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Idade Média: da história ao serviço da fé à história moralista e pedagógico-didáctica de Gomes Eanes de Zurara

Do nascimento da História às crónicas zurarianas do século

2.3. Idade Média: da história ao serviço da fé à história moralista e pedagógico-didáctica de Gomes Eanes de Zurara

Historiador, Zurara também o foi, tendo em conta aquilo que podia ser a concepção da história no século XV (Vergé-Franceschi, 2000: 173).

Não há época histórica sujeita a apreciações tão díspares e controversas como a Idade Média83. Sobre essa época encontramos posições radicais dos humanistas (século XVI), dos iluministas (século XVIII) que a subvalorizaram, e dos românticos (século XIX) que a glorificaram, e outras mais moderadas e equilibradas, mais próximas do que terá sido a verdadeira Idade Média.

Há quem caracterize a Idade Média como a «longa noite dos mil anos, séculos das trevas, durante a qual a actividade histórica teria regressado à infância» (Carbonell, 1981: 30), o que não corresponde à verdade porque «já desde a Alta Idade Média surgiram, na prática, novos géneros históricos, como sejam os anais, crónicas, hagiografias, biografias, autobiografias, testamentos, diplomas, tratados e legados» (Bourdé & Martin, 1983: 11). Com efeito, já desde o século VII os monges utilizavam “tábuas pascais” para fixar, em cada ano, a festa móvel da Páscoa. Nessa espécie de calendários litúrgicos foram-se depois gravando outros sucessos ligados à vida da Cristandade e à história interna dos mosteiros. A partir do século IX começou a fazer-se a distinção entre os factos ditos pascais e as notícias de ordem geral contidas nas tábuas pascais.

Foram estes apontamentos que serviram de base à elaboração dos anais dos séculos XI e XII, com uma linha cronológica seguida e linear, mas não forçosamente anual, em que se referiam os sucessos havidos na congregação ou no reinado de um príncipe.

Após o século XII, surgiu uma certa secularização da História, com uma gradual independência em relação à teologia. Esta secularização veio conferir-lhe uma função prática na verificação da autenticidade e veracidade dos documentos, onde se perspectivava já uma posição crítica do historiador.

O cristianismo (assim como também o judaísmo) contribuiu de dois modos para o desenvolvimento do pensamento histórico84: por um lado, assentou numa concepção de

83 Vide, LE GOFF, Jacques (s. d.). “A Idade Média hoje”. In Reflexões sobre a História. Entrevista de

Francesco Maielo (tradução do Italiano). Lisboa: Edições 70, pp. 103-112.

84 Sobre a importância do pensamento histórico Vide, GODINHO, Vitorino Magalhães (2007). “Os

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tempo contínua, irreversível e linear; por outro lado, transmitiu uma Filosofia da História ao considerar o papel da Providência como motor da evolução.

O cristianismo consagrou a ideia do tempo linear, herdada do pensamento hebraico. Apesar de no plano psicológico, e logo no da pedagogia da fé, só o tempo circular ser didáctico, só o tempo linear consente a tese do livre arbítrio, de modo que a liturgia cristã não podia senão adoptá-lo, como nas horas canónicas85.

O cristianismo retomou a ideia de um direito natural relativo, que o pecado original tornou o único possível, aceitando a unidade do género humano que, no seu conjunto, podia salvar-se. Para o cristianismo, a história humana era um combate86. Neste ponto residia justamente a novidade judaico-cristã do tempo, quando confrontada com as anteriores concepções cíclicas e históricas das civilizações clássicas, ao estabelecerem a dicotomia entre a vida terrena e um novo horizonte escatológico que introduziram.

Dada a importância da concepção de uma História Universal é imperioso salientar o pioneirismo de Paulo Orósio (385 – 420 d. C.). Este historiador, teólogo visigodo e apologista cristão, natural da Hispânia Romana, da região de Braga e nascido nos finais do século IV, foi o autor do primeiro grande tratado de História Universal87, escrita no âmbito

da cultura cristã, dissertando sobre a História não sob a perspectiva de uma nação particular, mas sob o ponto de vista do Homem Universal, ao mesmo tempo que libertava o fluir do tempo da perspectiva de repetição cíclica que lhe dera Políbio, a despeito do seu reconhecido cosmopolitismo. Assim, a Historiarum Adversus Paganos, libri VII, escrita em 417 d. C., três anos antes da morte do seu autor, constituiu o mais importante manual de

História Universal ao longo de toda a Idade Média, tendo conhecido mais de mil

reproduções manuscritas.

As Histórias (As Histórias de Orósio), se inicialmente poderão ter sido originadas por um praeceptum88 augustiniano, não podem ser entendidas como “complemento” do De

Ciuitate Dei, mas como uma obra autónoma e até defendendo princípios ideológicos opostos

aos de Agostinho. Antes de mais, porque Orósio olvida a dimensão teleológica que Agostinho atribuíra à história humana, substituindo-a por uma escatologia de raiz milenarista apoiada sobre a teoria dos quatro impérios89. De facto, para o presbítero

85 Matines (00h00), Laudes (03h00), Primas (06h00), Terça (09h00), Sexta (12h00), Nona (15h00), Vesperas

(18h00) e Completas (21h00).

86 Lúcifer, expulso do reino de Deus depois da sua rebelião, criou o reino do Diabo, do mal. 87 Historiae adversum Paganos (Histórias contra os Pagãos).

88 No início das Histórias 1. prólogo 3-8, vem referenciado que o bispo Agostinho de Hipona teria dirigido a

Orósio um praeceptum (pedido). Vide, MARTINS, Mário (1950). Correntes da Filosofia Religiosa em Braga,

dos Séculos IV-VII. Porto, p. 198.

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hispânico, todo o processo histórico mantém-se sempre ao nível puramente material e temporal, no qual mesmo as intervenções divinas se concretizam imediatamente no tempo, não sendo de esperar uma recompensa ou um castigo apenas após a morte ou com o Juízo Final. Para Orósio, a lei é simples: se o homem erra ou faz algo de bom, deve-se esperar a reacção positiva ou negativa de Deus, ainda na terra; a própria divindade parece encontrar-se sujeita às forças providencialistas da necessidade90; mesmo o fluir temporal surge marcado pela dicotomia absoluta entre os dois tempos, ante e post Encarnação91, completamente irredutíveis entre si (cfr. Alberto & Furtado, 2000: 32-33).

O tempo desenrola-se segundo uma linearidade pré-estabelecida, tendendo sempre para um fim determinado (o mesmo defenderá posteriormente, no século XIX, Karl Marx, ao perspectivar a evolução da sociedade segundo uma dicotomia de classes de exploradores / explorados, tendendo, inevitavelmente, segundo o mesmo autor, para o mesmo fim, a chegada de uma sociedade sem classes, o comunismo), no qual, por obra da redenção, os homens poderiam salvar-se. Todavia, só o conseguiriam fora da História, no momento do juízo final. Portanto, sem o pecado original e a redenção final, a História seria desnecessária.

O espírito científico absorve o mundo contemporâneo, assim como a fé impregnava o mundo medieval. Por isso, o historiador medieval, ao interrogar a sua fonte, admitia, com frequência, «ser aquela de inspiração divina» (Shotwell, 1940: 352). Efectivamente, na Idade Média, o domínio histórico escapou à análise intelectual, para se tornar objecto de uma teologia aplicada. Assim, a História da humanidade explicava-se como o diálogo entre a liberdade dos homens e a Providência de Deus.

A História era sempre, na Idade Média, uma História universal, de Adão até à época do historiador. Em última análise, «os historiadores medievais fizeram a História de que foram capazes» (Lefèbvre, 1978: 15).

A Criação e a Redenção, como eventos únicos, alicerçaram uma historicidade baseada na continuidade e já não na repetição. Relacionada com este factor, está a concepção da história como una, abrangendo todos os tempos e lugares, perspectiva que remonta ao século III. Surgiram, então, as Histórias Universais, sob a forma de cronologias sincronizadas.

90 Esta posição é completamente oposta à defendida por Agostinho, para quem a actuação da divindade

transcenderia a compreensão humana, que não seria capaz de entender, em toda a sua extensão, as suas decisões: Agostinho, Ciuitate Dei 5. 21. Vide, ELIA, Salvatore (1978). “Storia e Teologia della Storia nel De

Ciuitate Dei”. In Storiografia Ecclesiastica. Congrès d’Erice. Messina, pp. 441.

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Os cristãos apropriaram-se da História Sagrada dos Judeus, o povo eleito, narrada no Antigo Testamento e fizeram dela o centro da sua própria história, estabelecendo uma correspondência cronológica entre os factos que a marcaram e os acontecimentos da história pagã. Homens cultos como Eusébio, bispo de Cesareia (270-339/340 d. C.), realizaram esse trabalho92. Mais tarde, o seu trabalho foi retomado por São Jerónimo, que traduziu o trabalho do bispo de Cesareia para latim e o continuou até 368 d. C.

Santo Agostinho (354-430 d. C.), na obra De Ciuitate Dei, prosseguiu essa concepção, refê-la e modificou-a, agrupando os factos históricos em seis épocas, que começavam em Adão e continuavam com Noé, Abraão, David, o cativeiro da Babilónia e, por fim, com Cristo. A sexta época, que começou com Cristo, duraria até ao fim dos séculos. A sétima seguir-se-ia ao Juízo Final: seria a eternidade.

O mundo árabe também nos legou um importante contributo para a formação da história científica com Ibn Khaldum93 e as suas tentativas de analisar as estruturas dos

grupos sociais e de relacionar diversos domínios da realidade como a demografia, economia e geografia. Para Georges Lefèbvre, «Ibn Khaldum atinge um nível superior ao dos historiadores da Idade Média. Ele é verdadeiramente um historiador sociólogo avant la

lettre» (1978: 47).

Se Tucídides e Políbio procuraram fazer história explicativa e educativa, o carácter da história e da cultura portuguesa quatrocentista teve a mesma tendência moralizante e didáctica: a história constituía um manancial de bons exemplos, dignos de serem imitados. Assim, a história transformava-se em regra de vida virtuosa e era escrita para tirar lições, sendo esta a via seguida por Gomes Eanes de Zurara; será, pois, em consequência, a via que mais nos interessa seguir, explorar e compreender, uma vez que entronca nos objectivos do nosso trabalho e no autor da crónica em estudo.

Na verdade, a história quatrocentista desempenhou uma função formativa e informativa. Formativa no sentido de propiciar aos descendentes dos que se notabilizaram o desejo de prosseguirem a mesma senda de honra; informativa porque exemplo de garantia e experiência para a obtenção do bom sucesso, evitando erros passados. O conhecimento dos sucessos passados facilitava-nos, assim, a compreensão do presente, do mesmo modo que nos capacitava a ajuizar o futuro, além do poderoso reconstituinte moral e doutrinário. O historiador desempenhava, por conseguinte, papel de moralista.

92 Santo Agostinho recusa as interpretações eusebianas acerca do sincronismo entre a fundação do principado e

a Encarnação, e os tempos de felicidade daí decorrentes, já que tal interpretação iria contra a distinção, até ao fim dos tempos, entre as duas cidades, celeste e terrena (cfr. Agost. Ciuitate Dei 18. 46, comentado em Inglebert, Les Romains, p. 493).

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Constatámos que à função formativa da história, acrescentou Gomes Eanes de Zurara a função informativa porque esta facultava ensinamentos utilitários, tanto no respeitante à vida da comunidade, como à do indivíduo e dos assuntos públicos, facilitando, assim, o trabalho dos governantes.

Para o cronista, a narrativa devia fazer menção aos bons feitos do passado e aos fracassos, uns para serem seguidos e os outros evitados, contribuindo desta forma a história para a formação da personalidade e do carácter, com os seus conselhos proveitosos. A história exercia assim uma influência didáctica decisiva sobre os espíritos em formação, induzindo-os a atingir o espírito de perfeição, imitando as acções nobres, o sacrifício, o valor guerreiro e a bondade, constituindo estas acções preciosas lições de conduta moral e heróicas virtudes. Nesta perspectiva, Zurara colocava-se na mesma linha educativa do Leal

Conselheiro94 de D. Duarte, tratado de moral para fidalgos e senhores, e do Livro da

Virtuosa Bemfeitoria de D. Pedro, tendo sempre em mente a educação da nobreza.

O Leal Conselheiro95 foi, em parte, aproveitado por Gomes Eanes de Zurara para a

composição da Crónica da Tomada de Ceuta, como se pode verificar comparando parte do capítulo XXIX desta, onde se refere a notícia da doença que D. Duarte sofreu, sendo ainda infante, quando tinha vinte e dois anos, com a do capítulo XIX do Leal Conselheiro que ali é citado. De igual modo, a notícia contida no capítulo XIII, relativa ao conselho feito por D. João I, quando estava na Ponta do Carneiro, entre Gibraltar e a Aljazira, e à deliberação do mesmo rei, serviu claramente ao cronista para escrever o que sobre o mesmo assunto diz nos capítulos LXII e LXIII da Crónica da Tomada de Ceuta.

Por sua vez, o Livro da Virtuosa Bemfeitoria é uma obra de filosofia moral, dedicada pelo infante D. Pedro a seu irmão D. Duarte, a qual estava concluída antes de 14 de Agosto de 1433. A obra fez parte da livraria de D. Duarte e de D. Afonso V. Está dividida em seis livros e cada um deles em diversos capítulos. No Livro III trata-se do modo como se deve pedir; aí o capítulo V tem por título em que sse mostra que a Deos deuemos offereçer

nossas petiçoões e o capítulo VI intitula-se em que sse mostra que auemos de rrogar aos santos por nossas petiçoões. Estes dois capítulos foram adaptados pelo cronista na Crónica da Tomada de Ceuta, transcrevendo-os verbalmente e quase completamente no capítulo

primeiro que serviu de prólogo à mesma. Este facto explica-se facilmente porque Zurara

94 O Leal Conselheiro dirigia-se à formação da personalidade dos cortesãos e constituía um guia de conduta. 95 Nesta obra, D. Duarte cita várias vezes o Livro das Confissões de Martín Pérez, o qual foi traduzido para

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tinha a seu cargo a livraria de Afonso V e revela bem o alto conceito em que a Virtuosa

Bemfeitoria era tida na corte mesmo depois da morte do infante D. Pedro.

Gomes Eanes de Zurara insere-se, portanto, numa orientação historiográfica de preocupações morais. Segundo ele, «todallas cousas deste mundo falleçem, ssenam a escpritura» (CC: Capitullo Ciiij, 271), ou seja, «toda a nobreza dos homeës fora destroida, sse as penas dos escpriuaães a nom poseram em fim» (Idem: 273), e, «que cousa pode melhor ser entre os uiuos que a escpritura pela qual seguimos direytamente o verdadeiro caminho das virtudes, que é o prémio da nossa bem auemturamça» (Ibidem).

No entanto, sem o conhecimento da escrita, todos os esforços dos que «trabalharam de fazer tam exçellemtes feitos darmas, cuja gramdeza fosse aazo de sua memória seer eixemplo aos que depois uiessem» (Ibidem: Capitullo xxxviij, 118-119), ficariam no esquecimento, «porque sse os homeës semtissem que pollo falleçimento de sua uida, se acabaria toda sua rrenembramça, certamente nom sse poeriam a tam gramdes trabalhos e perijgos, como ueemos que sse manifestamente poõe a quall cousa foy o primçipall aazo per que os primeiros autores se esforçaram a compoer estorias» (Ibidem: 118).

Para Zurara, a história tinha um sentido pedagógico e como finalidade última registar, para não caírem no esquecimento, as qualidades, feitos e virtudes das pessoas, estabelecendo-se assim a aliança entre a literatura e as virtudes heróicas: «Porque toda a primçipall fim dos autores estoriaaes esta no rrecomtamento das uirtuosas pessoas, porque a sua clara memoria per nenhuü perlomgamento de hidade possa seer afastada damte os presemtes, a quall cousa por çerto traz comssigo duas muy proueitosas fijns» (Ibidem: 117). Assim, as narrativas das crónicas transmudam-se em óptimos guias e conselheiros para os jovens, especialmente para os príncipes, furtando-os a influências nefastas e pareceres perniciosos dos vivos, mais aptos a lisonjear que emitir opinião justa e conforme as circunstâncias.

Gomes Eanes de Zurara apresenta também uma orientação aristocrática da história, surgindo esta como um espelho de virtudes para os jovens, onde estes podiam aprender para evitar cometer os erros do passado, evitando deslizes ou quedas, servindo de modelo de orientação para sentirem o desejo de imitar os feitos virtuosos dos seus antepassados: «E desy por que aquelles seus descendentes se esforçassë muyto mais na uirtude pera fazerem cousas dignas de hõra e de louuor, como a memorea dos passados seia exëplo assy pera os presentes como daquelles que ham de vïjr» (CCDM: Cap. I, 3). Todavia, para não influenciar negativamente os jovens, defendia o cronista que a narrativa devia abstrair-se de descrever o lado obscuro da personalidade heróica, ou pelo menos não incidir nessa faceta,

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não escrevendo exaustivamente o que julgasse indigno, nem referindo actos pouco dignos ou personagens pouco favoráveis.

A cultura quatrocentista vivia impregnada do delineamento dum ideal, e Zurara representa entre nós a tendência que se vinha arquitectando na Europa da crónica com finalidade elogiosa, da crónica para o Senhor. A tendência doutrinante invadia o campo da historiografia, e a compostura nos traços dos heróis obedecia a uma dupla finalidade. Quanto mais perfeitos se apresentassem, mais facilmente inflamavam os leitores e, por conseguinte, atingiam a função educativa. Assim, para o cronista, a história tinha um sentido moralizante, e escrever a vida dos homens que se sacrificavam pelo reino, pela religião cristã, pelo rei ou pelo bem comum, era saldar uma dívida para com a memória desses homens virtuosos e heróis, «porque todallas outras cousas traspassam deste mundo senã as bõas obras que hos homëes fazë, seria së rrezão de se nõ por ë rregistro a memoria dos bõs homës que por serviço de Deus e homrra do rregno ë estes feitos virtuosamemte trabalharão» (CCPM: Livro II, Capitolo IIIIº, 544).

Os feitos grandiosos dos homens serviam como exemplos a seguir pelos jovens, casos do Mestre de Avis, do infante D. Henrique, do conde D. Pedro de Meneses ou do conde D. Duarte de Meneses, homens a quem o cronista, com a sua pena, nas suas crónicas quatrocentistas, eternizou a memória. Mas, como veremos ao longo do estudo, Zurara tinha consciência que o historiador podia alterar a história. Mesmo fiel às fontes, o historiador sempre se projecta a si no relato. Como disse Aristóteles, «tal como cada um é, assim lhe aparece o fim» (Ética a Nicómaco 1114 a 32).

Mesmo considerando que o olhar do cronista procurava ser imparcial, temos de ter sempre presente que ficção e realidade histórica podiam andar associadas na crónica zurariana: «To facilitate the examination we might first consider the works as fiction, based upon a historical reality. Eventually, a definition of the Zurarian chronicle must include a statement concerning the balance between these elements. Moreover, any emphasis that has been placed upon the investigation oh historical authenticity of Zurara's works does not signify that such investigation has been definitive» (King, 1976: 42-43).

Assim, ao opinarmos sobre a verdade histórica em Zurara, devemos ter presente, tal como defende Lauro António, «que qualquer versão histórica é sempre parcelar e parcial, o mesmo sucedendo até com a leitura da história porque cada um lê segundo a sua óptica» (2005b: 61). Ora, esta visão parcelar e parcial da História já tinha sido evidenciada no século V d. C. pelo teólogo visigodo Paulo Orósio, o qual, como filósofo da História, evidenciou

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uma das mais importantes categorias do conhecimento histórico: a da relatividade dos acontecimentos, pela sua integração em séries sequenciais mais vastas, onde adquirem o seu significado pleno, com recurso sistemático ao método comparativo, embora não caindo num relativismo que o impedisse de ver em Deus o supremo condutor dos tempos.

Não é nossa intenção, nem tão pouco propósito deste trabalho, fazer aqui a História

da ideia de História. Contudo, tendo-o já feito, embora de forma breve para o tempo

anterior a Zurara, centro desta análise, considerámos de igual forma pertinente, traçar, com a mesma brevidade, o retrato da evolução que se deu a seguir a este cronista, nomeadamente com a revolução científica moderna. Desta forma, parece-nos que tornaremos mais explícitos alguns conceitos e ideias da história que hoje se fazem ou exercem, assim como também da história cultural que está na base deste trabalho.

O período da história a que chamamos “Modernidade”96 caracteriza-se essencialmente pelo despoletar no seu seio daquilo que designamos de revolução científica. Assim, este paradigma newtoniano traz, inevitavelmente, consigo, algumas consequências ou alterações às quais a história (e o conhecimento histórico, obviamente) não passa nem poderia, de forma alguma passar, indiferente. Regista-se uma nítida separação entre o homem e a natureza, entre o sujeito e o objecto, diríamos em linguagem filosófica.

O Universo é entendido como um novo livro escrito em linguagem matemática e o saber científico-matemático é elevado a modelo de conhecimento. Para isto, haviam também contribuído o Humanismo e o Renascimento ao definirem alguns métodos de