• Nenhum resultado encontrado

A Crónica do Conde D Duarte de Meneses: descrição e contextualização histórica

A obra zurariana e o seu contributo para a consolidação da dinastia de Avis e da afirmação da identidade nacional

3.1. A Crónica do Conde D Duarte de Meneses: descrição e contextualização histórica

Não é por as coisas serem difíceis que nós não ousamos, mas é porque não ousamos que elas são difíceis (Séneca).

A Crónica do Conde D. Duarte de Meneses é ao mesmo tempo a vida do conde D. Duarte de Meneses e a história dos sucessos das guerras com os Mouros, desde a conquista de Alcácer Ceguer, em 1458, até ao ano de 1464, ano da morte de D. Duarte de Meneses.

Esta crónica constitui uma das obras mais valiosas e verdadeiras de Gomes Eanes de Zurara. Com efeito, a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, juntamente com a Crónica

da Tomada de Ceuta e a Crónica do Conde D. Pedro de Meneses constituem «as três

Crónicas sobre a presença portuguesa no Norte de África» (Brocardo, 1997: 20) e narram, com particular cuidado, cinco décadas da presença portuguesa em Marrocos, de 1415 a 1464.

Nas três crónicas, há uma certa homogeneidade de tempo (século XV), espaço (Norte de África) e conteúdo (guerras contra os Mouros) nas três crónicas marroquinas; ora, a conjugação destes factores induz-nos ao inexorável estudo / análise das três citadas crónicas para se ter uma perspectiva mais abrangente, consistente e verídica do contexto histórico em que as mesmas foram produzidas e dos seus objectivos. Mas o nosso estudo não é tão ambicioso: preocupamo-nos, na medida do possível, em acompanhar de perto todas as obras do autor, sempre que tal se revele necessário, útil e esclarecedor para a consecução dos objectivos que perseguimos.

O estudo da Crónica do Conde D. Duarte de Meneses e de todas as obras zurarianas servir-nos-á para conhecermos e compreendermos com mais profundidade o homem, o cronista, a verdade do seu trabalho e da sua vida.

Na INTRODUCÇAÕ ÀS CHRONICAS de Gomes Eannes de Zurara, José Correia da Serra diz que, «a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, mais rara ainda, vai impressa segundo hum mui estimável Ms., e único antigo existente, o qual se acha em poder do Excellentissimo conde de São Lourenço Dom João de Noronha» (1972: 211-212). Face ao exposto, concluímos que o laborioso abade considerava a Crónica do Conde D. Duarte de

Meneses mais rara que a Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, opinião que Maria

Teresa Brocardo comunga e partilha.

A Crónica do Conde D. Duarte de Meneses foi encomendada a Gomes Eanes de Zurara por el-rei D. Afonso V, aliás confirmada – “embora ainda então em projecto ou perto disso”171 –, por carta do próprio monarca, autógrafa e mui atenta –, «quando uirem ho que auees de escreuer dos feitos de Alcaçer (…). Vossa irmaã auerey em minha encomenda segundo me escreueys Escripta a 22, de Nouembro» (CCDM: Carta de Afonso V, 1-2).

Esta carta foi enviada para Alcácer Ceguer, onde Zurara juntava dados para a dita crónica, nestas precisas circunstâncias, narradas pelo próprio autor, dirigindo-se ao monarca:

Duas rezoões muyto alto e muyto excellëte princepe me constrangyã scusar de comprir uosso mandado quando me da Aueyro screuestes mãdãdo que leixasse todallas cousas em que entom por uosso seruiço era ocupado que eram assaz grandes e proueitosas aos naturaaes de uossos regnos, principalmente ao rregimento de uosso tombo, que aallem do bem comuü perteence muyto a uosso seruiço. Me trabalhasse logo de ajuntar e screuer os feitos do conde dõ Duarte de Meneses uosso alferez moor e capitam ë a uilla dAl[ca]cer (Idem: Cap. I, 3).

O motivo e a data da encomenda da obra deduzem-se facilmente de outra passagem da citada crónica: «E isto creo eu muyto alto princepe que serya por que nom auya muytos dyas que o uirees acabar sua uida [D. Duarte de Meneses] antre os mouros por defesom de uossa pessoa» (Ibidem).

A carta autógrafa do monarca prova «quam bella era a alma daquelle monarca, a quem podemos sem receio chamar o último rei cavaleiro. Vê-se nesta carta que D. Afonso V entendia que uma penna vale bem um septro, e o engenho um throno. De irmão para irmão não houvera mais afável e afectuosa linguagem, e mais generosas animações e mercês» (Herculano, 1839: 250-251).

Esta carta autógrafa é bem elucidativa da estima e respeito que o monarca dedicava ao cronista. Apesar da diferença de idades entre ambos ser de 26 ou 27 anos, esta carta prova-nos que uma grande amizade os unia. Esta ligação terá sido adquirida na biblioteca real desde os tempos da adolescência do monarca e onde o cronista trabalhava.

Como vimos, a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses foi precedida de uma carta que D. Afonso V dirigiu ao cronista Gomes Eanes de Zurara, enviada para Alcácer Ceguer, e escrita em 22 de Novembro, sem indicação de ano, mas que se deduz ser o de 1467, o único Novembro que Zurara passou em Alcácer.

171 Damião de Góis. Crónica do sereníssimo Príncipe D. João, cap. VI, e Crónica do felicíssimo rei D.

- 185 -

Em 25 de Maio de 1468, ano em que teria 62 ou 63 anos, ainda o cronista se encontrava no Norte de África, facto comprovado na certidão do Foral de Gralhas, redigida pelo contador Martim Álvares172, autorizado a fazê-lo por D. Afonso V, em virtude, como afirmou, de Gomes Eanes de Zurara estar ausente em Alcácer Ceguer.

É desconhecido o original desta carta régia, pela qual principiam todos os códices manuscritos conhecidos da Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, publicada na

Colecção de Livros Inéditos de História Portuguesa em finais do século XVIII.

No manuscrito da Torre do Tombo, códice n.º 520 (Livraria), conserva-se cópia da referida carta, de fins do século XVI. Outras são conhecidas nos códices n.º 495 da Biblioteca da Universidade de Coimbra (Cimélios), nº 297 (Alcobaça), 1.598 e 8.920 da F. G. da Biblioteca Nacional de Lisboa. Em todas falta o ano, que se deduz ser o de 1467.

Ao alto do Capítulo I, no impresso de Correia da Serra e nos códices manuscritos, principia assim: «Começasse a estorea que falla dos feitos que fez o jllustre e muy nobre caualleyro dom Duarte de Meneses, conde que foy de Vyana, Alferez moor delRey E capitam por elle na uilla dAlcacer em Africa. A qual foy prymeyramente ajuntada e scripta per Gomez Eanes de Zurara professo caualleyro e comendador na ordë de Christus. Cronista do dicto senhor Rey e guarda moor do tõbo de seus regnos» (CCDM: Cap. I, 3).

Com base no parágrafo, «E sseëdo esta uilla despois sëpre de mouros ataa este presente ãno de .iiicjlxij» (Idem: Capitullo .Cxxj., 159), Esteves Pereira pensou, erradamente, quanto a nós, que esta crónica teria sido «começada antes de 1462 e escrita pela maior parte em Alcácer Ceguer sob as vistas do conde D. Henrique de Menezes»173 (1915: LVI-LVII). Todavia, e como veremos, D. Duarte de Meneses morreu em 1464, pelo que, só depois dessa data é que Afonso V teria solicitado ao cronista a sua elaboração, aliás confirmada pela sua estadia entre 1467 e 1468 em África, para onde o cronista se dirigiu no intuito de recolher informações basilares para poder cumprir com rigor, isenção e verdade o pedido do monarca, contactando com testemunhas vivas e convivendo mais de perto com o verdadeiro cenário de guerra vivido pelo falecido conde D. Duarte de Meneses.

172 Traslado do foral de Gralhas – Foral concedido por D. Dinis à aldeia de Gralhas, do termo de Montalegre

por carta datada de Lisboa, a 20 dias de Setembro da era de 1348 (1310 d. C.). Por alvará de 21 de Maio de 1468, Afonso V mandou que Gomes Eanes de Zurara lhes passasse um novo foral dada a deterioração do primeiro. Este serviço foi efectuado por Fernam de Elvas e assinado por Martim Alvarez, que para isso tinha licença e ordem del rei. Nesta Carta de Foral declara-se a ausência do cronista Gomes Eanes de Zurara em Alcácer Ceguer. Arquivo Nacional, Gaveta 15, maço 16, n.º 7. Reproduzido por E. Pereira, 1915: 307-308.

173 D. Henrique de Menezes, 4.º conde de Viana e 1.º conde de Valença, filho do conde D. Duarte de Menezes

e nomeado capitão de Alcácer Ceguer por carta de 13 de Março de 1464. Foi nomeado capitão de Arzila por carta de 27 de Agosto de 1471. Afonso V deu-lhe o título de conde de Loulé. Faleceu em África, sendo capitão de Arzila, pouco antes de 17 de Fevereiro de 1480.

No mesmo sentido opinaram Duarte Leite (1941: 182) e Dias Dinis (1949b: 142), referindo que a data da encomenda da obra foi o ano de 1464, ano da morte do conde D. Duarte de Meneses, opinião com a qual comungamos face aos «tormentos que a figura do conde D. Duarte incutia no espírito do rei D. Afonso V, a caminho de Tetuão, ao lado do filho do conde D. Duarte, D. Henrique, a quem mesmo ali fez conde» (Costa, 1901: 49).

A atitude do monarca surgiu como uma medida compensatória e de remediação pela insensatez demonstrada, como que procurando algum conforto ou justificação material e espiritual face à morte do corajoso e malogrado Capitão de Alcácer Ceguer, ocorrida, poucas horas antes, por culpa da imprudência e teimosia reveladas pelo próprio monarca.

Por diversas vezes o cronista hesitou e confessou que não tinha muita disposição para redigir a nova crónica, receando os seus detractores: «ca uossa alteza sabe que se uosso mandado nom fora presunçom nõ fezera mouer a pena folgada» (CCDM: CapituloI., 4).

Esta crónica final de Zurara continha 156 capítulos. Nos manuscritos conservados até hoje, 38 desses capítulos estão perdidos na sua integridade e outros 21 mostram-se mutilados. Com efeito, a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses está infelizmente truncada nos manuscritos existentes, e na parte conservada conta os seus feitos antes de 1438 (aliás já sabida pela do pai), e alguns de 1461 em diante na sua capitania de Alcácer Ceguer. «Talvez nos capítulos perdidos estivessem consignados acontecimentos guerreiros de Ceuta entre 1438 e 1461» (Leite, 1941: 51-52).

Supõe-se que esta obra tenha sido acabada depois de Agosto de 1468, data aliás consensual entre os biógrafos e estudiosos de Zurara. Mas como a obra não tem cólofon, ignoramos quando Zurara concluiu a crónica, de que nos ficaram apenas manuscritos mutilados, o mais antigo dos fins do século XV.

Zurara escreveu a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses após minuciosa e directa investigação local dos acontecimentos históricos nela descritos, «em auer das cousas que assy ouuesse descreuer a milhor enformaçõ que eu podesse por que milhor e mais uerdadeyramente podessem» (CCDM: Capitulo segundo., 4), logo a seguir a eles terem acontecido, e com a preocupação de evitar reparos das pessoas coevas dos factos e na obra contemplados, ou de suas famílias, como se constata nesta passagem:

E no ãno do nacymento de Christo de mil . iiicjlxvij. no oitauo mes daquelle ãno, passey

naquestas partes de Africa onde estiue tanto tëpo atee que o sol passou hüa uez todollos doze signos assy como estam asseentados no zodyaco, onde sguardey muy bem todo o asseento da terra e as comarcas com que parte como se achara scripto per mÿ aos .xxxj capitullos desta obra [capítulo infelizmente já desaparecido] (Idem: 5).

- 187 -

Este peregrinar de Zurara, preludiando uma espécie de historiador andarilho quinhentista, espécie representada, segundo Manuel Rodrigues Lapa, por Fernão Lopes de Castanhede, o qual, no prefácio do Livro III da História do Descobrimento e Conquista da

Índia Pelos Portugueses, publicada em oito volumes saídos entre 1551 e 1561, dedicado à

Rainha D. Catarina, esposa do rei D. João III (1502-1557), e regente do reino desde 1557 até 1562, insistiu na necessidade que tinha o historiador de se trasladar ao teatro dos sucessos, estagiar nos locais que presenciaram os sucessos que pretendia narrar: «porque muito sobrenatural há de ser o engenho que há de saber escrever do que nunca viu» (1972: XV). Acrescenta ainda este autor que, «quem há d’escrever histórias, há de fazer as diligências que eu fiz e ver a terra que há de tratar como eu vi, que assi o fizeram esses historiadores antigos e modernos» (Idem).

Apesar de todos os esforços no apuramento da verdade e de isenção revelados por parte de Zurara, quanto mais avançamos no estudo da Crónica do Conde D. Duarte de

Meneses, mais se acentua o receio e a preocupação do cronista contra as más-línguas, «A

ssegunda o grande conhecymento que tenho de uossas eroycas uirtudes e grande saber, que nom soomëte soportarees meus fallecimëtos mas ainda tomarees encarrego de me defender das seetas dos que nom sabem senom mal fallar» (CCDM: Capitulo I., 4), solicitando ao monarca compreensão e ajuda contra os inimigos, os invejosos e oportunistas, conforme verificamos nos seguintes excertos:

Se quisessemos alargar a estorya muytas cousas teeryamos pera dizer mas como disse huü pueta que os modernos nom quiseram senõ breuyedades, porë nom curamos descreuer em este liuro senom aquello que sentyrmos que nom podemos scusar (Idem: Capitulo .Rviij., 66);

Diz o autor desta estorea, eu nõ quero ëmëtar, nem specificar os feitos de cada huü destes nobres homeës por que me serya necessareo querëdoo fazer, ou nõ dizer todo ou fazer mjnha estorea tam prolixa que fezesse fastyo aos leedores (Ibidem: Capitulo .Lix., 84);

E sse eu quisesse diz o autor desta estorea contar per extenso as bondades e uallëtyas que estes e os outros fidalgos e boõs homeës fezerõ assy neeste dya como nos outros, certamëte eu farya minha obra de grande prolixidade (Ibidem: Capitulo .Lxxvj., 106);

Outra uez peço perdom a toda a outra nobre gëte por nõ screuer aquy por extëso a bõdade de cada huü por que certamëte tomando a mayor parte pollo todo, todos o fezerõ tã auãtajadamëte que se eu ouuera de cõtar a bõdade de cada huü següdo seu proprio merecimëto requerya, pouco menos me cõuyera senõ de fazer de cada huü special capitulo (Ibidem: Capitulo .Lxxx., 114);

Tenho tãtos spreitantes que ainda eu bem nom tomo a pena na maao pera screuer, ja começã de condanar mjnha obra (Ibidem: Capitulo I., 4).

Os queixosos eram, como não podia deixar de ser, os nobres e os fidalgos, os não visados pelo cronista com a atribuição de façanhas honrosas, daquelas que davam honra e fama e podiam vir a conferir proveito e glória como então se usava dizer.

Essas críticas levaram o cronista a modificar o processo historiográfico. Comparando as duas primeiras crónicas, de Ceuta e da Guiné, com as duas últimas, dos condes de Vila Real e de Viana, tal como José Dias Prudente sustenta, «nota-se no processo narrativo destas, mas principalmente na Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, uma tendência para a precisão e concisão, de que estão longe as primeiras» (1960: 48).

É certo que as duas últimas obras de Zurara, as crónicas dos Meneses, do conde D. Pedro e do conde D. Duarte, apesar de durante muito tempo terem sido ignoradas, são das obras de maior esplendor literário de Zurara e aquelas em que o cronista utilizou uma metodologia mais consistente e rigorosa, fruto da sua maior maturidade cultural e intelectual. Esta asserção é inteiramente partilhada por Larry King que afirma: «It must be noted, however, that Zurara’s final two works have been largely ignored. As will be pointed out and developed later in this study, the chronicles of Dom Pedro and Dom Duarte de Meneses, particularly the latter, were written during Zurara’s most mature years of literary productivity and under his most rigorous methodology» (1976: 17).

Nas crónicas dos Meneses as tiradas retóricas são menos frequentes, tal como a intervenção na narrativa. Os elogios são menos repetidos, mas as críticas ao monarca e a outros senhores acentuam-se, como por exemplo, quando Afonso V descurou o abastecimento e defesa de Alcácer Ceguer, recentemente conquistada, salvando a situação a astúcia do valoroso conde D. Duarte de Meneses, assim como as críticas ao irmão do rei

Africano, D. Fernando (1433-1470), duque de Viseu, descrito como invejoso, intriguista,

desobediente e muito imprudente, pai do futuro rei D. Manuel, o Venturoso (1469-1521), críticas que revelam um Zurara mais ousado e frio, mais maduro, racional e crítico.

Na elaboração da Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, Zurara reconheceu que a gente popular tinha melhor conhecimento dos feitos ocorridos na cidade do que os fidalgos, daí uma das razões que o levaram a viajar para verificar in loco a realidade dos acontecimentos que descreveu e aí colher informações o mais verídicas possíveis.

As rivalidades entre a classe nobre e as intrigas contra o próprio conde D. Duarte de Meneses cresceram e transformaram-se em ódio crescente na própria corte de Afonso V. Estas tramas, instigadas e alimentadas pelo próprio irmão do rei, D. Fernando, e outros

- 189 -

ilustres do reino, e conhecidas do próprio Zurara, terão certamente pesado na decisão do cronista em socorrer-se de testemunhos mais simples, humildes e desinteressados, até porque, como descreveremos seguidamente, a figura do conde D. Duarte de Meneses mereceu toda a honra, respeito e consideração ao cronista.

As críticas talvez o tenham despertado do sono dogmático em que até aí permanecera, reconhecendo maior valor ao testemunho de poucos e certas pessoas. Assim, cada qual descreveria os sucessos através do prisma dos seus interesses, não olvidando a descrição pormenorizada da sua acção, esquecendo outros aspectos. O soldado humilde, que nada tinha a ganhar com a narrativa e espectador desinteressado, daria uma visão de conjunto mais ampla que a dos cortesãos: «embora com a respectiva vénia, bem respeitosa, atribuindo o conhecimento menos profundo dos acontecimentos, pelo facto da actividade dos fidalgos ser mais dispersiva, incidindo a sua atenção em maior número de funções, valoriza o testemunho da gente popular» (Prudente, 1960: 50).

Gomes Eanes de Zurara, sempre em busca da realidade e do apuramento de toda a verdade, procurou junto de D. Henrique, filho do conde D. Duarte de Meneses, acompanhar as cavalgadas que este realizou em território marroquino, calcorreando os mesmos itinerários do falecido conde seu pai, procurando fazer uma espécie de reconstituição do passado: «por que nas entradas que o conde dom Henrique fazya naquelle tempo eu fuy com elle e ainda per meu requerymento leixou algüas uezes de yr a alguüs lugares por yr a outros satisfazendo ao meu deseio cõ a milhor uoõtade que elle podya conhecendo minha tençam» (CCDM: Capitulosegundo., 5).

O cronista rentabilizou ao máximo a sua estadia em África, comunicando com os próprios mouros, no sentido de aquilatar dos seus sentimentos, anseios e expectativas:

Eu ouuy despois a alguüs mouros cõ que faley daquelles que esteuerõ naquelle cerco estando eu la ë terra dAfrica pera screuer esta estorea onde me trabalhaua muyto falar cõ elles pera saber melhor seus feitos, e isto por elles uïjrë algüas uezes a Alcacer. Outros saindo eu cõ o conde dõ Henrique sobre paz a trautar algüas cousas com elles todos me dizyam que lhes nõ parecerõ aquelles cauallos que sayã de cerco, mas que uijnham dalgüas aldeas abastadas onde esteuerom a pensar, a qual uista os fezera de todo desconfyar de sse poder por aquela uez tomar a uilla (CCDM: Capitulo .Lx., 84).

Face a estas duas últimas asserções, não tem razão Rodrigues Lapa quando acusa de falta de autenticidade a narrativa zurariana, carecendo de fundamento as suas palavras:

Sente-se no grande cronista Fernão Lopes um propósito decidido de nos referir a verdade, já o mesmo se não verificou no cronista Zurara. O historiador era agora um cortesão, sem independência material nem moral; e o rei, a pouco e pouco deixou de ser o rei popular, para ser o ditador absoluto, a quem tudo se devia. Nestas condições, compreende-se bem que o objectivo da História já não podia ser a simples e total verdade, mas apenas a verdade que agradava ao senhor, que redundasse em seu prestígio. A História tendia a converter-se num elogio, num panegírico (1972: V-VI).

Contrariando a tese adoptada por Rodrigues Lapa, demonstrámos nas páginas deste estudo, com palavras do próprio cronista, que apesar das inúmeras dificuldades, Zurara teve sempre presente a preocupação de narrar e contar a verdade, uma atitude que se infere no último período do excerto da carta datada de 22 de Novembro, do ano de 1467, que el-rei D. Afonso V enviou para África onde se encontrava Gomes Eanes de Zurara. Nestas palavras antevemos as intenções do monarca e algumas das razões do seu pedido ao cronista, e certificamo-nos que foi o próprio rei a louvar o cronista por o mesmo ter o desejo de escrever a verdade:

A muytos fiz onrra e merçe com milhor võtade por ser çerto dalgüs boõs feytos que la fizeraõ por seruiço de Deos e dos Reys meus antecessores e meu, e a outros por serem filhos daquelles que laa assim bem seruiam do que eu naõ era antes entaõ comprido conheçimëto, e creo que naõ menos sera aos que depoys de min vierë quãdo virem ho que aueys descreuer dos feytos de Alcacer, e se algüs