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Capítulo IV A moral lockeana entre a razão e a revelação

4.3. A moral revelada

Independentemente de ser ou não possível demonstrar a moral, Locke sustenta que é Deus “(…) a verdadeira base da moral: ou seja, a vontade e a lei de um Deus que vê os homens na escuridão, que tem nas mãos recompensas e punições, e com poder de cobrança, até do mais orgulhoso dos homens” (E I.iii.6). Locke argumenta que a moral depende de um

legislador divino capaz de recompensar e punir os homens que estão sob a jurisdição da lei moral. Ou seja, mesmo sendo demonstrada, a lei moral deveria estar em consonância com a “lei moral divina”. Elas coincidem, pois têm o mesmo legislador.

Forde (2006, p. 238) sustenta que, na epistemologia lockeana, “a lei natural é uma espécie de lei divina”. Essa é uma indicação de que a suposta moral demonstrável não competiria, nem conflitaria, com uma moral revelada, pois, em última instância, o fundamento único da moral é Deus. Em E II.xviii, Locke defende que as regras morais e leis podem ser de três tipos, e a cada uma está ligada uma recompensa ou uma punição. Os três tipos são: lei divina, lei civil e lei da opinião. Interessa-nos, neste momento, a lei divina:

Por lei divina, entendo a lei que Deus promulgou para as ações dos homens por luz natural e por voz de revelação. Penso que ninguém seria tolo a ponto de negar que Deus deu uma regra para que os homens governem a si mesmos. É seu direito fazê-lo, posto que somos suas criaturas; é bondoso e sábio se direciona nossas ações ao melhor; e tem o poder de impô-lo por recompensas e punições de infinito peso e duração numa outra vida. Ninguém nos poderia tirar de suas mãos. Essa é a única verdadeira pedra de toque da retidão moral. (E II.xviii.8)

A lei divina é garantida por Deus e acessível ao homem tanto por luz natural (razão) quanto por revelação. O discurso moral de Locke tem sempre Deus como fundamento, independentemente se for obtida por razão ou revelação. No Ensaio, essa função de Deus como legislador da moral é clara. A dificuldade é a falta de um tratado de moral que desenvolva melhor essa proposta para que pudéssemos compreendê-la.

Segundo Yolton, “Locke diria, tenho certeza, que a conclusão que Deus deu-nos regras provém da análise das ideias de Deus e homem: este é o primeiro passo para a demonstração” (1970, p. 169). Ou seja, partindo das ideias de Deus e de homem se poderia concluir que Deus, enquanto criador, estabeleceu regras às suas criaturas. O homem enquanto ser racional é capaz de descobrir essas leis de Deus. Essa seria a base tanto de uma moral demonstrável quanto de uma moral revelada.

Em um escrito intitulado Da ética em geral, que estava previsto para compor o Ensaio, encontramos outros elementos que corroboram essa interpretação da filosofia lockeana: “a moralidade tem sido geralmente classificada como uma ciência distinta da teologia, religião e direito; e que tem sido a legítima província dos filósofos, uma espécie de homens diferentes dos teólogos, sacerdotes e advogados, cuja profissão tem sido explicar esse conhecimento ao mundo” (Da ética em geral, em NUOVO, 2001, p. 9). O problema dos filósofos explicarem a moralidade é quando não apresentam o fundamento desta, ou seja, o

próprio Deus: “Mas esses filósofos frequentemente não derivam essas regras de seu original e nem as apresentam como mandamentos do grande Deus do céu e da terra, e é de acordo com essas regras que Deus recompensará os homens depois dessa vida”. Para Locke, a razão pode conhecer as leis morais; contudo o que fundamenta essa lei, de um ponto de vista metafísico, é o legislador, Deus. Sobre esse ponto Yolton sustenta que: “Ele [Locke] em nenhum momento duvidou da sua firme crença de que as leis da natureza eram idênticas com as leis de Deus” (1970, p. 172).

Na Razoabilidade do cristianismo, que foi publicada quando o Ensaio já estava na sua terceira edição, Locke apresenta Jesus como o Messias, ou seja, como o filho de Deus enviado aos homens. Essa tese reforça o aspecto religioso e teológico de Deus como o legislador moral, pois por meio dos ensinos de Jesus o homem teria recebido uma lei moral claramente definida. Locke dedica algumas páginas para apresentar uma lista de regras morais que Jesus pregou e que estão contidas principalmente nos Evangelhos de Lucas e Mateus (Razoabilidade, vol. VII, p. 115-22). A prática dessas regras morais ajuda o homem a realizar o seu desígnio neste mundo.

Como a lei moral tem um papel importante tanto para a vida presente do homem quanto para a vida futura, Schneewind propõe que, na Razoabilidade, Locke sustenta:

(…) a razão unicamente não poderia ter prevalecido na maioria das pessoas, de modo suficiente, para ensinar-lhes a existência de Deus, enquanto a presença pessoal de Cristo permite a difusão da crença. Outra [razão], é que a raça humana necessita de um conhecimento da moral mais claro do que a razão humana sozinha tem sido capaz de oferecer. (Schneewind, 1994, p. 218)

Nesse sentido, a vinda do Messias auxiliaria a razão tanto no conhecimento de Deus quanto no conhecimento da lei moral. Notamos que, na Razoabilidade, Locke admite que “A experiência nos mostra que o conhecimento da moralidade, por meio somente da luz natural (por mais que isto seja desejado), se desenvolve e progride bem pouco neste mundo” (Razoabilidade, vol. VII, p. 140). Locke não nega a possibilidade de uma moral deduzida totalmente da razão, mas reconhece os limites dessa proposta. Na mesma passagem citada acima, apenas algumas linhas depois, ele confirma isso com as seguintes palavras: “a razão humana sem ajuda falha na sua grande e própria função de moralidade”.

A partir desse ponto da Razoabilidade, Locke começa a sugerir que a revelação supre a razão nas questões de moral. Isso se pode notar nos escritos do Novo Testamento que não contradizem em nada o que os filósofos podem alcançar com o uso da razão, não obstante esses livros terem sido escritos por homens de pouca cultura. Por meio dos ensinamentos de

Jesus nos Evangelhos, o homem tem acesso a um corpo ético que está em conformidade com a razão e é acessível a todos.

Uma das dificuldades de uma proposta somente racional de um conjunto de leis morais são as falhas a que a razão está sujeita. Um filósofo pode eventualmente falhar em uma passagem da demonstração, e isso compromete toda a lei moral. Sem contar que o filósofo não pode fundamentá-la na sua autoridade pessoal, enquanto Jesus, o Messias segundo as Escrituras, pode fazê-lo.

Qualquer coisa, para ser universalmente útil, como regras com as quais o homem deve moldar o seu comportamento, deve receber a autoridade ou da razão ou da revelação. Não há nenhum autor de escritos morais, ou compilador que recolhe escritos de outros, que possa apresentar-se como um legislador da humanidade, um fundador de normas que sejam válidas em qualquer lugar, somente porque estão escritas nos seus livros, ou pela autoridade deste ou daquele filósofo. (Razoabilidade, vol. VII, p. 142)

Locke propõe que o Evangelho fornece uma lei moral que pode guiar seguramente as ações do homem. A fonte dessa lei é a revelação feita por Jesus. A sua principal característica é ser facilmente acessível a todos os homens que têm contato com esses escritos. Ela não necessita de erudição para ser compreendida. Por isso, a religião, segundo Locke, deve ser o mais simples possível, atendo-se ao essencial, ao Evangelho. Mesmo que antes de Cristo a moral tivesse sido demonstrada como as verdades matemáticas, a sua utilidade seria restrita, pois muitos teriam dificuldade de atingir esse conhecimento acompanhando os seus passos demonstrativos. Nestas citações, podemos até propor que uma moral demonstrável seria até desnecessária, pois já temos uma fonte segura na revelação:

A filosofia gastou todas as suas forças e deu o máximo de si: e se tivesse ido além, o que percebemos que não se verificou, e nos tivesse dado princípios éticos em uma ciência como a matemática, demonstrável em todas as suas partes, nem mesmo assim teria sido eficaz e adaptada para as necessidades do homem que vive em um estado imperfeito. (Razoabilidade, vol. VII, p. 146)

Deus, na infinitude da sua misericórdia, trata o homem como um Pai compassivo e terno. Ele deu ao homem razão e com esta uma lei que não pode ultrapassar o que a razão pode estabelecer; a menos que se pense que uma criatura racional possa conceber uma lei irracional. (Razoabilidade, vol. VII, p. 157).

Russo, tratando da relação entre razão e revelação nas questões morais, tece um comentário sobre a relevância da razão em um contexto de uma moral revelada acessível a todos. Como os limites para se chegar a uma moral demonstrada são muitos, podemos estar seguros de que a moral revelada nos oferece um corpo de regras completo para orientar a nossa vida. Nesse caso deveríamos nos questionar sobre o papel da razão.

A questão poderia, neste ponto, se inverter e ser colocada nos seguintes termos: como já temos, graças à revelação, um cânone mora,l para que serviria uma réplica incompleta e problemática, demonstrável, mas ainda não demonstrada? Esta pergunta, de fato, seria oportuna se tivéssemos somente uma revelação, e só uma interpretação desta revelação. Mas são muitas as proposições contraditórias que se apresentam como palavra de Deus, e mais numerosas ainda são as interpretações contrastantes. Portanto, o papel crítico da lei racional é indispensável, como ponto de comparação preliminar para avaliar a legitimidade de qualquer pretensão exegética, baseando-se no princípio tomista, pelo qual não pode existir contradição entre razão e revelação, pois a fonte tanto de uma como de outra é a mesma. (RUSSO, 2001, p. 102)

Esse posicionamento de Russo enquadra-se muito bem na leitura que fazemos dos textos lockeano. A razão é a fonte segura e natural de conhecimento para o homem. Como existem limites na capacidade humana de produzir conhecimento, deve recorrer à crença em geral (probabilidade e revelação). A probabilidade é resultado da razão. A revelação é ação divina, mas passa por uma avaliação da razão humana. A relação presente em todo o Ensaio entre razão e revelação é significativa também para a questão da moral.

No último capítulo do Ensaio, Locke apresenta a divisão das ciências:

Isto é tudo o que se encontra na esfera do entendimento humano: a natureza das coisas em si mesmas, suas relações e maneiras de operação; o que deve o homem fazer, enquanto agente racional e voluntário, para alcançar um fim, em especial a felicidade; as vias e os meios para obter e comunicar conhecimentos. E assim penso que a ciência se divide propriamente em três tipos. (E IV.xxi.1)

As três ciências são: a física (filosofia natural), a prática (ética) e a doutrina dos signos (filosofia da linguagem). A ética auxilia o homem a realizar o desígnio de sua vida, ou seja, a felicidade, seja neste mundo ou em um mundo futuro. Para realizar esse projeto, o homem dispõe da razão que, apesar de não possibilitar o conhecimento de tudo o que o homem gostaria de conhecer, é suficiente para as necessidades básicas desta vida. Porém, quando a razão se mostra muito duvidosa nos princípios práticos, o homem tem à sua disposição a revelação. Esta última é capaz de orientar o homem na busca dos princípios morais. O fato interessante é que nem a razão e nem a revelação são suficientes sozinhas. Todo o empreendimento epistemológico lockeano é fundado tanto na razão quanto na crença (probabilidade e revelação). Já reconhecemos, nesta dissertação, que a razão pode ter um papel de relevo nessa relação, mas isso não diminui em nada a importância de ambas dentro do projeto de Locke.

Considerações finais: a espiritualidade filosófica de Locke

A nossa proposta nesta dissertação foi examinar os temas religiosos na epistemologia de John Locke. Analisando-os, deparamo-nos com um diálogo profícuo entre razão e revelação. Durante a pesquisa, encontramos autores que duvidam da sinceridade de Locke ao incluir temas religiosos na sua filosofia, e aqueles que acreditam na sinceridade e na harmonia desses temas no contexto dos seus escritos. O que não se pode negar é que assuntos religiosos, em níveis diferentes, estão presentes na grande maioria das suas obras, incluindo-se a principal delas, o Ensaio sobre o Entendimento Humano, em que têm um papel de destaque.

Procuramos evidenciar que existe um fator significativo para a compreensão do diálogo entre razão e revelação na filosofia lockeana. É a constatação de que as capacidades humanas de estabelecer conhecimento em sentido estrito são limitadas. Isso deixa abertas alternativas epistemológicas que podem, utilizando-se certos critérios, suprir esse limite do entendimento. Essas alternativas são estruturadas no pensamento lockeano no domínio da crença em geral: probabilidade e revelação. A crença em geral não é tão segura quanto o conhecimento, mas em alguns casos está tão próxima da certeza que “passa por conhecimento”; em outros casos, mesmo não atingindo tal nível de segurança epistêmica, é o que melhor temos para assegurar a racionalidade de nosso posicionamento intelectual e prático. Dentro da crença em geral, a revelação é importante porque possibilita ao homem fazer escolhas teóricas e práticas que são fundamentais para a sua felicidade, como no caso do conhecimento das regras morais.

Portanto, a posição de Locke é que, na condição atual do homem, razão e revelação se completam. Poderíamos dizer que são esses os instrumentos que temos à disposição para realizar a nossa tarefa neste mundo. Estudando o Ensaio, o leitor se dá conta de que pode existir uma preponderância da razão sobre a revelação em alguns casos; contudo o entendimento humano não consegue alçar voo sem o auxílio de ambas. Por meio da razão, o homem obtém o conhecimento da existência de Deus, avalia se uma revelação tem ou não procedência divina e evita o perigo do entusiasmo no campo religioso e moral. Baliza, também, o estabelecimento dos graus de crença. A revelação, da sua parte, viabiliza o acesso

a verdades que estariam inacessíveis ao homem ou só seriam alcançadas com muita dificuldade. Dentre asverdades obtidas por revelação, são fundamentais os princípios morais, que, se aplicados, favorecem a felicidade para o homem nesta vida e a bem-aventurança eterna.

Percebemos que no diálogo entre razão e revelação Locke não somente usou a razão para dar apoio às crenças religiosas – esse já era um caminho bem estabelecido. Em nossa opinião, um dos pontos fortes da filosofia lockeana é ter colocado em evidência um outro papel da razão: ser um padrão que pode delimitar o assentimento humano a uma proposição religiosa. A busca de fundamentação racional da crença religiosa pode ter diminuído a relevância das proposições puramente religiosas dentro do entendimento humano. Porém, a alternativa a essa posição lockeana era o entusiasmo religioso. Examinar a relação entre razão e revelação era comum entre filósofos no tempo de Locke. Hoje, talvez continue sendo uma tarefa importante para o homem comum, embora nem sempre reconhecida pelos filósofos. Os conflitos religiosos marcados pelas disputas políticas influenciaram a vida de Locke. Ainda hoje, em nome de Deus e de supostas revelações se cometem atos terríveis de barbárie. Não acreditamos, claro, que a reflexão sobre a possível harmonia entre razão e revelação possa, por si só, por fim a todos esses tipos de conflitos; mas pode contribuir para essa finalidade.

A religião, como analisamos nas páginas acima, teve uma influência na filosofia e ação de Locke, embora essa filosofia não tenha sido desenvolvida a partir de pressupostos religiosos, nem tivesse como objetivo principal apoiar teses religiosas, quaisquer que fossem. Apesar disso, cremos, uma reflexão sobre os textos de Locke que abordam, ou tangenciam a religião ajudam para a compreensão integral da sua obra filosófica. Ele, indiscutivelmente, ocupa um lugar de destaque dentro do pensamento cristão. A gama de assuntos discutidos por esse filósofo é ampla. Como defende Wolterstorff (1994b, p. 572), o contexto de elaboração das diversas temáticas filosóficas é fundamentalmente cristão. Em algumas passagens da obra lockeana, a influência do cristianismo é mais evidente do que em outras passagens. Porém, sem esse contexto cristão corre-se o risco de não se entender bem os seus escritos.

Na Introdução desta dissertação, propusemos que existe uma mútua influência das três vertentes principais da sua obra: epistemologia, política e religião. Portanto, da mesma maneira que a religião influenciou a sua filosofia, o inverso também é, de maneira mais clara ainda, verdadeiro. A interação dessas vertentes pode causar polêmicas. No nosso objeto

específico de estudo, não é simples entender a influência da epistemologia na religião ou vice-versa. Apresentamos algumas das controvérsias entre Locke e os religiosos e filósofos do seu tempo. Essa influência em duplo sentido entre filosofia e religião pode causar desconforto tanto em filósofos quanto em religiosos. Isso é indício importante da independência intelectual de Locke. Temos que considerar o início da separação entre fé e razão do período moderno que foi se acentuando ao longo do tempo. Um tema que perpassa toda esta dissertação é que Locke procurou cuidadosamente evitar a posição de ruptura entre essas duas instâncias cognitivas.

Da parte da filosofia, o desconforto da influência da religião poderia surgir de uma concepção religiosa propensa a certo fanatismo, com contornos de irracionalidade. Quando tratamos do entusiasmo, verificamos a posição fortemente contrária de Locke a tal tendência. É relevante lembrar que o entusiasmo nasce de uma espiritualidade que nega a utilidade da razão. O filósofo brasileiro Lima Vaz faz uma observação sobre o termo 'mística' que pode muito bem ser utilizado para a palavra 'espiritualidade': “Decaído de sua nobre significação original, acabou por designar uma espécie de fanatismo, com forte conteúdo passional e larga dose de irracionalidade” (LIMA VAZ, 2009, p. 9).

Para Lima Vaz a associação da mística, e mesmo da espiritualidade, a algo irracional é um indício de esvaziamento ou adulteração desses conceitos, ou seja, de não compreensão do seu significado original. Portanto, um filósofo, considerando essa perspectiva “esvaziada” da espiritualidade, não poderia permitir a algo irracional e passional ter um papel na elaboração da filosofia. Isso resultaria na perda de um elemento característico dessa disciplina: o reto uso da razão.

Do lado da religião, o desconforto seria o de pensar na razão como um instrumento de controle de uma experiência que, apesar de não ser contrária à racionalidade, não se encontra no mesmo nível da razão. A experiência da espiritualidade, no sentido mais alto, ocorre quando cessa o discurso racional – mas não quando ele é violado. O próprio Locke, tratando do entusiasmo, não fechou totalmente as possibilidades para uma intervenção direta de Deus na vida do homem; porém é preciso ter cautela epistemológica redobrada nesses casos.

Wolterstorff (1994b) nos oferece uma chave de leitura interessante do pensamento lockeano acerca desse ponto. Acreditamos ser essa proposta um auxílio pertinente para entendermos as discussões sobre razão e revelação apresentadas na nossa pesquisa. Para ele a

obra de Locke não é apenas uma página da filosofia cristã, mas também da piedade cristã. Interpretamos essa expressão, quando aplicada a Locke, como uma atitude interior e exterior do crente diante de tudo o que lhe parece sagrado no mundo. Segundo Wolterstorff, Locke procurou posicionar o ser humano dentro do cosmos, mostrando as suas capacidades e fragilidades. Dessa constatação, nasce uma espiritualidade da piedade epistemológica. Essa espiritualidade é denominada por ele de piedade lockeana, pois possui características que lhe são peculiares e originais (1994b, p. 573).

Para nós é significativo o fato de a piedade lockeana abarcar tanto a razão quanto a revelação, pois a espiritualidade cristã, de maneira geral, tem traços imanentes e transcendentes, a razão participa, mas não delimita todo o campo de abrangência da espiritualidade que está além dos limites racionais. As duas características interiores principais da piedade lockeana são: profundo sentimento de gratidão a Deus por ter dotado o homem de razão e um senso de obrigação de usá-la de maneira adequada. Os sinais externos são a devoção às Sagradas Escrituras e o reconhecimento de Jesus como o Messias revelador. Uma leitura da obra lockeana nessa perspectiva poderia fazer emergir outras características a serem incorporadas a essas já citadas.

Desde as primeiras páginas do Ensaio, é possível perceber a gratidão devotada a Deus pelas suas obras e pela capacidade com que formou o homem. Locke cita a carta de São Pedro capítulo 1 versículo 3 para mostrar que Deus deu ao homem: “o necessário para uma vida confortável e para o aprendizado da virtude”. Em E I.i.5, Locke estimula o homem a reconhecer as faculdades de que é dotado. Elas são suficientes para satisfazer as nossas necessidades: “luz suficiente para conhecermos o nosso criador e vislumbrarmos os nossos próprios deveres” (E I.i.5). Um pouco depois, tratando da ideia de Deus, ele sustenta ser