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«E deuees ajmda de comsijrar como todallas homrras deste mundo

Capítulo 1. Da Reconquista cristã às conquistas marroquinas da dinastia de Avis

1.2. A viragem geoestratégica e política da dinastia de Avis nos séculos XIV e

1.2.1. Razões da tomada de Ceuta

Porque para sempre será gloria e louvor amtre as outras nações serem possuidoras da cidade [Ceuta] em que tamta homrra per tamtos tempos per seus amteçessores se adquirio e ganhou (CCPM: Livro I, Capitolo 1º, 177).

Para conseguirmos formular um juízo claro e verídico sobre as conquistas marroquinas e a Expansão perpetradas pelo povo português, acções que na nossa óptica se completam e complementam, temos de compreender e sentir a vivência social, cultural, política e mental daquela época. Ora, essa compreensão só se tornará exequível, após minuciosas e aturadas consultas das obras coevas escritas e muitas outras fontes documentais relativas à realidade do povo português, e dos povos peninsulares e europeus nos séculos XIV e XV.

A realidade sócio-económica e política do povo português em finais do século XIV e princípios do século XV, aliada aos interesses, necessidades, expectativas e anseios das várias classes sociais, assim como as do rei e da corte, e da própria Europa, levaram Portugal a enfrentar enormes desafios, lançando-se à conquista e exploração de novos rumos e de mundos desconhecidos. O Portugal afonsino e rural virou para o Portugal marítimo e urbano, comercial e expansionista, da dinastia de Avis. A verdade, porém, e como veremos, é que no reinado do Mestre de Avis, a vida dos Portugueses não era nada fácil.

A tomada de Ceuta marcou o início da Expansão portuguesa e das conquistas marroquinas e vingou ainda a honra da Cristandade e da Espanha, face à penetração e conquistas muçulmanas na Península Ibérica após o século VIII. Todavia, estas políticas expansionistas causaram divisões na sociedade portuguesa e nos próprios príncipes de Avis. É certo que ninguém ousa questionar a importância histórica das mesmas, nem o interesse para Portugal e para Europa de Quatrocentos, porque, e é justo que se registe, a Expansão portuguesa do século XV não foi somente portuguesa: foi uma Expansão europeia. Portugal foi como que mandatado para executar um pensamento que era europeu, tendo muitos colaborado com Portugal na sua Expansão.

A Europa, no final da Idade Média, encontrava-se em período de expansão e os principais mentores e cientistas que estavam ao lado do infante D. Henrique vinham dos mais variados países europeus: «Oh! Quanta vezes o achou o sol assentado naquele lugar onde o leixara o dia dantes, velando todo o arco da noite sem receber nenhum descanso, cercado de gente de diversas nações, não sem proveito de cada um daqueles, que não era a ele pequena folgança achar com que aproveitasse a todos!» (CG: Cap. VI, 37). Todavia, há que realçar que a primeira ideia de Expansão, no sentido do alargamento do território, da procura e conquista de novas terras e mercados, surgiu em Portugal, na verdade, na 2.ª metade do século XII, entre 1165 e 1167, com Geraldo, Sem Pavor. Com efeito, aventureiro e conquistador cristão, Geraldo tomou várias praças aos Mouros. Passando-se para o lado destes, governou durante bastante tempo um território a sul de Marrocos, na província de Suz. Mais tarde, talvez arrependido, escreveu a Afonso Henriques (1109-1185), dizendo que o auxiliaria na conquista de território e expansão além Tejo, se lhe mandasse homens e navios. Assim, em rigor, e face aos propósitos de Geraldo, a primeira ideia de Expansão portuguesa começou no século XII com as conquistas além Tejo (cfr. Mattoso, 1993b: 77).

Muitas outras razões poderiam ser aduzidas como formas de explicação que levaram os Portugueses a virarem-se para o mar e para as conquistas marroquinas. António Quadros vê a conquista de Ceuta, de uma forma geral, como a obra qualitativa da dinastia de Avis e do pensamento (expansionista) dos seus Príncipes, apesar de saber que a empresa dos Descobrimentos deu os seus primeiros passos no próprio reinado de D. Dinis: «foi um Franciscano “espiritual”, contemporâneo de D. Dinis, um maiorquino da roda cultural dos soberanos de Aragão, o Doutor Iluminado, Raimundo Lúlio45 (1232/33-1316), o primeiro a

45 Por volta de 1272, Raimundo Lúlio escreveu, primeiro em árabe e depois em catalão, o Llibre de

Contemplació en Déu, verdadeira enciclopédia de conhecimentos teológicos e naturais, de grandes proporções.

Consiste num apaixonado monólogo que a criatura dirige ao seu Criador. Começa considerando o Ser eterno, seus atributos e operações, a criação e as virtudes de Cristo, entremeando todos os argumentos com sublimes

sugerir o plano de circum-navegar a África para alcançar a Índia» (1987: 155-157). Tal é o desiderato do seu Liber de acquisitione Terrae Santae, de 1288, em que preconiza como primeiro passo o ataque e a conquista do Norte de África para alcançar a Índia.

Apesar de não ter sido um rei descobridor, D. Dinis conheceu as ideias e a obra de Raimundo Lúlio, e a iniciativa da grande empresa das descobertas e da Expansão foi sob a sua égide que se iniciou, como afirma José de Bragança: «É fora de dúvida que o destino atlântico de Portugal é nitidamente concebido desde o reinado de D. Dinis» (1973: XVI).

Dois eventos fundamentais atestam o papel fundamental de D. Dinis para dar início ao arranque dos Descobrimentos e da Expansão: a reorganização da armada real pelos genoveses, em 1317, lembrando que no contrato de Manuel Pessanha, o seu almirante se obrigava declaradamente a defender o reino contra os mouros, inimigos da nossa fé; e o acolhimento, dois anos depois, da primeira sede da Ordem de Cristo, por bula decretada pelo Papa João XXII, em 14 de Março de 1319, com sede e castelo em Castro Marim, obedecendo, em parte, aos mesmos objectivos.

A escolha de Castro Marim, devido à sua localização estratégica, foi intencional: «A centralização da ordem em Castro Marim não pode deixar de obedecer a objectivos geopolíticos, pois, situada no estuário do Guadiana, é o lugar fortificado que fica mais vizinho dos portos granadinos e marroquinos, donde partem as investidas dos piratas mouriscos contra as costas portuguesas» (Cortesão, 1959-61: 179-180). Com feito, D. Dinis mandou fazer diversas invasões nas costas da Berberia, através de operações navais comandadas por Pessanha e que por Bula de 7 de Maio de 1320, o Papa João XXII concedeu a D. Dinis a dízima das rendas eclesiásticas do reino, pelo tempo de três anos, para fazer guerra aos mouros, em África, com uma armada de galés.

A primeira fase do reinado de D. João I foi marcada pela guerra contra Castela, a luta pela independência e fortalecimento da nação e durou até 1411-12. A guerra expansionista de Marrocos e inícios das explorações atlânticas marcaram a segunda fase do seu reinado que durou até ao fim da sua vida, em 1433.

Estabelecida a paz, senhor do reino, D. João I não esqueceu a importância de criar laços na Europa: não com o intuito de prevenir guerras ou arranjar aliados, mas porque isso fazia parte da ideia de monarquia e era necessário à fama e prestígio do seu nóvel tronco dinástico. Havia que rapidamente se integrar no grande clube dos príncipes da Cristandade, na

Respublica Christiana. Foi o próprio cronista Zurara quem nos recordou esta conveniência:

trechos sobre psicologia humana, moral e apologética. Finalmente considera o amor, a oração e a contemplação. Toda a linguagem é fortemente expressiva e transbordante de lirismo.

(…) e que aos homeës pareceo necessareo ordenarem antre ssy Reis por que os maaos nõ teuessë licença de forçosamëte correr por suas maldades, mas que com forçosa mãao fossë repremidos punidos e castigados següdo suas maldades. E de conuerso os boos gallardoados e honrados segundo suas uirtudes e merecimëtos, os philosafos por lume deuinal ouuerõ tãto conhecimëto da rezõ por que conhecerõ quaaes e queiandos cõuijnhã de seer os Reis e princepes, e por conseguïte todos aquelles que por poderyo ouuessë de ssojugar aos outros (CCDM: Capitulo .CRiiiºj., 190).

A guerra com Castela, (re)iniciada no tempo de D. Fernando, teve o seu clímax no interregno de 1383-1385, e, apesar das tréguas de 1411, a ameaça de absorção do pequeno reino ocidental prevaleceu até à paz definitiva assinada em 1432: «Outrossy foram trautadas e firmadas pazes amtre Portugall e Castella por çemto e hü annos, as quais trautarão Luys Gomçallvez, e Pero Gomçallvez, seu irmão, e o doutor Rruy Fernamdez. E foy ë estes trautos por secretario Rruy Gallvão» (CCPM: Capitolo XXVI, 654).

Firmadas as tréguas, Portugal pôde, então, com sabedoria e serenidade, virar-se com todas as suas energias para além mar, sendo Ceuta conquistada a 21 de Agosto de 1415. Mas esse desafio à independência portuguesa foi crucial para o entendimento da época: o país tinha de se fortalecer para resistir à ameaça castelhana, necessitando de um exército treinado, de uma frota numerosa e de pontos de apoio exteriores ao território continental. Todavia, ao pretender lançar-se na conquista de Ceuta, o Mestre de Avis temia desguarnecer o país de defesa e desconfiava das verdadeiras intenções castelhanas:

Mas que sera porque eu tenho gramde duuida e pouca seguramça no rregno de Castella, ca pode seer que semtimdo como som fora de minha terra, podersseam mouer comtra meu senhorio, a quall cousa será muy maa ao diamte de rrepayrar. E a quarta duuyda que tenho he comsijramdo que me Deos desse a uitoria que em elle comfio, o filhamento desta çidade me pode fazer mayor dano do que proueito por quamto o rregno de Graada fica mujto mais aazado pera sse poder conquistar (CC: Capitullo xij, 39-40).

Os feitos da dinastia de Avis e dos seus príncipes, para serem compreendidos, terão de ser inseridos na sua época histórica específica, isto é, na conjuntura europeia carente de abertura em busca de novos mercados e espaços. O problema é que a Europa continuava a viver uma situação de longa depressão económica como a análise da fiscalidade da época documenta. Com efeito, já ao equacionar os meios materiais de que poderia dispor para tomar a cidade de Ceuta, D. João I se havia queixado da falta de gente, de dinheiro e de equipamento náutico e militar: «E a terçeyra cousa acho que he a abastamça da gemte que nom tenho, (…), e eu nom tenho a de fora nem esperamça como a aja primçipallmente pollo

falliçimento do dinheiro que semto em meu rregno. (…). E assy que com as minhas gemtes me comuem soomente fazer todo meu feito» (CC: Capitullo xij, 39).

Até 1411 andou-se praticamente em guerra. A inflação monetária atingiu níveis elevadíssimos. O povo queixava-se dos privilegiados. Os impostos extraordinários, os célebres “pedidos” tornaram-se crónicos e foram lançados à rebelia das cortes. Por último, muito censuradas e qualificadas de roubo, surgiram as “sisas”, imposto indirecto municipal, só excepcionalmente concedidas a reinantes, as quais foram apropriadas à coroa como se tratasse de direitos reais. Todavia, e apesar da grave crise económica vivida, havia muitos factores importantes que impeliam o Mestre de Avis, recordado por muitos como “pai dos Portugueses”46, a avançar para a conquista da cidade de Ceuta, situada no Norte de África:

Dando-lhe Deos uitoria que acabaria tres cousas muy grandes, as quaaes nenhum grande prinçipe nam deuia dengeitar quando se lhe assi offereçessem como se a elle em tal caso offereçeram .ss. a primeira grande seruiço a Deos. (…). E a segunda cousa he honrra que se vos delloo segue. (…). E a terçeira cousa he a grande e boöa vontade que tendes de nos fazerdes honrradamente caualeiros (…) pois que outra nenhuüa conquista nam tendes em que o possaes fazer (Idem: Capitullo ix, 28-29).

Portugal espreitava, pensava em Granada e no estreito de Gibraltar, ponto nevrálgico que controlava as entradas e saídas do Mediterrâneo para o Atlântico, só que essa conquista equivalia a uma provocação dos interesses Castelhanos; por isso volveu os olhos para os vastos territórios ao sul do Mediterrâneo, ricos em ouro, escravos, cereais, produtos exóticos e relativamente mal povoados, como se constata e descreve na Crónica de Guiné:

Esta foy huma das principais cidades no tempo dos mouros, assy em edifícios como em riquezas e nobrezas e mercadorias. E aqui avia a principal descarregação dellas para toda a terra do sertaão. E estava em tanta prosperidade que quantos navios passassem pelo dito estreito quer do levante ou do poente aviam de amaynar as velas. E qual não que esto não fezesse, logo as galés dos mouros ha seguiam e a tomavam (Ms. de Munich, fol. 45).

Ceuta era, efectivamente, uma cidade rica, pela sua agricultura, pelo seu artesanato, pela fertilidade dos seus mares e, sobretudo, pela sua posição estratégica, quer porque lograva controlar parte das rotas comerciais do Atlântico e do Mediterrâneo (com distensão para o Índico), quer porque conseguia atrair muito do ouro do Sudão que circulava nas caravanas transaarianas.

46 Vide, MATTOSO, 1993b, 497, in nota 4, p. 547 (Cap. I dos do Algarve de 1451 (Santarém), ANTT,

Tendo em conta a situação económica do reino e os produtos magrebinos cobiçados pelos invasores, indicam-se várias e divergentes opiniões relativas às possíveis motivações que levaram os Portugueses a conquistar Ceuta:

Seriam o trigo das planícies atlânticas de Marrocos (António Sérgio) e o ouro do Sudão Ocidental (Jaime Cortesão), escoados pelos portos norte-africanos, uma atracção irresistível para os povos da Ibéria ocidental? O corso e a pirataria praticada pelos Mouros (cardeal Saraiva e David Lopes) teriam atingido, no alvor do século XV, uma dimensão insustentável? A pressão social da nobreza portuguesa (Veiga Simões) exigiria rendas acrescidas que só a conquista de novos territórios permitiria satisfazer? O desejo de aperfeiçoamento moral e religioso (Mário de Albuquerque) impunha a prossecução da obra da Reconquista e da cruzada contra os Mouros? Ou, como pretendia Zurara poucas décadas após o evento, tudo se resumiu ao desejo dos infantes de serem armados cavaleiros no campo de batalha, em vez de receberem a ordem no decorrer de um simples torneio? (Farinha, 1998: 120).

O início da expansão europeia de que os Portugueses foram os pioneiros representa, em termos de História Universal, o encontro dos diferentes povos e culturas, constituindo o pórtico da Idade Moderna. Com efeito, a conquista de Ceuta iniciou um capítulo novo na história da civilização europeia. Tal como sustenta António Dias Farinha, «debuxam a visão do mundo como hoje é conhecido» (1998: 120).

Os Portugueses tornaram-se os arautos dos Novos Mundos e da Idade Moderna, afirmando-se que a hora da maior coragem na História da Europa foi a hora do esforço português. A época mais espantosa, mais fantástica e mais produtiva foi dada ao mundo pelos Portugueses:

E, com espanto e inveja, volta o Mundo a olhar para este pequeno e ignorado povo no recanto da Europa. Observada pelo lado do raciocínio, a expansão de Portugal é um absurdo, uma quixotice, mas quando o povo se abalança a tarefa muito acima das suas forças, aumenta as suas possibilidades até intensidade jamais concebida. Nunca talvez uma nação se concentrou toda num único momento de vitória, como Portugal, em princípios do século XV. Durante uma hora que o Mundo nunca poderá esquecer, é Portugal a primeira nação da Europa, a nação condutora da Humanidade (Zweig, 1975: 7-9).

Uma tamanha expansão dum tão pequeno povo tinha criado o ciúme, o espanto e a admiração da Europa. Rodrigues Lapa afirma que letrados e humanistas «viviam então enlevados nas façanhas guerreiras dum Alexandre, dum César, da antiga Grécia e Roma. Nisto, porém, eram obrigados a reconhecer que a glória do presente, da actualidade portuguesa, obscurecia largamente a do passado» (1972: VI).

O fenómeno da Expansão tem de ser compreendido como um fenómeno geral, e uma análise comparada mostrar-nos-ia que as causas, as formas e as consequências da Expansão, são muitas vezes as mesmas de continente para continente, de século para século ou de milénio para milénio, pelo que a Expansão portuguesa deve ser recolocada neste grande movimento planetário. Daí que a conquista de Ceuta se inscreva numa dinâmica expansionista geral e global dos reinos europeus e cristãos e em circunstâncias concretas da realidade portuguesa e ibérica, nos alvores do século XV, tornando-se um dos temas mais controversos da nossa História, sendo as razões e teses apontadas para tal empreendimento numerosas e diversificadas.

A conquista de Ceuta, a que D. João I se decidiu por múltiplas razões, ainda hoje diversamente interpretadas, acabou, no entanto, com os abusos cometidos pelos árabes, na posse daquela Chave da Espanha, como lhe chamava Zurara, e teve como consequência, entre outras, a de criar ali uma escola de guerra contra os Mouros, tanto em terra como no mar.

Os danos causados e o pouco proveito temidos pelo Mestre seriam mais tarde confirmados pelo filho, o infante D. Pedro, o qual diria na sua famosa carta de Bruges47, redigida no início de 1426, que Ceuta se transformou num sumidoiro de gente, armas e dinheiro. Por isso, «amtes de filharem esta çidade, logo no primeiro começo de nossos comselhos, hüa das cousas por mÿ [D. João I] allegadas pera emtõ detreminar foy que, semdo esta çidade, per graça de Deus, filhada, que era o que fariamos della» (CCPM: Livro I, Capitolo IIIIº, 188), porque, «Çerto he que ho rreter desta çidade ao seu derradeiro fim não he outra cousa senão fama e nome, ca de proveito que se a coroa rreall possa seguyr nõ se pode pello presemte conhçer» (Idem: 189).

Reparemos como as palavras do Mestre de Avis prenunciavam inteiramente os seus primeiros receios: «Ora seemdo assy que Deos nos queira fazer tamto bem que cobremos esta çidade a nosso poder, que nome ou que homrra nos uem ese ao diamte nom podermos manteer ou deffemder, nom nos fica nenhuüa cousa de que nos rrazoadamente possamos louuar. Ora ueede que nos aproueitam tamtas e tam gramdes despesas com tamanha força de trabalho e cuydado com esperamça de tam pequena uitoria» (CC: Capitullo xij, 40-42). Com efeito, o lucro material, ou seja, o proveito, para além da fama, glória e honra, estavam sempre associados às acções a desenvolver: «E o que peor era, que alem dos vulgares do povo, os outros maiores falavam em si quasi por maneira de escarnho, tendo que eram despesas e trabalhos de que não podia vir algum proveito» (CG: XVIII, 96).

47 É uma carta-manifesto de homem de Estado, com opiniões seguras sobre política eclesiástica, cultural,

A empresa de Ceuta foi cuidadosamente planeada e rodeada do maior segredo. O destino da armada só foi conhecido de poucas pessoas. O projecto surgiu cerca de quatro ou cinco anos antes, mas só após as já referidas tréguas com Castela, assinadas em 1411, se iniciou a preparação do exército, do armamento e da frota capaz de transportar tão elevado número de homens48. A expedição foi arquitectada em absoluto sigilo, e apenas dois funcionários reais estavam a par dos preparativos, Gonçalo Lourenço e Gonçalo Caldeira49:

Gomçallo Caldeyra, escriuam da câmara delRey, a que a puridade deste segredo foy rreuellada nom podia per ssi soo escpreuer tamta escpritura como perteeçia pera este feito, e porem foy reuelado assy aaquelle por semtirem delle que era homem que o guardaria. Certamente elle tomou dello tamanho cuydado, que posto que depois da tomada de Cepta mujtos annos uiuesse, numca foy homem que lhe em ello ouuisse fallar soomente per gramde uemtura e ajmda aquello que fallaua sob muy gramde cautella e temor (CC: Capitullo xxv, 76).

Na opinião de D. João I, a guerra contra os infiéis do Norte de África constituía uma penitência, uma santa romaria, pelo sangue vertido na luta que sustentava com o castelhano: «Pois que peemdemça posso eu fazer de quamtos homeës per mym e per meu aazo forom mortos, soomente matar outros tamtos jmfiees ou mujto mais se poder por seruiço de Deos e eixalçamento da samta fe catholica. (...). Com a graça de Deos espero de leuar a esta samta rromaria» (Idem: Capitullo xx, 65).

A sua consciência de católico sentir-se-ia lavada do pecado involuntário de ter morto cristãos (na guerra contra Castela), quando saldasse a dívida contraída e matasse outros tantos islamitas, e na mentalidade do Mestre e dos cristãos, Deus estaria do nosso lado: «Prouve assim a nosso senhor Deus, que nas presas e trabalho acorre aos que em seu serviço andam» (CG: XXII, 115). Todavia, o Mestre de Avis reflectiu maduramente sobre a posição a tomar: «Empero ante que eu nenhuüa cousa rresponda quero primeiramente saber se esto he seruiço de Deos de se fazer. ca por muy grande honrra nem proueito que se me dello possa seguir se nom achar que he seruiço de Deos nom entendo de o fazer. porque soomente aquella cousa he boõa e onesta na qual Deos jnteiramente he seruido» (CC: Capitullo x, 30).

A conquista de Ceuta, independentemente da tese perfilhada sobre a mesma, marcou, assim, indubitavelmente, o advento das conquistas marroquinas e o início das Descobertas e Expansão portuguesa operadas ao longo do século XV sob a égide da dinastia de Avis,

48 Os embaixadores desta negociação de paz foram: «Joham Gomez da Silua alferes delRey e rrico homem e do