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Temas religiosos na epistemologia de Locke : diálogo entre razão e revelação

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Academic year: 2021

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RAMIRO MARINELLI DUARTE

TEMAS RELIGIOSOS NA EPISTEMOLOGIA DE LOCKE:

DIÁLOGO ENTRE RAZÃO E REVELAÇÃO

C

AMPINAS

(2)

TEMAS RELIGIOSOS NA EPISTEMOLOGIA DE LOCKE:

DIÁLOGO ENTRE RAZÃO E REVELAÇÃO

Dissertação apresentada ao Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Estadual de Campinas

como parte dos requisitos exigidos para a

obtenção do título de Mestre em

Filosofia.

ORIENTADOR: P

ROF

. D

R

. SILVIO SENO CHIBENI

CAMPINAS

2016

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A Comissão Julgadora dos trabalhos de defesa de Dissertação de Mestrado

composta pelos professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública

realizada em 28 de setembro de 2016, considerou o candidato Ramiro Marinelli

Duarte aprovado.

Prof. Dr. Silvio Seno Chibeni

Prof. Dr. Humberto Schubert Coelho

Prof. Dr. Márcio Augusto Damin Custódio

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta

no processo de vida acadêmica do aluno.

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Agradecer é uma maneira reconhecer que precisamos do outro em nossas vidas. Somos andarilhos do universo em busca de sentido para o nosso caminhar. Como é bom sabermos que nessa jornada não estamos sozinhos, mas contamos com a presença de alteridades que nos ajudam a cresce e a nos desenvolver. A gratidão brota na alma principalmente em momentos em que concluímos uma etapa no nosso itinerário existencial. O fim de uma etapa do caminho é a abertura a novos e inexplorados horizontes que nos impulsionam na direção de uma evolução sempre maior.

Agradeço a Deus pela vida e por esse desejo de um mundo melhor e mais fraterno. Um mundo em que as diferenças culturais não sejam motivos para divisões, mas ocasiões de enriquecimento mútuo.

Aos meus pais, Antônio e Teresa, e às minhas irmãs, Natalia e Luciana, o meu muito obrigado por me apoiarem em todos os momentos da minha vida. Sem o incentivo e suporte de vocês a minha vida não seria a mesma. É muito bom saber que existe um porto seguro para todas e quaisquer tempestades da vida.

Agradeço aos amigos que me seguiram mais de perto nessa busca filosófica. De maneira especial a José Ricardo pela compreensão dos momentos difíceis e apoio nos momentos de cansaço, e a Patrícia pelo incentivo e ajuda nas questões filosóficas.

Comecei esta pesquisa na Unicamp como aluno especial da disciplina Filosofia da ciência. O meu intuito naquele momento era me formar melhor para as aulas que dava aos seminaristas no Instituto Diocesano de Filosofia Coração de Maria. Naquela ocasião conheci o professor Silvio Seno Chibeni que desde então me ensinou muito na arte da filosofia. Não tenho palavras para expressar o meu agradecimento pelo profissionalismo, competência e dedicação com que me acompanhou durante esses anos. O meu agradecimento pelas inúmeras horas de estudo, pela orientação nos momentos críticos da pesquisa, por ter me conduzido em profundidade na leitura dos textos filosóficos, por ter lido com tanta atenção os meus textos. Enfim, Silvio, obrigado pelo exemplo de professor e ser humano que estarão sempre presentes na minha vida.

Agradeço aos professores Márcio Custódio Damin (Unicamp) e Humberto Coelho (UFJF) pelas preciosas observações na banca de qualificação e na banca de defesa. Obrigado por terem ajudado a melhorar o texto da dissertação. A todos os professores da Unicamp que tive a oportunidade de conhecer nesses anos a minha gratidão. O meu agradecimento também aos funcionários da Unicamp pelo suporte técnico aos meus estudos, um agradecimento especial aos funcionários do Departamento de Filosofia.

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Mesmo que eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência; mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, não sou nada. (I Coríntios 13,1-2)

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Nesta dissertação analisa-se o tratamento dado por John Locke a temas religiosos no contexto de sua teoria epistemológica. Primeiramente apresentam-se os principais elementos que constituem essa influente teoria. Nela o entendimento humano é estruturado em dois domínios: conhecimento e crença em geral. O domínio da crença em geral é dividido em probabilidade e revelação. Enquanto a probabilidade é um produto da razão, a revelação é uma crença tipicamente religiosa. Defende-se, a partir desse mapeamento fundamental proposto no Ensaio sobre o Entendimento Humano, que o referencial teórico dessa obra é bastante adequado para tratar de temas religiosos. Segundo Locke, quando o conhecimento, no sentido estrito do termo, de conhecimento certo, não é possível, o homem tem a possibilidade, para guiar seu assentimento, de estabelecer bases adequadas para a crença. Como a revelação é, supostamente, uma intervenção extraordinária de Deus, que traz algum elemento cognitivo ao homem, a noção de Deus tem um papel direto nesse aspecto da epistemologia lockeana. Por isso, um capítulo da dissertação é dedicado à análise da demonstração do conhecimento da existência de Deus fornecida por Locke. No seu argumento Locke não fundamentou a existência de Deus em um caminho religioso, mas o elaborou como uma demonstração racional, do mesmo tipo das demais demonstrações no âmbito do conhecimento certo. Isto possibilitou uma base segura para estabelecer um diálogo profícuo entre razão e revelação, que é o tópico principal desta dissertação. O que caracteriza a posição de Locke na relação entre fé (religiosa) e razão é a busca de equilíbrio e a colaboração entre esses dois domínios. À razão cabe avaliar se uma suposta revelação tem ou não procedência divina. Ao seu turno, a revelação atestada pela razão alarga os horizontes do entendimento humano para além das capacidades racionais ou sensoriais ordinárias do homem. O comprometimento de Locke com a fé cristã, em particular, não fez com que ele descuidasse de buscar a razoabilidade da religião. A defesa da fé é, segundo ele, possível, em bases razoáveis e, por isso, ele se esforçou em delimitar bem os dois domínios do entendimento humano. Quando existe uma relação harmoniosa nesse âmbito, o homem tem uma fonte de verdade complementar, de relevante utilidade prática, ou moral. Assim a religião influenciou a sua filosofia e, de maneira mais clara e verdadeira, a filosofia influenciou a sua religião. Na última parte desta dissertação analisa-se a questão da moral dentro dessa relação entre razão e revelação. Em um certo momento do Ensaio, Locke propõe, en passant, que a moral poderia ser conhecida racionalmente. Porém, apesar de explicitamente nunca ter abandonado essa tese, ele não a desenvolveu suficientemente em nenhum lugar, dedicando-se, antes, a explorar outras vertentes para a fundamentação da moral. Uma delas seria buscar apoio para as verdades morais em textos tidos como revelações genuínas. Essas últimas – e, novamente, em particular, a revelação cristã – forneceriam diretamente ao homem um corpo consistente de regras morais que orientam o homem a ser feliz nessa vida e na vida futura. No livro II do Ensaio Locke desenvolve em razoável detalhe – e de forma um tanto inesperada, visto que ele é dedicado à questão epistemológica específica da origem das ideias – a perspectiva da vida futura como relevante para a moralidade. Notamos nesse ponto a possibilidade de uma interpretação que poderíamos, em certo sentido, classificar como “utilitarista” da moral. Mesmo neste caso, o papel da razão diante de uma revelação com conteúdo moral continua sendo, se esse caminho for seguido, o de constatar a procedência divina da revelação.

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This dissertation analyses the treatment given by John Locke to certain key religious issues in the context of his epistemological theory. First, we present the main thesis of this influential theory. In it, the materials of the understanding are structured in two areas: knowledge and belief in general. In its turn, the domain of belief in general is divided into probability and revelation. While probability is a product of reason, revelation is a typical religious belief. It is argued here, from this fundamental mapping proposed in the Essay Concerning Human Understanding, that the theoretical framework of this work is appropriate to deal with religious issues. According to Locke , when knowledge, in the strict sense of certain knowledge, it is not possible, men has the ability to guide their consent, to establish appropriate basis for belief. As the revelation is supposedly an extraordinary intervention of God that brings some cognitive element to man. Thus, the notion of God has a direct role in the Lockean epistemology. Taking this into consideration, a whole chapter of the dissertation is devoted to the analysis of the demonstration of the existence of God provided by Locke . In his argument, Locke did not infer the existence of God from any religious pressuposition; his demonstration is intended to be a rational demonstration of the same type that other statements in the realm of knowledge. This, according to Locke, affords a secure basis to establish a fruitful dialogue between reason and revelation, which is the main topic of this dissertation. What characterizes Locke's position on the relationship between faith (religious faith) and reason is the search for a balanced collaboration between these two domains. The main role of reason, in this case, is to help us to determine whether a proposed revelation has indeed a divine origin. On the other side, revelation attested by reason can, in certain specific cases, widen the horizons of human understanding beyond rational or sensory abilities ordinary. Locke's commitment to the Christian faith in particular did not make him careless of seeking the reasonableness of religion. The defense of the faith is, according to him, possible on a reasonable basis and this is why he struggled in delimiting carefully the two domains of human understanding. When there is a harmonious relationship in this context, man has in revelation a complementary source of truth, often of practical, or moral utility. This is how religion influenced his philosophy and, in a clearer and truer way, philosophy influenced his religion. The last chapter of this dissertation examines, in a somewhat exploratory way,the issue of the foundations of morals, given Locke’s theses about the relationship between reason and revelation. At a certain point in the Essay, Locke proposes, en passant, that morality can be known rationally. Although he never explicitly abandoned this thesis, he has not developed it anywhere. Instead, he devoted himself to exploring other possibilities to establish the grounds of morality. One of them would be seeking support for the moral truths in texts atested as genuine revelations. These texts – and, again, particularly the Christian revelation - would provide man with a consistent body of moral rules capable of guiding man to be happy in this life and hereafter. Also, in Book II of the Essay Locke develops in some detail the argument that takes the prospects of a future life as relevant to the issue of the foundations of morality. We suggest, here, that this line of argument is akin to utilitarism, as later developed by authors such as Jeremy Benthan and J. S. Mill.

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Introdução... 11

Capítulo I As bases da epistemologia lockeana...16

1.1. O entendimento humano: conhecimento e crença...16

1.2. O lugar epistêmico da revelação: uma análise preliminar...19

1.3. As ideias: o material do conhecimento na epistemologia de Locke...22

1.4. A definição estrita de conhecimento do livro IV do Ensaio...23

1.5. Os graus e os tipos de conhecimento...24

1.6. Os limites do conhecimento humano... 29

Capítulo II A existência de Deus... 32

2.1. A demonstração lockeana da existência de Deus...34

2.1.1. Os passos da demonstração...34

2.2. Algumas críticas à demonstração lockeana da existência de Deus...37

2.2.1. As vulnerabilidades internas do argumento...37

2.2.2. Para que provar a existência de Deus?...40

2.3. A imaterialidade de Deus... 47

2.4. A posição lockeana sobre o ateísmo...50

2.5. O argumento lockeano da existência de Deus e o seu contexto de elaboração...52

Capítulo III O diálogo entre a razão e a revelação no livro IV do Ensaio...56

3.1. As definições de razão e de revelação no Ensaio: perspectivas e limites...57

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3.4. A religião na perspectiva de uma relação equilibrada entre razão e revelação...73

3.4.1. A “fé racional” de Locke...74

3.4.2. O equilíbrio possível entre razão e fé...75

3.5. O entusiasmo: desequilíbrio entre razão e fé...82

3.5.1. O entusiasmo religioso...83

3.5.2. Refutando o inatismo de caráter religioso... 86

3.6. As Escrituras no Ensaio e na Razoabilidade: revelação tradicional atestada...90

3.6.1. As Sagradas Escrituras no Ensaio... 91

3.6.2. As Sagradas Escrituras na Razoabilidade...93

3.6.3. As Sagradas Escrituras entre a razão e a fé... 96

3.7. Os milagres e o seu papel na epistemologia lockeana... 97

3.7.1. A definição de milagre... 97

3.7.2. A crítica de Hume à posição de Locke (e outros) sobre os milagres...99

3.7.3. O problema do “subjetivismo” na definição lockeana dos milagres...103

Capítulo IV A moral lockeana entre a razão e a revelação...106

4.1. Moral e realização humana: o “utilitarismo” lockeano...108

4.2. A moral demonstrável... 113

4.3. A moral revelada...117

Considerações finais: a espiritualidade filosófica de Locke...122

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Introdução

A biografia de Locke revela um homem com uma vida eclética e com diversos interesses intelectuais. É comum a observação (ver e.g. ROGERS, 2007, p. 9) de que ele não foi um filósofo acadêmico, apesar da sua obra abordar quase todos os grandes temas da filosofia moderna. A sua vasta obra reflete os seus interesses e a sua vida de engajamento social, no sentido amplo do termo. Mesmo sendo diversos os temas tratados por Locke, ele buscou o equilíbrio e a concatenação geral do seu universo intelectual. O professor Hans Christian Aarsleff o considera o mais influente filósofo do período moderno, pois a sua atuação intelectual supera os limites das disciplinas tradicionais da filosofia (AARSLEFF, 1994, p. 252).

Para abordarmos a sua vasta obra poderíamos destacar três vertentes principais do seu pensamento – conscientes dos riscos que corremos com esta busca de catalogação simplificada – que são: epistemológico, político e religioso. Essas três vertentes exerceriam influência uma na outra e, pode-se sustentar, giram em torno de um eixo comum: a ética. Na nossa maneira de compreender o pensamento lockeano, a ética teria uma função transversal, embora muitas vezes não explícita, em toda a sua obra. Essa perspectiva de leitura não é comum na literatura sobre Locke.

A presente pesquisa pretende analisar a ligação que existe entre a vertente epistemológica e a religiosa na sua principal obra: Ensaio sobre o entendimento humano (a partir de agora Ensaio), com sua primeira edição em 1690. O assunto fundamental da obra é aquilo que hoje chamaríamos de epistemologia, ou teoria do conhecimento. A sua origem, porém, está em uma discussão, entre alguns amigos, sobre temas que o próprio Locke diz ser distantes daqueles que viriam a ser tratados na obra. Em um determinado momento, para resolver algumas questões, perceberam a necessidade de estudar a cognição humana. Desse estudo, que parecia simples no começo, surgiu o Ensaio, obra complexa e de ampla envergadura. Alguns comentadores sugerem que os referidos assuntos distantes do objeto principal da obra seriam a religião revelada e a moral. Foi o que anotou um contemporâneo de Locke, James Tyrrel, na margem de sua cópia do Ensaio, ele que esteve presente no encontro que serviu de inspiração para a produção do escrito lockeano (WOLTERSTORFF, 1994, p. 174). Na parte final do Ensaio, Locke retoma essa origem distante e discute a

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relação existente entre a razão, que, utilizando o material proveniente da experiência, produz o conhecimento no entendimento humano, e a revelação, tipicamente caracterizada como uma ação de Deus comunicando ao homem, de maneira extraordinária, certos conteúdos com pretensões cognitivas sérias. O exame lockeano da relação entre razão e revelação não é, embora possa à primeira vista parecer, uma digressão do tema principal da obra, mas um complemento necessário na visão de Locke.

A religião, juntamente com outros temas, complementa e dá um escopo mais amplo à obra magna de Locke. As reflexões religiosas mostram a ligação de Locke com o cristianismo. É inegável que ele se ocupou extensamente da religião cristã. O seu interesse não era apenas casual, mas encontramos uma reflexão sistemática sobre o tema em outros escritos. Em 1695 ele escreveu A Razoabilidade do Cristianismo (a partir de agora Razoabilidade). Nesse escrito, ele pretende oferecer ao leitor um sistema consistente que mostre que a doutrina cristã provém das Escrituras e que Jesus é o Messias esperado pelo povo judeu. Na introdução da Razoabilidade ele se propõe a oferecer uma “atenta e imparcial pesquisa” dos textos sagrados. Outra obra tipicamente religiosa de Locke é As paráfrases das epístolas de São Paulo. Esta última foi escrita no fim da vida de Locke e publicada postumamente. Na verdade, é a compilação em um volume único dos comentários às cartas de São Paulo aos Gálatas, Coríntios, Romanos, Efésios e um pequeno ensaio para compreender as cartas paulinas. Locke expressa toda a sua erudição no domínio do grego e propõe uma tradução e interpretação dos termos para dirimir disputas entre os cristãos. O Discurso sobre os milagres (1701) foi escrito também no último período da vida de Locke; trata dos eventos sensíveis que estão além da compreensão do espectador e que, alegadamente, têm origem divina. Todas essas são obras tipicamente teológicas em que invariavelmente está presente a preocupação com a racionalidade.

Dentro desse contexto da filosofia lockeana, tendo como referência básica o Ensaio, investigaremos nesta dissertação o estatuto epistemológico dos temas religiosos na filosofia lockeana. Por isso, discutiremos a demonstração da existência de Deus oferecida no capítulo x do livro IV do Ensaio, bem como os capítulos nos quais Locke, já pressupondo essa existência, trata diretamente da revelação. Apesar de serem esses capítulos o nosso foco de concentração, procuraremos manter uma visão global da obra, buscando nela elementos que nos ajudem a entender as posições de Locke no que se referem aos assuntos religiosos. A leitura de outros escritos do filósofo nos ajudará a complementar o trabalho.

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O objetivo lockeano nos capítulos xviii e xix do IV livro do Ensaio era mostrar a possibilidade de harmonizar razão e revelação, pois esses dois domínios, apesar de serem distintos, podem ser complementares em certas situações. A razão humana precisaria da fé para alargar seu alcance limitado e, segundo Locke, para dar a todos os homens acesso direto a verdades fundamentais que poderiam passar despercebidas devido à falta de tempo e ao mau uso da razão. Dentre essas questões fundamentais, estariam principalmente as regras morais. Para ele, Deus não poderia deixar o homem ignorante sobre esse assunto de vital importância prática. Sabendo que grande parte das pessoas deve se empenhar sobretudo com a própria sobrevivência e não poderia dispor do tempo necessário para refletir sobre certas questões morais, Deus utiliza outros meios para comunicar esses princípios. A fé, a seu turno, precisa da razão para não cair em armadilhas. O homem não pode aceitar como revelado algo contrário aos ditames da razão. Deus deu ao homem certas faculdades, e não seria justo que uma revelação trouxesse conteúdos contraditórios com os obtidos por essas faculdades cognitivas naturais. A razão não produz a revelação, mas tem um papel importante de controle da revelação. O caminho de Locke entre esses dois polos busca sempre o equilíbrio necessário para evitar exageros de qualquer um dos lados.

Analisando a relação entre razão e revelação, é nosso objetivo examinar até que ponto Locke conseguiu manter em equilíbrio essa relação e em quais pontos isso não foi possível. Perceberemos que as interpretações de contemporâneos de Locke e de intérpretes atuais sobre essa relação são muito variadas. Não é difícil encontrarmos leitores de seus escritos que o consideram um deísta, outros que o consideram um teísta e alguns dos seus contemporâneos e atuais leitores o consideraram até um ateu. Observaremos, em seus textos, algumas lacunas que possibilitam essas interpretações tão variadas, mas, ao mesmo tempo, acreditamos numa leitura que considere mais atentamente a sua biografia e o contexto de seus escritos para dirimir certas questões e diminuir o antagonismo das interpretações. Nem todas as questões serão resolvidas, caso em que serão mapeadas algumas possibilidades para interpretações contrastantes do pensamento lockeano.

A interpretação de seus escritos talvez seja mais difícil por ter tratado de muitos assuntos e por ter se envolvido em questões pungentes na política, na sociedade e na religião. Tendo que se defender do ataque de alguns interlocutores, ele aprofundou certas questões, parecendo mesmo que, em alguns casos, ele mudou de posicionamento. Levantaremos essas polêmicas com a pesquisa para buscarmos uma linha de interpretação que evidencie os temas religiosos presentes na sua epistemologia. Examinaremos esse assunto central no terceiro

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capítulo da dissertação.

Para discutirmos a relação entre razão e revelação, precisamos nos familiarizar com o pensamento epistemológico lockeano pois, como já anotado, apesar de considerações sobre a religião revelada terem sido relevantes na inspiração do Ensaio, a obra trata muito mais de questões epistemológicas. Serão exatamente essas bases epistemológicas que permitirão ao leitor compreender o contexto de discussão das questões religiosas. O primeiro capítulo desta dissertação será dedicado a apresentar de maneira sumária o que é mais significativo em sua teoria epistemológica. A discussão de alguns dos tópicos dessa relevância permitir-nos-á um melhor posicionamento para tratar de questões polêmicas entre a razão e a revelação.

No segundo capítulo, apresentaremos o argumento da existência de Deus, dando, assim, início à reflexão que envolve a crença religiosa e a razão. Podemos já adiantar que Locke coloca a existência de Deus dentro do conhecimento possível ao homem – conhecimento no sentido estrito do termo, de uma garantia epistêmica certa e definitiva; isso pode ser muito discutível, mas tem papel crucial para o objeto desta pesquisa e para a obra de Locke como um todo. De fato, se a existência de Deus não fosse um conhecimento ao alcance do homem, a revelação teria suas credenciais epistemológicas comprometidas, pois a fonte garantidora da revelação não estaria ela mesma endossada por um conhecimento seguro. Por isso, o segundo capítulo possibilita a discussão da relação entre razão e revelação sem que haja discrepâncias insuperáveis e, ao mesmo tempo, já exibe, num caso concreto, o diálogo entres essas instâncias, pois Deus é o autor da revelação e o objeto de conhecimento da razão.

Como se sabe, a época de Locke testemunhou a renovação da perspectiva de análise do debate multi-secular acerca do binômio razão-revelação, tão fundamental na filosofia medieval. Locke não poderia ter deixado de contribuir para o tema, e, como veremos no capítulo terceiro desta dissertação, apresentou teses e argumentos novos, que visavam, no fim das contas, a assegurar um equilíbrio e convivência pacífica entre razão e revelação, enquanto vias cognitivas.

No escopo desse debate, a questão da fundamentação da moral ocupa lugar de destaque. Embora não estivesse em nosso horizonte inicial de pesquisa, a imbricação e centralidade dessa questão acabou nos levando a dedicar a ela mais um capítulo da dissertação, o capítulo quarto. Ele tem, reconhecidamente, um caráter mais exploratório e

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incompleto do que os que o precedem, sendo aqui oferecido principalmente como subsídio a eventual exploração ulterior do assunto. No livro I do Ensaio, Locke propõe incidentalmente ser possível demonstrar a moral – no sentido clássico do termo. Entretanto, essa demonstração não é fornecida em nenhum lugar dessa obra ou de qualquer outra. É provável que tal ausência seja resultado do estudo realizado sobre o entendimento e a constatação da fragilidade do homem em conhecer até mesmo questões fundamentais, como as pertinentes à filosofia natural. Como a proposta de uma moral demonstrável não foi executada, apesar de existir uma real expectativa nesse sentido, ele deixou a possibilidade de um caminho alternativo que tangencia questões teológicas, pois não poderia deixar desprovida de uma certa segurança uma área tão relevante para o homem. Nesse caminho alternativo, Deus seria dado como o legislador e o fundamento seguro das leis morais. O cumprimento dessas leis seria reforçado pela expectativa de uma recompensa em uma vida futura, cuja realidade é um dos objetos típicos e mais importantes da revelação. Mesmo não sendo essa vida futura conhecida, no sentido estrito do termo, valeria a pena seguir as leis morais divinas que trariam ao homem um estado de felicidade nessa provável vida futura e também já neste mundo. Por isso, o conhecimento de Deus é relevante também para a filosofia moral, pois daria a ela uma base metafísica para as suas regras.

No início desta introdução, sugerimos que a moral perpassa todo o pensamento lockeano. A moral tem a função de indicar ao homem o caminho que leva à bem-aventurança tanto nesta vida quanto em uma vida futura. Por isso, no quarto capítulo da dissertação, ampliaremos as aplicações da relação entre razão e revelação para além da religião. Propomos que Locke referenda a revelação como via cognitiva não somente para fazer justiça à sua posição de cristão, mas tendo em vista também sua aplicação prática na filosofia moral. A revelação teria objetivos morais, isto é, ajudar o homem naquilo que ele necessita saber para viver bem neste mundo e se salvar.

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Capítulo I

As bases da epistemologia lockeana

A epistemologia de Locke é regularmente denominada “empirista”, e não é raro encontrar referências que a limitam a esse aspecto. Apesar dessa afirmação ter evidente fundamento, é necessário contextualizá-la para não restringir o alcance da filosofia lockeana1.

Na teoria lockeana do conhecimento, a experiência fornece, numa primeira e mais fundamental etapa, apenas o material para o conhecimento, mas ele não depende direta ou exclusivamente dela, como fica claro já nos primeiros parágrafos do primeiro capítulo do livro IV do Ensaio. Para que exista conhecimento, na sua forma estrita, é necessário um trabalho da mente sobre o material fornecido pela experiência, como detalharemos abaixo. Existem, porém, exceções importantes a esse esquema básico, mas elas acabam, de outra forma, valorizando mais a experiência e ampliando o seu papel na cognição (CHIBENI, 2007, p. 165-6). Nas páginas seguintes, analisaremos alguns dos elementos da epistemologia de Locke. Poderemos perceber que o seu empirismo não é radical e deixa abertura para outras possibilidades dentro do campo epistemológico. Essas aberturas facilitam o diálogo entre razão e revelação presente na sua obra.

1.1. O entendimento humano: conhecimento e crença

No Ensaio, Locke priorizou o estudo das capacidades cognitivas do homem quanto ao seu fundamento (ou “origem”) e ao seu alcance (ou “extensão”). A percepção mais clara dessas capacidades permite ao homem distinguir melhor o conhecimento da crença – a segunda, e muito importante, categoria epistêmica na teoria lockeana do conhecimento. Isso evitaria ao homem perder-se em discussões que estariam fora do seu alcance, pelo menos no estado atual em que se encontra neste mundo. O estudo do instrumento cognitivo contribui

1 Sobre a classificação da filosofia lockeana como empirista, consultar o artigo de Elliot D. Cohen (1984). O autor examina a tese de que existem na epistemologia de Locke tanto características empiristas quanto racionalistas. Notamos que a presença dessas características deveria suscitar cautela quando se denomina a sua filosofia de empirista. G. A. J. Rogers (2007, p. 14) também sustenta que é problemático classificar a filosofia lockeana de empirista, sem maiores qualificações.

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para dar mais precisão ao debate de outras questões, como as científicas, teológicas e morais. Portanto, a análise do entendimento humano é a primeira a ser aqui realizada.

No capítulo introdutório do primeiro livro do Ensaio, ele utiliza a seguinte comparação para expor o seu objetivo: “O entendimento, como os olhos, permite-nos ver e perceber todas as outras coisas sem dar-se conta de si mesmo; requer-se por isso arte e esmero para pô-lo à distância e torná-lo objeto de si mesmo” (livro I capítulo i parágrafo 1 do Ensaio, a partir de agora E I.i.12). Da mesma maneira que o olho não enxerga a si mesmo, o

entendimento também não se dá conta de si quando formula as suas proposições. Serão necessárias uma técnica e uma atenção especial para analisar a capacidade do próprio entendimento.

Na Carta ao Leitor, Locke justifica o estudo do nosso instrumento cognitivo nesses termos: “antes de nos lançarmos em investigações dessa natureza, seria bom examinarmos nossas próprias habilidades para ver quais objetos seriam ou não adequados ao nosso entendimento” (Ensaio, Epístola ao leitor). É esse o primeiro objetivo do Ensaio, estabelecer quais são as reais possibilidades cognitivas do homem. Sem uma análise prévia das reais possibilidades e condições do entendimento humano, há um certo risco de que a discussão de questões teóricas de outros domínios se mostrem infrutíferas ou equivocadas. De outro lado, essa análise poderá produzir algum descontentamento, pois ao longo da obra o leitor se dá conta – se aceitar os resultados de Locke – que a nossa capacidade de conhecimento não é tão grande como se pensaria que fosse. Porém, Locke sustenta que mesmo assim ela é suficiente para satisfazer os propósitos humanos e isso deveria bastar: “Nós não teremos razão para nos queixarmos da estreiteza de nossa mente se a ocuparmos com o que pode nos ser útil” (E I.i.5).

O fato de a capacidade humana não ser tão grande como esperaríamos não deve ser motivo de paralisia intelectual. É importante reconhecer as situações de impossibilidade humana de obter conhecimento e, nesses casos, o homem deve se contentar com aquilo que possui. Uma metáfora poderosa que Locke nos oferece em E I.i.5 é a do sujeito que se recusa a usar suas pernas para andar somente porque ele não tem asas para voar. Esse homem seria tão estulto quanto aquele que não acredita em nada somente porque não pode conhecer tudo. Muito do que está fora do alcance do entendimento humano não é, de fato, necessário para

2 Todas as citações do Ensaio seguirão a seguinte convenção: E (Ensaio), I (algarismo romano maiúsculo para indicar o livro), i (algarismo romano minúsculo para indicar o capítulo) e 1 (algarismo arábico para indicar o parágrafo).

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realizar os objetivos principais da vida neste mundo. Woolhouse (1994, p. 147) argumenta o seguinte a esse respeito: “Não somente não temos nenhuma necessidade de conhecer muito daquilo que não conhecemos, mas, além disso, nós não estamos habilitados a conhecê-lo”.

O reconhecimento da limitação do entendimento humano em obter conhecimento possibilitou a Locke uma compreensão expandida das suas funções. Para ele o entendimento humano não é fonte geradora apenas de conhecimento. Existem outros domínios que o compõem e são significativos. A divisão sem rupturas do entendimento nesses domínios que apresentaremos a seguir é um ponto de central importância, e, em certa medida, de originalidade da filosofia lockeana. A sua análise procura harmonizar as partes, mostrando a inexistência de contradição entre eles. Na introdução do Ensaio, Locke apresenta essa divisão nos seguintes termos: “Sendo meu propósito inquirir da origem, da certeza e da extensão do conhecimento humano, das bases e dos graus de crença, opinião e assentimento” (E I.i.2). Traçando o seu desígnio da obra, percebemos a divisão da cognição em dois domínios principais: conhecimento e crença. Dentro do âmbito do conhecimento, investigar-se-ão a certeza e a sua extensão, enquanto dentro do âmbito da crença, os fundamentos epistemológicos nos quais a crença se sustenta e os graus de assentimento que se deve dar a uma determinada crença.

Os conceitos de conhecimento e crença serão analisados detalhadamente ao longo da presente pesquisa. Queremos, no entanto, já definir, em linhas gerais, o que Locke entendia quando se referia a eles, pois isso nos auxilia a compreender a divisão do entendimento nesses dois domínios. A definição de conhecimento está em E IV.i.2: “Conhecer, portanto, é apenas perceber conexão e concordância, oposição e discordância, entre quaisquer de nossas ideias. Se há essa percepção, há conhecimento; do contrário não há conhecimento”.

A crença é mais difícil de ser definida, pois, no Ensaio, o uso do termo ‘crença’ é, em alguns casos, ambíguo. Yolton propõe que ‘crença’, ‘opinião’ e ‘fé’ podem ser intercambiáveis em algumas partes da obra (YOLTON, 1996, p. 67). Para tentar evitar ambiguidades, denominaremos esse domínio do entendimento de crença em geral. Quando formos tratar de um dos conceitos desse domínio, vamos qualificá-lo, para não haver dúvida. Nesta etapa da pesquisa, podemos definir a crença em geral como um assentimento do entendimento a uma proposição mesmo não sendo possível conhecê-la, ou seja, ter a percepção certa e infalível do acordo e desacordo de ideias envolvidas na proposição. Será necessário, nesses casos, apoiar esse assentimento em uma base razoável, porém externa às

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ideias propriamente ditas. David Owen (2003, p. 16) destaca que na teoria lockeana a crença em geral consiste na suposição da existência de acordo e desacordo de ideias nos casos que a percepção evidente e a priori dessa relação não é possível, devendo a suposição basear-se em fatores externos às próprias ideias relacionadas.

A divisão do entendimento proposta por Locke pode ser iluminada a partir de uma reflexão da origem da filosofia ocidental. Segundo Kenny (2007, p. 381-383) os primeiros filósofos gregos, na busca de compreender o que era o conhecimento, estabeleceram alguns critérios: somente pode ser conhecimento o que é verdade; e quem diz conhecer algo se compromete com essa proposição, não podendo nunca a contradizer, ou seja, o conhecimento tem um caráter perene. Aquilo que é conhecimento, portanto, tem necessariamente que ser verdadeiro, não existindo lugar para dúvida. A crença, por sua vez, pode em princípio ser falsa; e, uma vez constatada a sua falsidade, devemos abandoná-la. Por exemplo, é possível continuar acreditando na existência de alguém ou de algo, mesmo que esse alguém ou essa coisa não existam mais, ou de fato nunca tenham existido. Porém, quando se descobre que o objeto da crença não existe se deve abandoná-la. O homem pode e deve mudar a sua crença com certa facilidade, enquanto o conhecimento é necessariamente imutável. Não é possível dizer: “eu conhecia p, mas p era falso”. No caso da crença, deve haver indícios capazes de sustentar o nosso assentimento; a proposição na qual se crê é uma pretendente respeitável à verdade, e cabe ao epistemólogo explicitar as bases em que a crença se apoie.

1.2. O lugar epistêmico da revelação: uma análise preliminar

O texto do Ensaio nos dá a possibilidade inequívoca de considerar o entendimento humano dividido nas duas partes citadas acima: conhecimento e crença em geral. Quanto ao local epistêmico das supostas verdades reveladas, a interpretação não é tão clara, havendo, em princípio, duas possibilidades: incluí-las no domínio da crença ou considerar a revelação como um terceiro domínio. Isso porque a revelação tem características muito específicas em relação ao domínio da crença em geral. A revelação pertence, tipicamente, a um contexto religioso. Apesar de existir a possibilidade de interpretar o pensamento de Locke com esse terceiro domínio, optamos por deixar a revelação dentro do domínio da crença em geral. Supomos que essa seja uma interpretação mais adequada do seu pensamento. Pois, para Locke, a religião e, consequentemente, a revelação, tangenciam, ou

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mesmo contribuem, para áreas que estão além do contexto religioso. Do outro lado, a religião não se constitui somente de postulados revelados, mas alguns dos seus pilares estão dentro do conhecimento, a exemplo, como já salientamos na Introdução, da própria tese da existência de Deus. Estabelecida essa posição, agora cabe esclarecimento sobre a divisão existente dentro do domínio da crença em geral, entre probabilidade e revelação.

A certeza é a característica principal do conhecimento, no qual não existe espaço para a dúvida. É exatamente por isso que o conhecimento não será tão abrangente como se poderia esperar ou até mesmo desejar. Com essa definição forte, algumas áreas importantes, como a própria filosofia natural (aquilo que hoje chamamos de ciências naturais), ficaram, como Locke mostra, fora de seu domínio específico. Diante de tal resultado, Locke esforça-se para investigar como seria possível não limitar a cognição àquilo que pode ser conhecido, no sentido estrito do termo. Ele viveu em uma época em que as ciências naturais alcançavam resultados muito expressivos que, à primeira vista, justificariam a inclusão desses resultados dentro do domínio do conhecimento certo. Talvez tivesse sido mais cômodo para Locke ter assumido essa posição. Contudo, a sua escolha foi aceitar o resultado parcialmente cético a que chegou, e a partir daí tentar mostrar que, dentro do entendimento, existe outro domínio que, apesar de não garantir a verdade da mesma maneira do conhecimento, fornece proposições relevantes para o homem, e acerca das quais não pareceria sensato manter uma posição cética. É o domínio da crença em geral. Este não é oposto à razão, pelo contrário, uma parte da crença em geral é produzida pela razão. É o caso daquilo que Locke chama de “probabilidade”, como agora veremos.

A divisão entre probabilidade e revelação é melhor elaborada por Locke no final da sua obra, nos últimos capítulos do livro IV. No Ensaio, seguindo os passos de uma longa e respeitável tradição, a revelação tem um lugar importante, mas, para que seja aceita, deve passar por alguns critérios. O primeiro critério, porta de acesso para os outros, é ser compatível com a razão. Mesmo que a revelação não seja produzida pela razão, ela não pode lhe ser contrária. Caso a suposta revelação não passe por esse critério, ela é descartada já de início. Locke desenvolve, então, uma estrutura epistemológica bastante sofisticada para tratar da revelação. O tema da revelação não é um anexo das suas pesquisas, mas um elemento previsto e considerado desde o início. Portanto, queremos deixar clara a distinção do entendimento humano nestes dois domínios, conhecimento e crença em geral, e a divisão que existe dentro do último domínio: probabilidade e revelação. Pois são esses os elementos estruturais principais da epistemologia lockeana.

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Para a compreensão do pensamento lockeano e da divisão do entendimento humano como estamos propondo, é necessário distinguir os termos crença e fé presentes no Ensaio. Já notamos acima que esses termos, em alguns momentos, são intercambiáveis. Em outros, porém, Locke utiliza ‘crença’ e ‘fé’ referindo-se à probabilidade e à revelação. A má interpretação do contexto em que esses termos são utilizados pode causar problemas de compreensão do seu pensamento. Para ilustrar essa ambiguidade, podemos citar o parágrafo 3 do capítulo xv.

Probabilidade é semelhança de verdade [likeliness to be true], e a própria notação

da palavra significa uma proposição para a qual há argumentos ou provas de que pode passar por verdadeira ou ser aceita enquanto tal. A mente trata essa sorte de proposição com crença, com assentimento ou com opinião, palavras que significam admitir ou aceitar como verdadeira uma proposição, a partir de argumentos ou de provas que nos persuadem a abraçá-la, sem nenhum conhecimento certo. Nisso reside a diferença entre probabilidade e certeza, entre fé e conhecimento. Em cada parte de conhecimento há intuição, cada ideia intermediária, cada passo, tem visível e certa conexão. O que me faz crer é algo estranho à coisa em que creio, algo que não se junta a ela de nenhum jeito, que não mostra evidente concordância ou discordância entre as ideais em consideração. (E IV.xv.3)

Nessa passagem Locke utiliza os termos fé e crença, mas não no sentido estritamente religioso. A grande diferença no entendimento humano é o fato da probabilidade ser um produto da razão, enquanto a fé (religiosa) ser um ato da mente diante de uma revelação divina. Neste último caso, o papel da razão é avaliar a veracidade do ato revelador e não da proposição em si, ou seja, ela averigua se existe ou não base para se acreditar em uma determinada proposição como tendo efetivamente sido revelada. Portanto, a revelação não é um produto da razão, mas dependemos da razão para discernir se é uma revelação autêntica.

Nesta dissertação, utilizaremos o termo fé apenas quando nos referirmos à revelação ou a uma proposição ligada à religião. No caso do termo crença, utilizaremos para denotar ambos, probabilidade e revelação, procurando deixar explícito, no nosso texto, a qual dos domínios o termo está fazendo referência.

Na sequência deste primeiro capítulo, apresentaremos sucintamente os principais elementos que compõem o domínio do conhecimento. Entendendo melhor as bases epistemológicas do conhecimento, podemos discutir de maneira mais apropriada a relação que existe entre razão e revelação em Locke. Examinaremos de que maneira o conhecimento se constitui apresentando os tipos, a certeza e a extensão do conhecimento.

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1.3. As ideias: o material do conhecimento na epistemologia de Locke

No livro I do Ensaio, depois de ter apresentado o seu projeto, Locke passa a refutar a possibilidade do conhecimento inato. Ele argumenta, na discussão do capítulo ii, que não existem bases epistemológicas adequadas para se propor a existência de qualquer princípio, especulativo ou prático, que seja inato. “Rejeitando qualquer caráter inato ao conhecimento, sua concepção é a de que aquilo que Deus nos forneceu não foi o conhecimento que nos é útil e necessário, mas sim os meios para o adquirirmos” (WOOLHOUSE, 1994, p. 148).

Nós não analisaremos aqui os argumentos lockeanos contra a existência de princípios inatos. Notamos, no entanto, que alguns desses argumentos dependem da suposição de que as ideias3, que são os materiais que constituem esses supostos princípios,

também não são inatas4. O livro II é dedicado a inquirir sobre a origem das ideias. A posição

de Locke sobre essa questão é apresentada logo no início do livro II: “De onde [a mente] obtém todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, em uma palavra: da experiência” (E II.i.2).

São duas as operações da mente, classificadas ambas de experiência, que levam à formação de ideias: sensação e reflexão. A primeira fornece as ideias de objetos externos sensíveis e depende da operação dos sentidos físicos. A segunda fornece as ideias que são obtidas por meio da reflexão sobre as “operações” da própria mente (num sentido amplo do termo, que inclui o processo de formação das paixões). Tais ideias de reflexão não poderiam

3 Para uma boa introdução ao tema da teoria das ideias, conferir: CHAPPELL, 1994, p. 26-55. Nesse estudo, Chappell reconhece que o termo ideia, na epistemologia lockeana, é ambíguo e pode ser interpretado para fazer referência a uma grande gama de coisas: “ideia, para Locke, é antes de tudo algo que existe em uma mente. De modo mais específico, é algo que existe em um entendimento, que é como Locke chama a parte intelectual ou cognitiva da mente, como contraposta à parte volitiva ou apetitiva. De modo ainda mais específico, ideias são os objetos de certas ações ou operações mentais, como o pensamento e a percepção” (p. 27). Nós não trataremos da teoria lockeana das ideias que está presente no livro II do Ensaio. Notamos apenas que, no capítulo ii desse livro, Locke afirma que as ideias podem ser divididas entre simples e complexas. As ideias simples têm as seguintes características: são incompostas, têm uma única aparência ou única concepção na mente e não se pode separá-las em ideias diferentes. As outras ideias que não possuem essas características são ideias complexas. Dentro das ideias complexas, existe outra subdivisão: ideias de modo e ideias de substância. As ideias de modo não pressupõem uma existência real por elas representado, as de substância, sim. Indicamos também o artigo “O empirismo de Locke na formação das ideias” de Plínio Junqueira Smith (2010). O autor apresenta uma interpretação do livro II do Ensaio com uma discussão crítica da teoria lockeana das ideias.

4 Conforme a caracterização de conhecimento do livro IV, idealmente poderíamos obter conhecimento somente por meio das ideias sem recorrer à experiência. Esta última seria necessária para adquirir as ideias. Porém, ao longo da obra, Locke ajusta a sua posição, pois existem casos em que a experiência será utilizada para produzir conhecimento. Ver Chibeni 2005.

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ser obtidas pela percepção de objetos externos. Para ficar mais claro o que é essa segunda fonte de ideias, Locke usa exemplos tais como: pensamento, dúvida, crença. São, portanto, a sensação e a reflexão que constituem as duas fontes de todas as ideias. No livro III, Locke analisa a relação existente entre as ideias e as palavras, um estudo que não estava previsto no projeto inicial da obra, mas que se mostrou necessário para caracterizar as palavras como signos arbitrários que possuem sentido na medida em que representam ideias.

Examinaremos a seguir o que é, para Locke, o conhecimento no sentido estrito. A sensação tem uma função relevante e preliminar de fornecer os materiais que possibilitam o conhecimento, mas este último somente será possível por meio de uma operação mental sobre tais materiais. Assim, a razão e a sensação colaboram para a produção de conhecimento:

… a sensação fornece à razão as ideias de objetos particulares sensíveis e a supre com a matéria de discussão, a razão do outro lado guiando a faculdade do sentido e compondo as imagens derivadas da percepção sensível forma outras ideias novas – não há nada que seja tão obscuro, tão escondido e tão longe dos sentidos que não possa ser apreendido pela reflexão e raciocínio se tem o apoio dessas duas faculdades. Mas se descartamos uma dessas duas [sensação ou razão], a outra certamente não terá utilidade. Sem a razão, ainda que sejamos estimulados por nossos sentidos, apenas alcançaremos o nível natural das bestas. (…) Do outro lado, sem a ajuda e assistência dos sentidos, a razão não pode realizar senão um trabalho subalterno na escuridão e com as janelas fechadas. (LOCKE, 2007, p. 40-1)

1.4. A definição estrita de conhecimento do livro IV do Ensaio

Os livros I, II e III do Ensaio preparam o leitor para a definição de conhecimento, a que referimos acima, fornecida logo no início do livro IV.i.2: “Conhecer, portanto, é apenas perceber conexão e concordância, oposição e discordância, entre quaisquer de nossas ideias. Se há essa percepção, há conhecimento; do contrário não há conhecimento, mas apenas imaginação, palpite ou crença”. Essa definição é comentada por Woolhouse nos seguintes termos: “O pensamento básico é que algumas ideias estão conectadas com outras, e várias verdades refletem essas conexões. O conhecimento dessas verdades consiste na “percepção”, no reconhecimento dessas verdades por meio do entendimento” (WOOLHOUSE, 1994, p. 152-3).

Caso tal definição de conhecimento estrito fosse capaz de dar conta de todas as situações cognitivas, o papel da experiência seria exclusivamente de gerar ideias, e então o projeto lockeano poderia ser justamente denominado – como de fato o foi – de via das ideias

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(AYRES, 1991). Existem, entretanto, concessões a essa definição estrita que alargam o projeto de Locke para além de um caminho exclusivo de ideias5. O motivo das concessões é a

opção dele por uma epistemologia de senso comum.

Uma vez definido o que é o conhecimento, Locke apresenta outras distinções dentro desse conceito, como os seus “graus” e os “tipos”. Essas distinções possibilitam investigar qual é a extensão do conhecimento e os seus graus de certeza.

1.5. Os graus e os tipos de conhecimento

Locke argumenta que o conhecimento possui três graus distintos. São eles o conhecimento intuitivo, o conhecimento demonstrativo e o conhecimento sensitivo. O conhecimento intuitivo é aquele em que a percepção do acordo e desacordo de ideias é imediata; basta perceber que quadrado não é círculo, ou que verde não é branco, por exemplo, para darmos tais relações como conhecidas. A obtenção desse conhecimento é direta, não tem etapas. Esse é o conhecimento mais certo e seguro de que o homem é capaz (E IV.ii.1). Poder-se-ia dizer que a intuição é a menor partícula do conhecimento; é a partir dessa partícula que o resto do conhecimento é formado.

O conhecimento demonstrativo é o segundo grau e, em contraste com o precedente, esse não é imediato. Precisa, antes, ser mediado por outras ideias que estão entre as duas ideias que se quer relacionar, para que a mente possa constatar o acordo ou o desacordo entre elas. Essas ideias intermediárias formam um encadeamento, em que cada ligação é intuitiva, estabelecendo um processo de raciocínio que leva a um conhecimento tão certo e seguro quanto o intuitivo. Esse processo é chamado de prova, ou demonstração (E IV.ii.2).

Depois de ter apresentado esses dois graus do conhecimento, Locke faz a seguinte afirmação:

Estes dois, intuição e demonstração, são os graus de nosso conhecimento; tudo 5 Ver artigo Chibeni 2005. Em um outro artigo de 2007, tratando precisamente da denominação da filosofia de Locke como caminho das ideias, afirma Chibeni: “Essa abordagem epistemológica é original na história do empirismo, e foi chamada, numa frase que se tornaria famosa, de “via das ideias”, por Edward Stillingfleet, com quem Locke envolveu-se em extensa polêmica. Stillingfleet acreditava que ela trazia uma série de consequências indesejáveis, as mais significativas sendo justamente aquelas que se ligam ao tópico do materialismo. De um ponto de vista geral, o problema central dessa abordagem parece ser o bloqueio que promove do conhecimento do mundo exterior à própria mente” (p. 166).

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aquilo que está aquém de um destes, por mais seguros que estejamos disso, é fé ou opinião, mas não conhecimento, pelo menos em todas as verdades gerais. Há, no entanto, outra percepção da mente, utilizada para a existência particular de seres finitos fora de nós; a qual, superando a mera probabilidade, não atinge perfeitamente a nenhum dos graus de certeza antes estabelecidos, mas passa pelo nome de conhecimento. (E IV.ii.14)

Essa outra percepção da mente é que constitui o terceiro grau de conhecimento, denominado sensitivo. Na verdade, Locke deixa claro que esse grau apenas “passa pelo nome de conhecimento” (E IV.ii.14), mas não o é no sentido estrito proposto no início do livro IV, isto é, não trata do acordo ou desacordo de ideias, necessário para se obter certeza de proposições universais. O conhecimento sensitivo é introduzido para dar conta do problema da existência real particular de “seres finitos externos”, indo, portanto, na direção do senso comum.

Comentando essa passagem do Ensaio, Tadié argumenta:

Dado que os sentidos indicam-me imediatamente a presença do objeto exterior, do qual minhas ideias são o signo, tem-se aí, para Locke, um efetivo conhecimento. Os sentidos não são suscetíveis de erro, e Locke recusa desse modo o ceticismo radical que o levaria a duvidar da existência do mundo exterior. Se há ceticismo na filosofia lockeana, ele diz mais respeito ao conhecimento que se pode ter do mundo, como já notamos, do que à sua existência. (2005, p. 143)

Concordamos com a posição de Tadié de que Locke não é um cético radical em relação ao conhecimento de existência. Mesmo não podendo conhecer o mundo no sentido estrito do termo, ele encontra uma terceira via alternativa para este caso. Poderíamos defender que o conhecimento sensitivo é, na verdade, uma crença tão alta que se garante, para todos os fins práticos, como um caso de conhecimento. Não há dúvidas razoáveis de que o mundo existe, mesmo que isso não possa ser estabelecido nem por intuição e nem por demonstração. No caso do grau sensitivo, esta é a primeira vez, no Ensaio, que Locke precisa complementar o domínio do conhecimento para não deixar uma lacuna em uma área fundamental.

Percebemos na citação de E IV.ii.14 que esse grau passa pelo nome de conhecimento, porém não é conhecimento da forma como este é definido em E IV.i.2. A faculdade utilizada para esse grau é a percepção dos sentidos. Woolhouse (1994, p. 153-4) argumenta que os dois primeiros graus tratam de verdades gerais, excetuando o conhecimento demonstrativo de Deus e o conhecimento intuitivo do próprio eu. Já o conhecimento sensitivo trata de particulares, a saber, da existência dos objetos materiais que estão diante do homem no momento em que os percebe sensorialmente. No cap. xi do livro

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IV Locke defende essa crença com base em uma série de argumentos comuns na história da filosofia moderna e contemporâneas. Chibeni (2013) sustenta que tais argumentos são de natureza abdutiva6.

Além de classificar o conhecimento nesses três graus, há também na epistemologia de Locke uma classificação de quatro tipos de conhecimento; são eles: identidade ou diversidade, relação, coexistência ou conexão necessária e existência real (E IV.i.3). Notamos que, apesar de Locke denominar o segundo tipo de conhecimento de relação, todos os três primeiros tipos dizem respeito a relações entre ideias. O primeiro e o terceiro são distintivos por constituírem relações particularmente importantes.

O primeiro tipo de conhecimento, identidade e diversidade, diz respeito ao primeiro ato da mente diante das ideias, percebendo simplesmente que uma não é outra. Sem essa constatação seria impossível existir qualquer outro conhecimento, pois não existiria distinção de ideias, tudo seria idêntico a tudo, ou tudo seria diferente de tudo. Uma ideia poderia ser, ao mesmo tempo, idêntica a si mesma e diversa de si mesma, o que seria uma contradição e não permitiria nenhum conhecimento. Esse tipo de conhecimento é tão extenso quanto são extensas as ideias na mente: “Não há na mente nenhuma ideia que ela não perceba, presente e intuitivamente, ser como é, e diferente de toda outra” (E IV.iii.8).

O segundo tipo, relação, diz respeito à percepção geral de acordo e desacordo entre ideias, sendo essa a base do conhecimento. Sem isso não seria possível conhecer. O conhecimento de relação é o mais amplo e é difícil determinar o quão vasto seja. O homem pode sempre encontrar uma nova relação entre ideias que amplie o seu campo de conhecimento. Para isso depende da sua sagacidade e do uso da razão para encontrar ideias intermediárias, ou “provas”, que liguem as duas ideias acerca das quais se está afirmando que existe a relação. Um exemplo de conhecimento de relação seria perceber mediante a construção de uma demonstração, que os ângulos internos de um triângulo, somados, são iguais a dois ângulos retos.

O terceiro tipo de conhecimento, coexistência ou conexão necessária, refere-se à relação de acordo ou desacordo de uma ideia com uma ideia de substância. Traçando uma importante distinção, Locke defende que nas ideias de substância, a essência real e a essência

6 “(…) trata-se de inferências que fazemos a partir de ideias, com ou sem razões apropriadas. Mais particularmente, creio que as teses de Locke sobre os corpos são por ele propostas a título de hipóteses, e efetivamente defendidas por um tipo de raciocínio que hoje poderíamos chamar de abdutivo, ou inferência

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nominal não coincidem, como ocorre com os modos. Essência real, segundo Locke, “pode ser tomada como o ser mesmo de algo, que faz dele o que ele é” (E III.iii.15). É, pois, a noção metafísica tradicional de essência. A essência nominal, por outro lado, é o conjunto de ideias simples que tomamos, por convenção linguística, como formando a ideia complexa daquela substância. Por exemplo, poderíamos definir a essência nominal do ouro como: corpo amarelo, com certo peso, maleável, fusível e estável (E III.vi.2). Essas propriedades foram tiradas da observação de um objeto particular, mas a essência real do ouro é formada também, supomos, por propriedades que são imperceptíveis ao homem. Agora, não é claro o que levaria o entendimento a encontrar a conexão necessária ou a coexistência de uma ideia com uma substância quando esta é entendida com referência a sua essência real. A partir das propriedades que constituem a essência nominal de ouro – que é aquilo a que temos acesso sensorial – não podemos inferir qualquer outra propriedade como necessariamente pertencente ao ouro. Assim, supondo que a essência nominal de ouro fosse apenas de um corpo amarelo com um certo peso, nós não poderíamos chegar às outras propriedades como maleável, fusível e estável. A percepção da coexistência depende portanto, da experiência e a conexão necessária não é possível de ser encontrada apenas pela análise das ideias envolvidas. Isso porque são limitadas as capacidades humanas para perceber a conexão que existe entre a ideia de ouro e as ideias que formam a sua essência nominal. A experiência, no entanto, pode ser útil para determinar a coexistência ou não em casos particulares, mas isso não garante a certeza em todos os casos. A conclusão geral de Locke é que a extensão de nosso conhecimento geral de coexistência ou conexão necessária é muito reduzida, praticamente nula. Abre-se aqui, portanto, espaço para a busca de uma extensão do entendimento na direção das crenças, como veremos abaixo.

Por mais relevante e considerável que seja, essa parte da ciência do homem é tão exígua que mal se pode chamá-la de ciência. A razão disso é que, a maioria das

ideias simples que perfazem nossas ideias complexas de substância não apresentam

naturalmente nem visível conexão necessária nem inconsistência com outras ideias simples, cuja coexistência nas ideias complexas gostaríamos de conhecer. (E IV.iii.10)

Na divisão proposta por Locke, existe um problema também quanto ao quarto tipo de conhecimento, pois ele não condiz com a definição apresentada anteriormente. A existência real não versa sobre o acordo e o desacordo entre ideias, mas, sim, sobre a relação entre ideias e objetos reais. Além disso, dada a proposta de Locke para o conhecimento sensitivo, notamos que, no caso da existência dos corpos, esse tipo de conhecimento não é um conhecimento a priori, pois necessita da experiência e, por isso, está além do domínio das

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ideias.

Na interpretação de Tadié, esse é um tipo de conhecimento, porque coloca em relação uma ideia com a ideia da existência dessa ideia:

O quarto tipo diz respeito à existência fora da mente do objeto do qual a ideia do entendimento é o signo. Afirmar a existência de alguma coisa é, nesse caso, introduzir uma relação entre uma ideia e a ideia da existência dessa coisa. É nesse sentido que o conhecimento que leva à afirmação de existência dos objetos do mundo corresponde bem à definição geral de conhecimento descrita no início do livro IV. (2005, p. 146)

Parece, entretanto, que essa não é a posição de Locke. A existência, como analisado acima, não é uma relação de ideias. Tadié procura forçar essa relação para acomodar o conhecimento de existência dentro da definição estrita de conhecimento, sendo “mais realista do que o rei”. Essa interpretação não faz jus ao Ensaio, que flexibiliza explicitamente, em alguns momentos, o conceito de conhecimento. Como no caso do conhecimento de existência e, em outros, Locke aceita algo que não é conhecimento, mas que nem por isso deve ser desprezado, requerendo uma extensão cognitiva para o domínio da crença.

A exceção feita a esse quarto tipo de conhecimento ocorre também no caso do terceiro grau de conhecimento. Nesses casos, seguindo o princípio da epistemologia lockeana, seria impossível obter conhecimento no sentido estrito da sua definição, porém podemos estar seguros o suficiente dessa relação ao ponto de podermos assim denominá-la. Na citação de E IV.ii.14, que fizemos acima, sublinhamos o fato de Locke propor que esse grau passa por conhecimento. Apesar de romper, nesses casos, com o seu caminho das ideias, ele está buscando estabelecer uma filosofia plausível e acessível ao homem comum. São compreensíveis as críticas que Locke sofre por abrir exceções no seu caminho das ideias, mas sustentamos que a sua opção nesse sentido foi consciente. Neste, e em alguns outros casos, utilizou o senso comum como baliza para a busca de soluções para problemas filosóficos.

São muitas as discussões que existem sobre esse tema da filosofia lockeana, principalmente porque a alguns intérpretes parece ser ambígua a sua posição sobre o que, de fato, é o conhecimento. Para comparar a discussão sobre essa questão, podemos conferir a posição de dois pesquisadores contemporâneos Yolton (1970, p. 104-117) e Woozley (1977, p. 141-148). Os dois defendem que existe na filosofia lockeana a possibilidade de um acordo (agreement) entre uma ideia e alguma outra coisa que não seja uma ideia. Porém, o primeiro

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parece aceitar que esse acordo pode ser uma percepção que indique conhecimento. O segundo critica essa posição, pois apesar de ser possível um acordo entre uma ideia e algo real, como o próprio Ensaio deixa claro no livro II.xxx.1 e em outras passagens, esse acordo não é uma percepção de relação de ideias que produza conhecimento em sentido estrito.

Entendemos que Yolton defende que Locke considera importante o conhecimento que está ao alcance do homem para questões que não podiam envolver somente ideias. Este é o caso do conhecimento de existência real, que está diretamente ligado à grande parte da filosofia natural. Em nenhum momento Locke quis desqualificar essa área do conhecimento humano (filosofia natural), porém sustentamos que ele se preocupou em colocar os devidos limites para esse “tipo de conhecimento”. Essa linha de interpretação do pensamento lockeano, que reconhece a existência de exceções em pontos cruciais da epistemologia, nos ajudará a compreender a sua posição quando tratarmos da área do entendimento humano que lida com a revelação. Nesse caso, a sua opção também será a busca de um equilíbrio que nem repudia a revelação e nem aceita qualquer revelação sem as devidas ressalvas.

1.6. Os limites do conhecimento humano

Nessa seção analisaremos os limites do conhecimento humano que é um aprofundamento da seção anterior com algumas complementações ao que foi anteriormente exposto. O primeiro limite natural do conhecimento humano é relativo ao estoque de ideias que o homem pode ter. Nós só podemos constituir o conhecimento em sentido estrito com esse material que possuímos. O conhecimento intuitivo de identidade ou diversidade está limitado ao número de ideias que o homem tem na mente. No caso do conhecimento demonstrativo não podemos definir o seu limite, pois este depende da capacidade humana de encontrar um elo demonstrativo que relacione duas ideias abstratas. Podemos sempre esperar que uma mente mais genial, ou que disponha de mais tempo ou sorte, encontre um elo que ligue duas ideias que antes não estavam relacionadas. Temos, como exemplo, as conjecturas matemáticas que demoram a ser resolvidas e algumas que até hoje ainda esperam por uma resolução. Porém, uma vez estabelecido esse conhecimento, ele tem um valor universal e perene. Esses limites estão ligados aos graus intuitivo e demonstrativo, e aos tipos de conhecimento de identidade ou diversidade e relação.

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proposições universais que envolvam ideias de substância. Como não se consegue determinar a essência real das substâncias, não se pode ter certeza da verdade ou falsidade das proposições universais “instrutivas” (i.e. que não se limitam a explicitar o sentido dos termos envolvidos) formadas por esses termos que representam essas ideias de substância. A essência nominal de ouro (ideia de substância) e de triângulo (ideia de modo) é o que se significa com a palavra ouro ou triângulo. A diferença é que, nas ideias de modo, a essência nominal e a essência real coincidem, enquanto o mesmo não ocorre, como analisado na seção anterior, com as ideias de substância. As ideias de substância estão presentes na mente apenas como essência nominal e não como essência real. E a verdade de uma proposição geral é conhecida a partir do conhecimento da essência das espécies representadas por seus termos.

No livro III, Locke utiliza o exemplo do relógio de Estrasburgo para comparar o conhecimento que o homem pode obter a partir dessas duas essências. Enquanto uma pessoa comum admira o relógio e vê seu funcionamento com os planetas e as imagens que se movem sobre as horas, o relojoeiro tem um conhecimento mais profundo da estrutura do relógio, vê o mesmo que o homem comum, mas conhece também a estrutura interna que sustenta a estrutura externa. Assim acontece com a essência nominal e a essência real no caso das ideias de substância: o homem pode perceber a aparência externa das substâncias, mas percebe muito pouco de suas estruturas internas, que supostamente dariam origem ao que se apresenta aos sentidos.

Como a coexistência ou conexão necessária das ideias que compõem as ideias de substância não é percebida pelo homem, ele está impossibilitado de um conhecimento universal quando se trata desse tipo de conhecimento, ficando limitado somente à experiência direta das substâncias particulares. Utilizando mais uma vez a proposição “o ouro é estável (ou fixo)”, ou seja, não se consome no fogo, podemos eventualmente confirmá-la em casos particulares, mas a estrutura interna do ouro, que faz com que ele possua ou não essa característica, não é conhecida pelo homem. Nesses casos, o homem deve se contentar com probabilidade, que é resultado de um juízo falível sobre essas substâncias. Então a referida proposição, que o senso comum dá como conhecida, é, na verdade, apenas provável.

Por saber que essa constatação deixa de fora do conhecimento humano grande parte da filosofia natural e do conhecimento do senso comum, Locke procura uma resposta que amenize essa situação. Como o conhecimento de conexão necessária ou coexistência é uma questão de fato, apresenta-se aqui o que ficou conhecido na história da filosofia como o problema da indução (CHIBENI, 1995). Esse problema é conhecido também como o

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problema de Hume, mas percebe-se que Locke já havia notado essa dificuldade e tratou dela, ainda que de maneira menos sistemática (CHIBENI, 2005, p. 28-29). O problema da indução é a impossibilidade de um conhecimento a priori sobre a conexão necessária que se supõe fundar uma regularidade fenomênica. A resposta de Locke é de uma epistemologia de senso comum, propondo que “a experiência é capaz de ensinar ao homem o que a razão não é capaz” (E.IV.xii.9). Com essa resposta, ele rompe mais uma vez com o seu caminho das ideias. Nesse caso, a experiência é entendida não como a fonte de ideias, mas como a percepção direta da regularidade fenomênica, e sobre as generalizações que fazemos acerca de tal percepção podemos, para todos os fins práticos, depositar confiança, quando as medidas de controle usuais são tomadas (como, tipicamente, no caso das leis da natureza investigadas pelos filósofos naturais).

Esses são alguns dos elementos mais importantes da epistemologia de Locke. Constatamos os severos limites do conhecimento humano quando este é considerado no sentido estrito. A certeza seria obtida apenas por meio de relação de ideias, ou seja, quando se percebe acordo ou desacordo de ideias. Esse limite sugere a busca de bases ou categorias cognitivas suplementares. A respeito dessa constatação da filosofia lockeana, Rogers pondera:

Durante toda sua vida, ele [Locke] demonstrou grande certeza de que na maior parte das questões da investigação humana os resultados não seriam nada mais do que provisórios. Para ele o centro da condição humana era o estado de “mediocridade” – palavra que usava frequentemente – e, consequentemente, sua visão bastante clara sobre a falibilidade do intelecto humano.(ROGERS, 2007, p. 14)

Caso a investigação epistemológica tivesse obtido resultados muito otimistas em relação ao conhecimento, o homem não necessitaria buscar caminhos alternativos, pois ele já teria tudo o que precisa para saciar suas exigências cognitivas. No Ensaio, o que aconteceu foi exatamente o contrário. É nessa situação que surgem novas possibilidades, pois a consciência da própria ignorância nos faz mais sensatos e abertos para opiniões contrárias. A chave da proposta epistemológica de Locke para essa situação é introduzir a crença como probabilidade e, em um segundo momento, em casos particulares, a crença como revelação. Antes de examinar a crença em geral apresentaremos, no segundo capítulo da dissertação, o argumento lockeano da existência de Deus.

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