização da África e Ásia no século XX, podem ser consideradas como pertencentes à proposta da modernidade de emancipação do homem. As duas primeiras apresentam semelhança de desprendimento, já as “independências” hispano- anglo-americanas ocorreram dentro do próprio sistema, portanto configurando- se como emancipação (MIGNOLO, 2010). Esta emancipação é semelhante a que ocorreu com a burguesia.

Ao discutir os processos acima referidos, Mignolo (2010) aponta semelhanças ao invés de estabelecer diferenças entre eles. Dessa forma o autor quer dizer que emancipação e liberação são os dois lados da mesma moeda, assim como modernidade/colonialidade. Emancipação captura o momento em que uma etno-classe emergente, a burguesia, por exemplo, emancipa-se das estruturas monárquicas de poder na Europa. Por outro lado, o conceito de liberação é construído frente à diversidade de grupos étnicos colonizados pela burguesia que se emancipou das monarquias. Por isso o conceito de liberação tem relação tanto com modernidade, quanto com colonialidade, por conseguinte “liberação” mantém o impulso da “emancipação”, mudam-se apenas os atores (MIGNOLO, 2010).

A análise de Mignolo (2010), aqui trazida de maneira sucinta, objetiva também compreender que “a modernidade não é um fenômeno exclusivamente europeu, mas está constituído numa relação dialética com a alteridade não- européia e que os futuros globais ou serão uma continuidade dos ideais da modernidade, ou serão trans-modernos e descoloniais” (MIGNOLO, 2010: 28).

No primeiro caso a modernidade é entendida como essencialmente européia e a “emancipação” dos outros povos só pode acontecer a partir da Europa ou dos Estados Unidos, ou seja, por nações imperialistas, tudo orientado pelo local de concentração do poder “o que Habermas imagina como plena realização do projeto inacabado da modernidade” (MIGNOLO, 2010: 29).

A complexidade conceitual dos termos emancipação, liberação/descolonialidade e suas conexões, trazida por Mignolo (2010), procuram elucidar que o processo e autonomia de povos e nações, submetido à dominação imperialista “política, econômica e espiritual (epistêmica, filosófica e religiosa)” (p.30) não detém uma razão de verdade absoluta, ou seja, nenhuma pessoa, grupo, igreja ou governo de esquerda ou de direita, na opinião do autor, pode oferecer uma solução para a liberdade da população do planeta no seu conjunto. Isso porque tem que se considerar que há uma diversidade de povos e nações, por conseguinte deve haver uma diversidade de soluções que sejam próprias a cada povo e cada lugar. “Há dois tipos de atores na sociedade dos impérios: os que assumem o ‘mito irracional que justifica a violência genocida’ e os que se opõem a este mito e o denunciam no mesmo seio desta sociedade (MIGNOLO, 2010).

Atualmente a América Latina reúne um misto de culturas próprias do continente que se mesclaram às culturas européias permitindo a coexistência de uma diversidade de línguas, religiões e visões de mundo e “apesar das tentativas de dar à cultura de elite um perfil moderno, encarcerando o indígena e o colonial em setores populares, uma mestiçagem interclassista gerou formações híbridas em todos os estratos sociais ”(CANCLINI, 2008: 73 e 74).

Como resultado disso, há nas capitais e outras cidades de alguns países latinos uma burguesia de elevado nível educacional que dispõe de objetos de tecnologia moderna e informações vinculadas à modernidade, onde “[...] ser culto, e inclusive ser culto e moderno implica tanto vincular-se a um repertório de objetos e mensagens modernos, quanto saber incorporar a arte e a literatura de vanguarda” (CANCLINI, 2008:74).

No entanto, segundo Canclini (2008) o componente de dominação da modernidade se faz presente ao longo do tempo com a mesma racionalidade da relação colonizador/colonizado. O autor apresenta o cenário histórico que

fornece a base para essas contradições, ao observar o conjunto do modernismo europeu que floresceu num espaço / tempo em que se combinavam:

um passado clássico ainda utilizável, um presente técnico ainda indeterminado e um futuro político ainda imprevisível [...] surgiu na intersecção de uma ordem dominante semi- aristocracia, uma economia capitalista semi-industrialização e um movimento operário semi-emergente ou semi-insurgente (ANDRESON, apud CANCLINI, 2008:73).

É um cenário de ampla transição histórica e de interseções temporais que permitiu às elites elaborarem um projeto global que apresenta contradições, cabendo questionar em que medida elas “entorpeceram a realização dos projetos emancipador, expansionista, renovador e democratizador da modernidade” (CANCLINI, 2008:73). Assim ao mesmo tempo em que propõem emancipar, elas incluem, praticam e perpetuam a irracionalidade da violência genocida.