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A demonstração lockeana da existência de Deus

Capítulo II A existência de Deus

2.1. A demonstração lockeana da existência de Deus

O capítulo ix do livro IV é intitulado: “Do nosso conhecimento de existência”. Nesse capítulo, Locke define o conhecimento da própria existência como intuitivo:

Nós percebemos a nossa própria existência tão plena e certamente que nosso conhecimento dela não precisa de nenhuma prova nem pode ser provado. Nada é mais evidente para nós que a nossa própria existência. Eu penso, eu raciocino, eu

experimento prazer e dor: haveria algo mais evidente para mim que a minha

própria existência? Eu duvido de tudo, e na própria dúvida percebo a minha própria

existência, da qual não duvido. (E IV.ix.3)

A própria existência não pode ser colocada em dúvida, pois a dúvida já seria uma evidência insofismável da existência do próprio eu que duvida. Trata-se, pois, do famoso argumento de Descartes. Partindo dessa primeira intuição, é possível a demonstração da existência de Deus do capítulo x, intitulado: “Da existência de um Deus”.

2.1.1. Os passos da demonstração

1. Primeira premissa: “Para mostrar, portanto, que somos capazes de conhecer, isto é, ter a certeza que existe um Deus, e que podemos chegar a essa certeza, não precisamos ir além de nós mesmos, de nosso indubitável conhecimento de nossa própria existência” (E

IV.x.1). Esse conhecimento intuitivo não poderia ser questionado por ninguém, mesmo o ceticismo mais radical teria dificuldades de negá-lo, pois o ato mesmo de negar a própria existência só seria possível para alguém que existe. E “o conhecimento que cada um tem de si mesmo lhe assegura, para além de toda dúvida, que algo realmente existe” (E IV.x.2).

2. Segunda premissa: “O homem conhece, por uma certeza intuitiva, que o puro nada não pode produzir qualquer ser real” (E IV.x.3). Essa premissa diz que a não entidade não pode produzir um ser, em outras palavras, o nada não pode ser a causa de algo.

3. Como ficou estabelecido, por meio da constatação da própria existência, que algo existe, então, dessas duas premissas Locke infere que deve existir algo que não teve um início, ou seja, algo que não foi produzido por algo anterior, mas existe desde sempre, algo que é eterno: “(…) sabemos que existe um ser real, e que a não-entidade não pode produzir nenhum ser real, isso demonstra com evidência que algo existe eternamente, pois o que não é eterno tem um início, e o que tem um início é produzido por algo” (E IV.x.3). Caso não existisse esse algo eterno, a certeza intuitiva de que o nada não pode produzir algo real estaria sendo colocada em dúvida. Pois a não existência de algo eterno possibilitaria a afirmação de que houve um momento em que nada existiu e depois algo passou a existir, do nada. Com esse terceiro passo da demonstração lockeana poderia cessar a busca da causa primeira, pois se algo existe deve existir um ser eterno cuja existência não dependeria de um ser anterior. Essa seria a primeira parte do argumento cosmológico; mas Locke não para nesse ponto. Os passos seguintes da demonstração atribuem características a esse ser eterno que possibilitam identificá-lo com o Deus da concepção teísta.

4. A segunda inferência feita por Locke é sobre o poder do ser eterno. O poder de um ser qualquer está condicionado ao poder do ser que é a sua origem. Como o ser eterno não é dependente de nenhum ser anterior: “Todos os seus poderes têm uma mesma nascente; eterna nascente de toda existência, e origem de todo poder. Portanto, o ser eterno é também onipotente” (E IV.x.4).

5. Terceira inferência: o ser eterno é um ser inteligente. Essa inferência parte da premissa da própria existência, que é a constatação não somente da existência de algo, mas da existência de algo pensante, de um ser inteligente. Ou seja, no primeiro ser em que se conhece a existência se atesta também a percepção e o conhecimento. Para Locke o pensamento não poderia ser o resultado de algo não pensante que, agindo cegamente, desse origem a algo pensante, a saber, o homem, enquanto ser espiritual. “Se se disser que houve

um tempo em que o ser não tinha conhecimento, em que o ser eterno era privado de todo entendimento, eu respondo que, se fosse assim, a existência do pensamento seria impossível” (E IV.x.5). O pensamento, para Locke, é algo extremamente peculiar, e não poderia ser o produto de uma operação cega; por isso, o ser eterno sempre foi um ser cogitante e não houve um momento em que o pensamento não existiu e depois passou a existir.

Isso conclui a demonstração lockeana da existência de Deus. Resumindo, teríamos: partindo da constatação intuitiva da própria existência, o homem tem a certeza de que algo existe. Para Locke é também intuitivamente certo que o nada não pode ser a causa de algo. Então, existe um ser eterno que deu origem a tudo. Esse ser eterno é o mais poderoso, pois o poder de todos os seres depende do poder do ser eterno, que é a origem de tudo. O ser eterno é cognoscente, pois existe o pensamento já no primeiro ser cuja existência foi constatada, e não poderia existir mais perfeição nos seres cuja existência depende da existência do ser eterno do que no próprio ser eterno.

Portanto, a partir da consideração de nós mesmos e daquilo que infalivelmente encontramos em nossa própria constituição, nossa razão leva-nos ao conhecimento da verdade certa e evidente de que existe um ser eterno, onipotente e onisciente, que se a qualquer um agrada chamar de Deus, não importa. A coisa é evidente e, se se considera essa ideia devidamente, será fácil deduzir todos os outros atributos que devemos conferir a esse ser eterno. (E IV.x.6)

O homem, para Locke, não poderia ser tão arrogante ao ponto de supor que ele seja o único ser cognoscente do universo. E o conhecimento que o homem pode ter de Deus, utilizando as suas próprias faculdades de maneira reta, é mais claro que o conhecimento de qualquer outra coisa que exista fora do homem.

A citação acima também deixa aberta a possibilidade para que se descubram outros atributos do ser eterno além da onipotência e da onisciência. No mesmo capítulo x do livro IV, Locke trata da sua imaterialidade, como veremos abaixo. Além disso, encontramos no Ensaio referências explícitas à bondade de Deus (E I.iv.16; E II.vii.4.6; E II.xvii.1; E II.xxvii.13; E IV.iii.18.23). Em algumas passagens sobre a moral, Deus é designado como o Legislador (Lawgiver). Da demonstração do capítulo x não podemos chegar a essas duas características, bondade e legislador, sem uma certa extrapolação do argumento em si. Porém, apesar de Locke não tratar de um Deus bondoso e legislador moral no contexto da demonstração da sua existência, é sustentável que esse Deus bondoso e legislador se identifique com o Deus da prova cosmológica lockeana. Ao menos é isso o que Locke parece propor no Ensaio.

2.2. Algumas críticas à demonstração lockeana da existência de Deus