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Capítulo II A existência de Deus

2.3. A imaterialidade de Deus

A presença no mundo de seres cogitativos é garantida pela constatação da própria existência: o eu é um ser pensante. Para Locke a natureza metafísica desse ser pensante é incerta, em um primeiro momento. De fato, no livro IV do Ensaio, ele assumiu uma posição cética em relação à natureza da alma:

Temos ideias de matéria, de pensamento; mas, possivelmente, jamais saberemos se um ser meramente material pensa ou não pensa, pois nos é impossível descobrir, pela contemplação de nossas próprias ideias, sem revelação, se a onipotência não

deu a um sistema de matéria adequadamente organizada um poder de perceber e de pensar, nem se uniu e fixou a essa disposição uma substância imaterial pensante. Temos tanta compreensão para conceber a noção que Deus poderia, se quisesse, acrescentar à matéria a faculdade de pensar, quanto para conceber que tenha acrescentado à matéria uma substância com faculdade de pensar. (E IV.iii.6)

Essa mesma posição cética já tinha sido expressa no livro II do Ensaio. Para Locke é possível tanto conceber o pensamento existindo sem matéria quanto conceber a matéria pensante (E II.xxiii.32). Isso porque as ideias envolvidas, pensamento e matéria, são distintas e não guardam nenhuma relação necessária entre si.

Quando Locke, porém, aprofunda o seu argumento da demonstração de Deus, ele conclui que o ser eterno certamente é imaterial. Nesse caso, ele não deixa espaço para o ceticismo. Os dois principais argumentos que embasam essa posição são: primeiro, um ser incogitativo não pode produzir um ser cogitativo; segundo, nenhum sistema de partículas materiais pode ser cogitativo. É intrigante que Locke assuma essa posição em relação a Deus, pois contrasta com a sua posição cética em relação às criaturas pensantes. Sobre isso argumenta Chibeni: “Que Locke faça questão de estabelecer tal ponto pode parecer surpreendente, em vista de sua argumentação cética anterior. Ele crê, no entanto, que a situação no presente caso seja diferente, não se tratando de determinar a essência de seres criados, mas do Criador” (CHIBENI, 2007, p. 177). Examinaremos esses dois princípios para entender por que, para Locke, o Criador é imaterial.

A primeira tese considerada por ele é que do menos perfeito não pode surgir o mais perfeito, ou seja, é o princípio já analisado acima na demonstração da existência de Deus: não pode estar presente no efeito algo que não esteja presente na causa. Como é a existência pessoal que está na base do conhecimento de Deus, e a intuição da própria existência é um ato cognitivo, então existe o pensamento no mundo, e por conseguinte o ser eterno necessariamente é cogitante. Até aqui nada de novo; isso já tinha sido tratado por Locke anteriormente. Poderíamos utilizar as mesmas objeções de Hume sobre a necessidade de uma causa para tudo o que existe, ou seja: Seria realmente necessário que o pensamento passe a existir a partir de algo pensante? Seria possível concebê-lo de maneira diferente? Isso já foi tratado acima. O interessante é o segundo ponto defendido por Locke; este, sim, novo em relação ao anterior.

Para resolver a questão da natureza de Deus, ou seja, se é material ou imaterial, Locke se pergunta se é uma propriedade necessária da matéria ser cogitante. Para responder a essa questão, ele propõe um experimento mental. A primeira consideração desse experimento

é que, caso a origem dos seres fosse a matéria eterna sem movimento, o movimento passaria a existir nessa matéria eterna inerte? A resposta a esse primeiro passo da experimentação é negativa: a matéria não produz movimento em si mesma. Assim, para que existisse movimento na matéria eterna seria necessário que também o movimento fosse eterno. Depois dessas considerações, Locke chega ao ponto crucial da sua posição: matéria e movimento eternos não são capazes de produzir pensamento: “Suponha um nada primeiro ou eterno, a matéria jamais viria a existir; supondo mera matéria, eterna e imóvel, o movimento jamais viria a existir. Supondo apenas matéria e movimento, o pensamento jamais viria a existir” (E IV.x.10).

Com esse experimento intelectual, Locke chega à conclusão de que o pensamento não é uma propriedade essencial à matéria. Em si mesma a matéria não pode apresentar essa propriedade. Ayers sustenta que: “o poder de pensamento pode somente ser um acidente, em vez de uma propriedade do corpo” (AYERS, 1991, 169-70). Claro que acidente não deve ser entendido como algo casual e involuntário, pois no contexto da filosofia de Locke, ele depende de um plano de Deus.

Quando Locke trata desse mesmo assunto em relação à alma humana, ele assume uma posição cética, argumentado que não se pode defini-la como material ou imaterial; e que, neste caso, a matéria só poderia ser dotada de pensamento porque Deus colocou o pensamento na matéria. Essa é uma adição acidental do pensamento à matéria, ou seja, não faz parte da essência da matéria. Portanto, a posição cética, no caso do homem, não é uma abertura para se conceber uma matéria dotada de pensamento em si mesma. Como Locke já havia defendido no livro II, concebemos pensamento e matéria separadamente. Ora, na sua prova da existência de Deus ficou estabelecida a necessidade de um ser eterno cogitante. Como a matéria em si mesma não pode ser cogitante e o pensamento não necessita de matéria para existir, o ser eterno não é material. Nesse caso o único elemento que deve estar eternamente presente é o pensamento.

Comentando o argumento da imaterialidade de Deus, Bennett (2005, p. 179) sustenta que é equivocada a conclusão de Locke. Isso porque o conhecimento que o homem tem das propriedades mecânicas da matéria não exclui a possibilidade de produzir pensamento. Quando ele defende a impossibilidade de que o movimento desordenado ou a justaposição de matéria seriam a origem do pensamento (E IV.x.17), ele está considerando estabelecida uma doutrina impossível de ser provada. Para que seja possível fazer essa afirmação, ele deveria mostrar o que é o pensamento e como ele se origina, para sustentar que

a matéria não pode ser a sua origem.

Apesar de ser difícil defender o argumento lockeano como uma prova definitiva que separe matéria de pensamento, ele traz elementos que merecem ser considerados. Um desses elementos é a ligação feita por Locke entre propriedades mentais de um ser e teleologia. Para ele a propriedade mental não pode ser originada de um movimento casual que não possua em si mesmo intencionalidade. Esse tema da imaterialidade de Deus dá ensejo para outros debates filosóficos abertos ainda hoje. Entre as questões contemporâneas que podem encontrar uma origem no discurso lockeano estão as questões da filosofia da mente sobre a origem e natureza da consciência14.