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O argumento lockeano da existência de Deus e o seu contexto de elaboração

Capítulo II A existência de Deus

2.5. O argumento lockeano da existência de Deus e o seu contexto de elaboração

Neste capítulo, examinamos o argumento de Locke expondo suas principais partes e discutindo suas vulnerabilidades. Para os objetivos desta dissertação, é relevante situá-lo em um contexto filosófico mais amplo. Locke não é totalmente original na sua maneira de tratar esse assunto, mas é herdeiro de uma tradição respaldada na filosofia. A demonstração lockeana é uma espécie de argumento cosmológico. A origem desse tipo de argumento está na filosofia antiga, principalmente com Aristóteles. Ayers (1991), tratando da imaterialidade de Deus, recorre exatamente a alguns elementos da filosofia aristotélica para explicar a posição de Locke.

Foi na Idade Média que esse tipo de argumento teve um destaque nas reflexões filosóficas. Um dos principais colaboradores para o seu estudo foi Tomás de Aquino que, no século XIII, formulou as cinco vias para o conhecimento de Deus. Ele também utilizou um material pertencente a uma tradição precedente. Sumariamente o seu argumento cosmológico,

17 Coelho (2012) defende que mesmo aceitando a filosofia moral do Ensaio, que tem o seu fundamento em Deus, é possível propor uma moral de autointeresse que seja compatível com o Ensaio. Além disso os ateus deveriam, pelo menos, ter o mesmo tratamento daqueles crentes que agem como se ignorassem a lei divina de que são devotos.

como apresentado na Suma Teológica18, está contido nas três primeiras vias de Aristóteles.

Examinaremos o argumento nesta versão tomista para compreendermos o contexto que possibilitou a Locke formular a sua variante.

O caminho percorrido para a prova da existência de Deus dada por Tomás de Aquino é o seguinte: primeiro ele constata o movimento (mudança) das coisas do mundo; ora, tudo o que se move deve ter sido movido por outra coisa; então deve existir alguma causa de movimento sendo essa causa imutável. A conclusão da primeira via é: “Portanto, é necessário chegar a um primeiro princípio do movimento que não seja movido por outros. E esse é o que todos os homens chamam Deus”.

O segundo passo é a crença do homem de que as coisas no mundo existem porque são causadas por outras coisas, sendo inconcebível que algo seja a causa de si mesmo. Logo, para não retroceder infinitamente ou cair no absurdo de algo que seja a causa de si mesmo, conclui-se a existência de uma causa primeira, sendo que ela mesma não necessita de uma causa.

A terceira via é a da contingência, pois no mundo existem coisas não necessárias, ou seja, que poderiam não existir: “Constatamos que as coisas podem existir ou não existir, podem ser produzidas ou destruídas, e consequentemente é possível que existam ou não existam”. Ora, não pode ocorrer que todos os seres sejam contingentes, pois se assim fosse poderia ter havido um momento em que nada existia. Então, deve existir um ser necessário, sendo ele o fundamento da existência dos outros seres contingentes.

Com a sua prova da existência de Deus, Tomás de Aquino na verdade não estabelece a existência do Deus cristão, com todos os atributos que lhe são próprios: bondade, inteligência, intencionalidade, onipotência. O argumento tomista simplesmente leva à existência de uma causa primeira da qual tudo depende. Com essa causa primeira pode-se cessar a busca pela causa.

Discutindo o argumento cosmológico, Rowe (2011, p. 42) sustenta serem dois os conceitos importantes: o conceito de ser dependente (contingente) e o conceito de ser autoexistente (necessário). O primeiro é aquele cuja existência é explicada pela atividade

18 A principal obra de Tomás de Aquino elaborada provavelmente entre 1267-1274. O objetivo da obra, segundo o próprio autor, é ajudar o estudante principiante. A Suma Teológica tem um caráter propedêutico e apologético, expondo as verdades da religião cristã aos que estão iniciando os estudos da maneira mais pertinente e acessível possível. As cinco vias na Suma Teológica se encontram na parte I, questão 2, artigo 3 (citada geralmente como S. Th. I.2.3). Todas as citações da Suma nessa seção da dissertação têm essa referência.

causal de outro ser. O segundo é aquele cuja existência é explicada pela sua própria natureza. Esses conceitos permitem formular a primeira parte do argumento cosmológico:

1. Todo ser (que existe ou que já existiu) ou é um ser dependente ou autoexistente;

2. Nem todo ser pode ser dependente; 3. Logo, existe um ser autoexistente.

Rowe reconhece a validade desse argumento dedutivo, ou seja, a sua estrutura garante a verdade da conclusão, caso as premissas sejam verdadeiras. Isto é significativo, pois mostra a validade do esquema lógico da primeira parte do argumento. A dificuldade aparecerá no momento de estabelecer a relevância do argumento, ou seja, a verdade de suas premissas. A primeira não é uma verdade trivial; seria se a afirmação fosse que todo ser ou é dependente ou não-dependente (análoga à de que todo ser ou é branco ou não é branco). A afirmação da primeira premissa é, no entanto, que todo ser ou é dependente ou autoexistente (análoga à proposição 'todo ser ou é branco ou é preto'), e isso certamente não é uma verdade trivial. Então, a primeira premissa pode ser colocada em questão.

A segunda premissa assume que se todos os seres forem dependentes, nesse caso, não se teria uma explicação para a existência desses seres. Somente um ser autoexistente explicaria a existência de seres dependentes, do contrário se teria que regressar ao infinito. A crítica principal a essa premissa é a necessidade de se ter uma causa para tudo. Como já vimos, o princípio da causalidade é convincente e pode ser muito útil para a reflexão do homem sobre diversos aspectos, mas isso não garante a sua necessidade. Existe, de fato, no argumento cosmológico uma dificuldade na maneira como é aceito o princípio de causalidade. Como a estrutura clássica do argumento cosmológico parece ser válida, logo a fragilidade está nas premissas do argumento.

Podemos perceber a utilização de Locke desse mesmo esquema geral, fazendo, claro, uma apropriação pessoal do argumento clássico. Notamos que o argumento cosmológico lockeano não se limita a provar a existência de uma causa primeira que em um segundo momento é identificada como o Deus da fé, mas já lhe confere atributos peculiares do Deus cristão como onipotência e onisciência. É relevante o fato de o pensamento de Locke se pautar em uma estrutura formal confiável e em uma linha de pensamento bem estabelecida. O que é passível de questionamento é a verdade das premissas, pois aparentemente elas não podem ser conhecidas nem de maneira intuitiva e nem demonstrativa. Claro que ainda assim

existe a possibilidade de serem verdadeiras. Como relembramos acima, mesmo Hume, que questiona a necessidade do princípio de causalidade, confiava nele, ainda que fosse contingente. Porém, como também já defendemos, a proposta de Locke da demonstração de Deus não é uma alienação, mas resultado das suas ponderações e pesquisas dos pensadores que faziam parte do seu ambiente intelectual.

Já salientamos a influência que a religião exerceu na vida e no pensamento de Locke. A prova da existência de Deus é mais uma evidência desse influxo e é também a porta de acesso para um diálogo fecundo entre razão e revelação. Ele poderia ter escolhido um caminho exclusivamente religioso para fundamentar a sua fé em Deus, mas essa escolha poderia fechar a possibilidade de colaboração entre fé e razão. Como vimos acima, essa colaboração tem seu primeiro e mais importante passo na prova da existência de Deus – prova no sentido estrito de algo que se estabelece mediante o emprego da razão. Somente com a base sólida do conhecimento de Deus será possível prosseguir explorando o tema da revelação, pois a origem da revelação é o próprio Deus, como já notamos. No próximo capítulo desta dissertação examinaremos as relações entre a razão e a revelação, na filosofia de Locke, e em especial no Ensaio. No quarto capítulo, expandiremos um pouco mais as nossas reflexões, com uma discussão exploratória do papel que a tese da existência de Deus, e de sua ação reveladora, têm na fundamentação da moral.