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Capítulo II A existência de Deus

2.4. A posição lockeana sobre o ateísmo

Tratamos até aqui da demonstração lockeana da existência de Deus, procurando identificar os pontos fortes e fracos da sua exposição. Antes de fazermos as considerações finais sobre esse tema, examinaremos brevemente a posição de Locke sobre o ateísmo. Em Ensaio I.iv.8, Locke sustenta que a ideia de Deus não é inata na mente humana e que existem regiões no mundo e pessoas “entre as quais não se encontra nenhuma noção de um Deus, nenhuma religião”. No contexto do livro I a resposta que ele dá a essa situação é que não há uma ideia inata de Deus, mas isso não depõe contra a sua existência. Não ter a noção de algo não prova a sua inexistência. No parágrafo seguinte (E I.iv.9) ele argumenta que Deus deixou marcas visíveis do seu poder e sabedoria na criação. Assim, quem quiser chegar ao conhecimento do Criador basta refletir sobre essas marcas. Foi o caminho que percorremos acima. O ateísmo para Locke implicaria desprezar os sinais que o Criador deixou e se recusar a utilizar o entendimento para chegar a esse conhecimento tão fundamental.

Na sua primeira Carta sobre a tolerância15 (1689), Locke propõe, de maneira

inesperada, uma atitude de intolerância em relação aos ateus:

14 Nessa linha de pesquisa da consciência como um argumento em favor da existência de Deus, consultar Swinburne (2015, p. 319-359). No capítulo nove da sua obra A existência de Deus, ele propõe que Locke é um dos primeiros pensadores modernos a sustentar que matéria e pensamento são tão diferentes que a

matéria por si mesma não poderia produzir pensamento.

15 Obra escrita em latim durante o período de exílio de Locke na Holanda. A tradução para o inglês foi realizada por William Popple. Locke nunca se objetou a que essa tradução fosse publicada. Nesta carta se propõe uma relação harmoniosa entre a religião e o Estado. O Estado não pode impedir as ações religiosas dos seus cidadãos, antes tem que defendê-las, mas essas ações não podem contrariar as funções próprias do Estado. Portanto, a harmonia proposta por Locke não é a de conluio, mas a de separação e colaboração entre Estado e Igreja. A citação que faremos dessa obra segue a versão: The works of John Locke.

Finalmente, não podem ser tolerados aqueles que negam a existência de Deus. As promessas, os pactos e os juramentos que formam as ligaduras da sociedade humana não podem ter valor para um ateísta. A retirada de Deus, mesmo que só em pensamento, a tudo dissolve. Além disso, aqueles que, por seu ateísmo, enfraquecem e destroem toda a religião não possuem sequer uma pretensão de religião na qual possam basear o privilégio de uma tolerância. (Carta sobre a

tolerância, vol. VI, p. 47)

Dessas palavras podemos compreender um pouco mais o peso que a demonstração da existência de Deus ocupa na filosofia lockeana. Nas ocasiões em que Locke foi acusado de promover o ateísmo com a sua doutrina filosófica, ele prontamente procurou defender-se. O combate que Locke promoveu contra o inatismo em geral e o inatismo de cunho religioso (ideia de Deus e ideias morais), além da sua proposta de uma religião racional, cujas crenças são controladas pela razão (trataremos desse aspecto no próximo capítulo), rendeu-lhe a fama de ateu por parte de alguns dos seus interlocutores. Certamente que ele nunca aceitou esse título indevido e defendeu-se energicamente dos seus acusadores.

Por outro lado, a citação acima pode deixar perplexo o leitor da primeira Carta sobre a tolerância, pois ele explicitamente sustenta que o ateísmo não é objeto de tolerância. O argumento utilizado por Locke é que o ateu não pode cumprir as regras sociais, pois o cumprimento dessas regras está ligado, em última análise, a Deus. Em E II.xxi16de maneira

mais extensa e em outras passagens do Ensaio, Locke aborda a dependência que existe entre as leis (natural, divina ou social) e as recompensas e as punições. Aquilo que faz com que o homem cumpra uma determinada regra social é a recompensa ou punição, nem sempre imediata, que decorre, respectivamente, do cumprimento ou não da regra. Em última instância, o homem deveria observar as leis em vista da vida futura que Deus garante a todos que procedem assim. O ateu não teria essa perspectiva da recompensa divina e por isso, na visão lockeana, o ateu seria incapaz de manter os seus contratos sociais.

É relevante a constatação de Locke: “A retirada de Deus, mesmo que só em pensamento, a tudo dissolve” (Carta sobre a tolerância, vol. VI, p. 47). Por isso no Ensaio, obra predominante epistemológica, existe sempre o reconhecimento de que a capacidade do homem é um presente do Criador. Na folha de rosto do Ensaio encontramos a seguinte citação bíblica: “Assim como não conheces o caminho do vento ou o do embrião no seio da mulher, também não conheces a obra de Deus, que faz todas as coisas” (Eclesiastes 11,5). Somente conhecemos o que Ele nos permite conhecer, e quando não o reconhecemos acabamos comprometendo as nossas buscas. A negação de Deus pode afetar amplamente a

vida do homem. Segundo Santos (2014, p. 230):

O ateu nega em termos ontológicos e absolutos a existência de qualquer divindade, providência ou transcendência. Se para Locke o ateu é um imoral, posto que não cumpre os pactos sociais, o foco de sua crítica está em que sem Deus tudo estaria fadado à perversão e à anarquia. Tem-se aqui a associação entre moralidade e religiosidade ou entre descrença e desagregação social, que tão bem plasmou Dostoiévski em Os irmãos Karamázov: sem Deus nada seria verdadeiro, tudo seria permitido e nada faria sentido. Como conviver com este perigo?

A negação da tolerância para os ateus não é apenas uma questão religiosa, mas também uma questão epistemológica e moral. Como vimos desde o início desse capítulo, o homem que se põe a refletir honestamente chega ao conhecimento de Deus. Quem nega a existência de Deus não pode ser plenamente confiável nos contratos sociais, pois a sua moralidade não tem fundamento sólido17. Mesmo nas questões que envolvem o

conhecimento, o ateu poderia ser questionado, isto porque não foi capaz de estabelecer uma demonstração essencial para a orientação da sua vida e que está ao alcance de todos. Uma tolerância irrestrita poderia legitimar a atitude do ateu e é isto o que Locke quer evitar.