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A crítica de Hume à posição de Locke (e outros) sobre os milagres

Capítulo III O diálogo entre a razão e a revelação no livro IV do Ensaio

3.7. Os milagres e o seu papel na epistemologia lockeana

3.7.2. A crítica de Hume à posição de Locke (e outros) sobre os milagres

Segundo Maia Neto (2011, p. 491), o Ensaio exerceu uma grande influência na obra de Hume, Investigação sobre o entendimento humano (1748, a partir de agora citada como Investigação), que vai além da semelhança do título. Ele observa que Locke é o filósofo mais citado na obra, com cinco referências diretas e muitas outras indiretas. As referências de Hume são de oposição a Locke33. A seção x da Investigação é intitulada: “Dos

milagres”. Nessa seção, o nome de Locke não é citado, porém é possível perceber o questionamento e a reprovação da posição assumida no Ensaio e no Discurso sobre a confiabilidade dos milagres34.

Na seção x da Investigação, é apresentado um argumento a priori contra a crença nos milagres. A base do argumento de Hume é o grau de crença dispensada a uma proposição em relação à sua evidência. Para ele existem fatos cuja evidência baseada na experiência

33 Deve-se porém notar que na primeira e mais importante obra de Hume, o Tratado da Natureza Humana a influência de Locke, e em especial do Ensaio, é, em grande parte das vezes, positiva. Na reformulação dos textos que resultou na Investigação é visível o esforço de Hume de aparentar-se mais distante de Locke, inclusive pela substituição de exemplos famosos de Locke, usados no Tratado, como o da ideia do gosto do abacaxi (ideia simples, que não se poderia obter senão pela experiência).

passada é tão alta a ponto de ser considerada uma prova de que o fato acontecerá no futuro35.

Em outros casos, a evidência é menor, deixando espaço para a dúvida e ficamos apenas com probabilidade. Distinção semelhante vale para os relatos de terceiros, ou seja, aqueles transmitidos indiretamente. É muito comum recebermos informações por meio do depoimento de pessoas. O nosso assentimento a esse relato pode ser igual ao dispensado a uma prova ou a uma probabilidade.

Por exemplo, alguém relata o congelamento de um lago no inverno em uma determinada região. Esse fenômeno já foi presenciado pelo receptor do relato em outros momentos. O assentimento desse receptor a essa transmissão será muito alto. O inverso também é válido, caso o relato contraste com a experiência passada, o assentimento será muito baixo, podendo chegar até mesmo ao descrédito. O crédito ou o descrédito não dependem da relação de ideias que se possa estabelecer, pois estamos no nível da experiência. Portanto, isso está ligado muito mais ao fato de estarmos acostumados a encontrar essa conjunção na natureza.

Hesitamos frequentemente diante dos relatos de outras pessoas; contrapomos as circunstâncias opostas que causam alguma dúvida ou incerteza, e, quando identificamos uma superioridade em algum dos lados, inclinamo-nos para ele, sempre, porém, com um decréscimo de confiança proporcional à força de seu antagonismo. (Investigação seção 10, parágrafo 6, a partir de agora citado como EHU 10.6)

Dentro desse contexto, se insere a crítica a priori de Hume aos milagres, pois tudo o que contraria a experiência estabelecida da regularidade da natureza deve ser abordado com muitas reservas. Pode acontecer de um evento ser raro na natureza, mas isso não significa necessariamente ser contrário à natureza. A definição de algo contrário à natureza pressupõe a observação da uniformidade da mesma. Os milagres estariam contra essa uniformidade que goza de uma grande evidência.

Tomemos um exemplo de um dos milagres relatados nas Escrituras. A experiência da uniformidade da natureza nos mostra que o homem não pode caminhar sobre as águas. Nos evangelhos está relatado que Jesus certo dia caminhou sobre as águas. Isso seria um milagre. Quando alguém relata a ocorrência de um milagre, necessita de evidências que superem a expectativa da regularidade da natureza que é contrária a esse fato. Caso as

35 Notemos que o termo 'prova' não está aqui sendo usado em seu sentido clássico, de uma demonstração estrita. Maia Neto (2011, p. 502) propõe ser relevante Hume chamar de prova o que Locke denominaria de

alto grau de probabilidade. Essa diferença de posição entre eles possibilitará o argumento humeano a priori

evidências oferecidas não superem a alta probabilidade da uniformidade da natureza, a aceitação deste milagre fica comprometida. Essa é a crítica a priori de Hume.

Existe um contraste entre a posição de Locke e Hume. Os dois concordam que os milagres devem ser entendidos como fatos extraordinários e contrários à uniformidade da natureza. Partindo dessa definição, Hume acaba sugerindo que os milagres são impossíveis de acontecer, pois para ele uma experiência de uniformidade da natureza é equivalente a uma “prova”36. Usar um termo epistemológico forte como prova para referir-se à uniformidade da

natureza é, porém, controverso. Essa pode ser uma posição equivocada de Hume; apesar da uniformidade da natureza ser altamente confiável, não é uma prova, no sentido tradicional do termo (usado na matemática, por exemplo). Locke, por sua vez, reconhece que a uniformidade da natureza pode ser questionada de maneira coerente sem prejuízos para a epistemologia. Os milagres são para ele uma ação de Deus, que tem o poder de mudar o curso da natureza. Além disso, os milagres não são ocorrências fortuitas, mas intencionais: sua função é confirmar uma revelação. Esse meio extraordinário de comunicação de Deus possibilita a muitos homens terem acesso a verdades fundamentais.

Queremos destacar o fato de tais supostos eventos extraordinários contrariarem a experiência do homem. É certo que a experiência goza, em alguns casos, de uma altíssima consideração, mas existe sempre a possibilidade de ser contrariada. Segundo nossa interpretação, a defesa que Locke faz dos milagres consiste justamente em reconhecer essa possibilidade. Embora a probabilidade, em alguns casos, seja tão alta, ela não é conhecimento (E IV.xvi.6). O que podemos concluir é que nenhum dos argumentos, a favor ou contra os milagres, são definitivos, cada um destaca uma face importante do problema epistemológico/metafísico da regularidade da natureza.

Assim, parece-nos que Hume fecha a questão sem apresentar um argumento irretorquível contra os milagres. Já no contexto da filosofia lockeana eles se encaixam muito bem, pois existe uma abertura para esse elemento, considerando a intervenção de Deus e o caráter contingente e meramente probabilístico das regularidades naturais. Da mesma maneira que a fé não é um enxerto epistemológico, os milagres não são enxertos metafísicos. A sua filosofia fornece ao homem as bases racionais para tratar do domínio da fé sem perder

36 “And as a uniform experience amounts to a proof, there is here a direct and full proof, from the nature of the fact, against the existence of any miracle (...)” (EHU 10.12).

de vista o domínio da razão37.

Depois de ter atacado os milagres em si, Hume critica o testemunho de terceiros relatando milagres, que é a base em que se sustenta a difusão dos milagres na teoria de Locke. Como já mostramos, é o testemunho de pessoas confiáveis que funda a crença nesses fatos extraordinários. Sem a confiança nesse testemunho, a evidência para os milagres ficaria restrita às pessoas que os observaram. A Bíblia como revelação tradicional não poderia mais ser justificada por milagres do passado, aos quais não mais temos acesso.

Hume defende que um testemunho, qualquer que seja, não é suficiente para se estabelecer um milagre. Não apresentaremos toda essa discussão aqui. Uma frase que ilustra bem a sua posição é: “Se a falsidade do testemunho dessa pessoa for mais miraculosa que o acontecimento que ela relata, então sim – mas não até então – ela pode pretender contar com minha crença e assentimento” (EHU 10,13). Depois, na segunda parte da seção 10, ele expandirá a sua reflexão sobre a transmissão dos milagres, sempre mostrando a fragilidade dessa suposta via cognitiva.

Independentemente da avaliação final que façamos a seu respeito, temos de reconhecer que a crítica de Hume aos milagres incide fortemente sobre a posição de Locke. E, além da possibilidade, aventada acima, no texto e numa nota de rodapé, de imaginarmos uma réplica epistemológica lockeana a essa crítica, temos que considerar ainda, em um nível mais geral da discussão, o papel importante de Deus na filosofia lockeana. Analisamos isso no segundo capítulo, tratando da questão da sua existência. Quando levamos em consideração essa posição, os milagres encontram um lugar natural na filosofia lockeana, pois Deus, na concepção do Ensaio e da Razoabilidade, tem o interesse de que o homem alcance o bem supremo. Como os milagres podem ser úteis para esse fim, é razoável acreditar nessa possível intervenção divina. Locke buscou sempre uma filosofia sensata e equilibrada, e nela sempre esteve presente a ação de Deus. Aliás, ele procurou fundamentar racionalmente essa atuação.

Na mesma linha de raciocínio lockeana, Swinburne (2015, p. 451-9), argumentando sobre a natureza dos milagres, admite a possibilidade de que existam eventos que sejam violações ou quase violações das leis naturais. Caso existam indícios da ocorrência de tais eventos extraordinários, poderíamos explicá-los pela ação de algo ou alguém que está

37 Na verdade, poderíamos talvez explorar a falibilidade de nossas inferências indutivas – ponto classicamente atribuído a Hume, mas claramente presente também em Locke, como estamos vendo (e já foi destacado em Chibeni 1996, 2005, seção 5) – para criticar a posição demasiada absoluta de Hume contra a possibilidade de alterações no curso ordinário da natureza, independentemente de serem interpretadas como intervenções diretas da divindade.

acima das leis naturais. Se a explicação fosse dada pelas próprias leis naturais não haveria um fato extraordinário. A violação, então, seria atribuída a Deus ou a um espírito criado.

Se Deus existe, as leis naturais podem ser deixadas de lado apenas pela ação ou com a permissão de Deus que as mantém em operação. E de fato, é mais simples supor que, se as leis naturais podem ser suspensas pela ação ou permissão de algum agente, que este é o agente que as mantém normalmente em operação. (SWINBURNE, 2015, p. 458)

Em um contexto epistemológico em que a existência de Deus pode ser demonstrada, como é o caso da epistemologia lockeana, os milagres tornam-se eventos possíveis, e a crença em sua ocorrência pode em princípio ser razoável. Swinburne (2015, p. 462) critica Hume exatamente por ter levado em consideração somente o nosso conhecimento das leis da natureza como relevante para a discussão da possibilidade dos milagres.