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Capítulo III O diálogo entre a razão e a revelação no livro IV do Ensaio

3.6. As Escrituras no Ensaio e na Razoabilidade: revelação tradicional atestada

3.6.2. As Sagradas Escrituras na Razoabilidade

Na sua obra Razoabilidade do Cristianismo, Locke também não apresenta uma defesa específica da autenticidade da revelação bíblica. Ele procura evidenciar o fundamento bíblico do cristianismo, ou seja, que o Antigo e o Novo Testamento são as bases doutrinárias da religião cristã. É exatamente esse fundamento bíblico que garantiria a verdade da religião cristã. Fica implícito, portanto, o reconhecimento da Bíblia como revelação autêntica. No prefácio da obra, ele propõe recorrer somente à leitura das Escrituras para compreender a religião cristã. Na sua interpretação do texto bíblico, Locke reconhece Jesus como o Messias predito pelo Antigo Testamento e revelado no Novo Testamento, sobretudo nos Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos (SINA, 2001, p. 117).

A base do assentimento à messianidade de Jesus são os milagres realizados por ele. Reconhecê-la é sinônimo de reconhecer a sua dimensão divina. Ao fazer isso, Locke professa a sua fé no Filho de Deus e não somente a sua fé em um pregador de uma religião

natural.

Para convencer os homens disto [que Jesus é o Messias] Jesus realizou milagres, e a aceitação ou a não aceitação destes fazia com que os homens pertencessem ou não à sua igreja, fazia deles crentes ou não crentes. (Razoabilidade, vol. VII, p. 18) E nenhuma outra pessoa com poder de realizar milagres eles esperavam, senão o Messias. Esperavam um grande profeta, capaz de milagres, e não outro, e este seria o Messias. Vemos, portanto, que o povo justificava a sua fé n'Ele, isto é, a sua fé no fato que Ele era o Messias, por meio dos milagres que ele realizava. (Razoabilidade, vol. VII, p. 32)

A revelação recebida pelos judeus no Antigo Testamento também foi validada por milagres. Para ilustrar essa posição de Locke, podemos citar um trecho da Razoabilidade, em que ele defende a suficiência da revelação recebida pelos patriarcas no Antigo Testamento, mas essa revelação não foi abrangente o bastante para chegar a todos os homens. Portanto, a fé dos judeus é fundada na revelação autenticada por milagres, porém os povos gentios não tinham conhecimento deles. Tampouco os judeus tinham interesse em propagar sua fé; bastava terem recebido de Deus a revelação. Para Locke, Jesus derruba esse muro de separação. Ele realizou ações milagrosas em terras pagãs e, depois da ressurreição, teria, segundo os Atos e diversas das epístolas, enviado seus discípulos como missionários para anunciar a boa nova com palavras e milagres a todas as gentes. Nessa passagem a seguir, percebemos mais uma vez a importância dos milagres para dar crédito a uma revelação.

Se nos for perguntado, se a revelação feita aos patriarcas por Moisés não ensinou exatamente isso [que existe um único Deus verdadeiro], por que essa revelação não foi suficiente? A resposta é óbvia: por mais que o conhecimento claro de um único Deus invisível, Criador do céu e da terra, tenha sido revelado a eles; essa revelação foi restrita em um pequeno canto do mundo no meio de um povo que, por uma lei que eles receberam com essa revelação, os excluía do comércio e da comunicação com o resto da humanidade. O mundo gentio, no tempo de nosso Salvador, e várias eras antes, não poderia ter nenhuma comprovação dos milagres em que os hebreus construíram a sua fé. (Razoabilidade, vol. VII, p. 137)

Com essas citações, procuramos expor a posição de Locke de utilizar os milagres como critério para confirmar uma revelação. Assim como no Ensaio, na Razoabilidade ele não nos oferece explicações mais detalhadas sobre o critério dos milagres como garantia de procedência divina da Bíblia. O que pode causar mais questionamentos sobre a sua posição é o fato de as Escrituras, para ele, não conterem somente verdades religiosas, para contemplação intelectual, mas também princípios morais para serem observados na vida prática. Essas verdades morais podem em princípio ser adquiridas com o reto uso da razão, mas grande parte dos homens tem contato com essas verdades somente por meio da Bíblia.

pode evitar de elogiar a sublimidade da pregação moral de Jesus, e de evidenciar a perfeita conformidade existente entre os ditames morais da religião cristã e aqueles da mais pura ética racional” (SINA, 2001, p. 118). As implicações que essa posição tem na moral será um assunto a ser tratado no último capítulo desta dissertação. Sustentamos que o argumento de Sina é, ao menos à primeira vista, pertinente. De fato, na Razoabilidade, é mais evidente a função das Escrituras como portadora de regras morais.

Ainda na Razoabilidade, Locke defende que as epístolas que integram o Novo Testamento ajudam a aprofundar a compreensão do cristianismo, mas não são essenciais para a fé cristã. O que é essencial está contido nos Evangelhos. Muitas coisas nas Escrituras, apesar de serem inspiradas, não precisam ser observadas para se obter a vida eterna (implicação moral da revelação). Essas verdades ajudam a consolidar a fé, mas estão muitas vezes ligadas a situações particulares. Isso ficou claro também na carta escrita a Limborch citada acima, pois não se pode dar o mesmo peso a todos os textos que formam o conteúdo da Bíblia.

Existem muitas verdades na Bíblia que um bom cristão pode ignorar totalmente, e portanto não acreditar nelas, enquanto outros dão particular relevo a essas verdades e as chamam de artigos fundamentais, pois são pontos que caracterizam a sua comunidade cristã. (Razoabilidade, vol. VII, p. 154)

Portanto, apesar de as Escrituras conterem verdades reveladas, o peso moral de algumas proposições é maior do que o de outras. Essa é a resposta que colhemos dos escritos de Locke ao questionamento sobre a extensão das proposições reveladas na Bíblia. Seria muito delicado admitir como reveladas somente as proposições mais significativas e universais. Na última citação, ele sustenta a existência de verdades apenas circunstanciais e, portanto, estas não precisam ser conhecidas por parte de todos os homens. Porém, existem também proposições universais nessa revelação tradicional que todo homem necessita saber. Nesses casos, a razão poderia chegar ao conhecimento dessas proposições, mas devido às muitas ocupações e falta de tempo, uma parte da humanidade poderia não chegar a esse conhecimento utilizando somente a força da razão natural. Por isso, Deus concedeu ao homem, segundo Locke, essa segunda fonte confiável de conhecimento, a revelação.

Sina (2001, p. 120) defende que a revelação contida nas Escrituras é, para Locke, uma fonte segura para superar certas dificuldades cognitivas: “O estudo da história humana tinha, de fato, convencido Locke que nas coisas mais importantes, nas coisas em que dependíamos somente de nós, a filosofia e a razão humana haviam mostrado sua efetiva

impotência”.