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Do nascimento da História às crónicas zurarianas do século

2.5. Gomes Eanes de Zurara: o cronista

2.5.2. Estilo do cronista Zurara

Gomes Eanes de Zurara, literariamente inferior a Fernão Lopes, prolixo, amante de citações e de apartes “filosofantes”. Mas, ainda assim, dotado de qualidades para escrever páginas brilhantes (Mattoso, 1993: 542).

Acabámos de constatar que, relativamente à erudição de Zurara, as opiniões são bastante divergentes. Procuraremos agora, neste ponto, estudar e compreender o estilo do cronista, auscultando o sentir e pensar desses mesmos estudiosos, biógrafos e outros críticos do cronista.

Autores como Damião de Góis, José Correia da Serra e António José Saraiva, entre muitos outros, criticaram ferozmente o estilo do cronista. Ao invés, João de Barros, o 2.º visconde de Santarém, Costa Pimpão ou Reis Brasil, por exemplo, enalteceram e incensaram o brilho e singeleza do seu estilo. Face a estas posições tão díspares, vejamos mais de perto a argumentação de uns e de outros, os que criticam e os que elogiam o seu estilo, os seus dotes e atributos culturais.

Os estudiosos, biógrafos e críticos de Zurara, quase sempre enveredaram pela comparação do estilo de Zurara com o de Fernão Lopes, comparação quase inevitável, dada a sua contemporaneidade, pois viveram ambos no século XV, e a função que exerceram, a de cronistas régios, foi análoga.

Entrando na linha de comparação com Fernão Lopes, costuma distinguir-se, em Zurara, o historiador probo do escritor pesado que não teve a arte de dominar o estilo e cuja obra traduziu um retrocesso literário em relação a Fernão Lopes. Na verdade, a crítica não o tem poupado no exame textual, censurando-lhe as citações e o empolamento que conferiu ao seu estilo. Todavia, e apesar de usar muitas citações e utilizar um estilo empolado e

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hiperbólico, a Zurara dominava-o a preocupação de não causar fastio ao ledor. Fugia, por isso, da prolixidade, querendo que antes o tachassem por defeito, do que por excesso.

À crónica de um povo, como já afirmámos, substituiu Zurara a crónica dos heróis, o que levou António José Saraiva a afirmar que a força popular era depreciada e deliberadamente amesquinhada: «O estilo torna-se grandiloquente, hiperbólico, enfeitado com alegorias e com citações de autores latinos e gregos, pois só à força de retórica era possível levantar o pedestal dos heróis» (1974: 38-39). Mas António José Saraiva esqueceu-se da missão e encarrego de Zurara e apesar do objectivo ser a exaltação de uma figura, não obstou a que o cronista dedicasse páginas inteiras ao sentimento das pessoas, dos próprios inimigos, nem escondesse a sua simpatia e sensibilidade pelos pobres, pelos escravos e pela miséria humana: «Zurara não omite inteiramente as [qualidades] do inimigo, nem alguma simpatia ocasional pelos pobres camponeses espoliados» (Pimpão, 1959: 277).

O certo é que Zurara emprega um estilo muito mais ornado de figuras literárias do que o de Fernão Lopes. As suas obras revelam uma prosa afectada, com uma certa correcção sintáctica que já dispensa um grande número de anacolutos. Tem passos bem descritos mas o seu pior defeito consiste no grande número de citações de autores gregos e latinos com que salpicou a sua prosa. As suas melhores descrições são aquelas em que ele próprio se comove e se emociona como as páginas dedicadas à partilha dos escravos, em Lagos158 (cfr. Fiúza, 1966: 79).

O estilo de Zurara, recheado de hipérboles, de citações dos autores antigos, de alusões à mitologia e à História antiga, deixando ouvir a cada passo a exaltação dos barões

assinalados, que João de Barros e Luís de Camões, no século XVI, saberiam fazer de

maneira mais sublimada, como não podia deixar de ser, estava de acordo com as preocupações de vida requintada da corte de D. Afonso V que, a exemplo da corte dos duques de Borgonha, se adornava já com as primeiras influências culturais da antiguidade greco-latina. Segundo Rui de Pina, este [D. Afonso V] foy o primeiro Rey destes regnos,

que ajuntou bõos liuros e fez liuraria em seus paços159. Também Pedro Maris nos Diálogos

de vária história160 transcreveu quase textualmente as mesmas palavras de Rui de Pina. Na preocupação de acumular adornos e figuras de estilo, Zurara antecipou-se à arte barroca, como aliás toda a escola flamenga dos Grands Rhétoriqueurs de finais do século

158 In Crónica dos Feitos de Guiné, caps. 24.º - 26.º.

159 Crónica del rei D. Afonso V, Cap. CCXIII, na CIHP, tomo I, p. 608. 160 MARIS, Pedro (1598). Diálogos de vária história, fol. 193, v. Coimbra.

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XV161. Preferiu a frase longa, com largo uso da subordinação conjuncional ou pronominal relativa, e sob este aspecto pertenceu a uma fase nova da arte literária, comparada com Fernão Lopes: a fase, já assinalada por D. Pedro e D. Duarte, «em que a expressão escrita predomina sobre a expressão oral» (Saraiva & Lopes, 2001: 139).

Na obra de JoséCorreia da Serra consta uma relação de dados biográficos do cronista, bem como algumas apreciações críticas das obras zurarianas. Nesses juízos de valor, não deixa o citado autor de elogiar francamente as qualidades do histórico, enquanto critica alguns aspectos do seu estilo que, no seu entender, não era uniforme, parecendo duas diversas vozes: «A sua narração ordinária é singela, cheia de bom senso e não falta de elegância; mas, de tempo em tempo, lembra-lhe a agreste retórica, que tão tarde tinha estudado e ostentava, seja-me lícito dizer assim, um estilo de falsete. O primeiro era o que a natureza lhe tinha dado, o último era fruto dos seus mal sazonados estudos» (1792: 210). Contudo, «estes mesmos defeitos são agora interessantes para nos dar uma ideia do saber e do gosto daquele século, e das suas frases podem os estudiosos da nossa língua tirar informação do passado e algum proveito para o futuro» (Idem).162

Ao comentar as palavras de José Correia da Serra, Veríssimo Serrão afirma que o abade pressentiu que havia dois estilos na obra de Zurara:

Um, sem dúvida agreste, quando procurava dissertar sobre temas gerais e buscava o testemunho de modelos literários; outro, de leitura agradável, quando reconstituía cenas históricas em que a vivência das personagens o obrigava à concisão literária. Havia, pois, duas tendências literárias no escritor: a que se prendia com a teorização dos factos e a que respeitava à narrativa concreta, dando origem a uma simbiose de estilos que a crítica nem sempre procurou compreender (1977; 1989: 36).

Sem o forte poder dramatizador de Fernão Lopes e também desprovido, por um lado, do seu senso crítico e, pelo outro, da sua elegante simplicidade narrativa, Zurara usava, efectivamente, um estilo retórico empolado, com citações de numerosos autores da antiguidade na demonstração de uma erudição nem sempre oportuna, dando a ideia que desejava revelar-se muito culto e estudioso, tornando assim a leitura, em muitas páginas, demasiado monótona.

161 Vide, ZUMTHOR, Paul (1978). "Anthologie des Grands Rhétoriqueurs". In Paul Zumthor (ed.). Paris:

Union Générale d´Éditions.

Para aprofundar este tema consulte-se ainda Georges Chastellain (1404 ?-1475), Jean Molinet (1435-1507), Olivier de la Marche (1425-1502), Jean Meschinot (1422-1491), Octovien de Saint-Gelais (1468-1502), André de la Vigne (v. 1470- ap. 1515), Jean Robertet (sd.-1502).

162 Maria Teresa Brocardo afirma: «A conclusão desta apreciação parece-me bem elucidativa do louvável

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O estilo de Zurara, nem sempre fluente, «tinha algumas das características do gótico decadente, como a sobrecarga do ornato (...), e anuncia a Renascença por certa majestade, pelo gosto da frase longa e pelo frequente uso das conjunções subordinativas» (Sintra, 2002: 41). Porém, e contrariamente a Diogo de Sintra, Reis Brasil considera que sob o ponto de vista literário, as obras de Gomes Eanes de Zurara gozam de um fundo de viva e intensa expressividade, sendo bem notória a sua inegável originalidade, o que levou Mateus Pisano a afirmar que o cronista bem mereceu o cognome de Magnus Historiographus e que João de Barros o considerasse um homem diligente, com estilo claro e vivaz.

Reis Brasil vai mais longe ao defender que se deve a Gomes Eanes de Zurara o melhor que se escreveu, sob o ponto de vista histórico, no século XV:

Falando do estilo de Zurara disse o Lívio [João de Barros] português se alguma cousa há bem escrita das crónicas deste tempo, é de sua mão; e Góis que ele usava no escrever de algumas palavras e termos antigos, com razoamentos de prolixos e cheios de metáforas ou figuras, que no estilo histórico têm lugar.

Na frase de João de Barros vai exagerado encarecimento, e nas palavras de Damião de Góis há calculado cinismo e menosprezo. Se o seu estilo nem sempre lhe cai dos bicos da pena fácil e natural, se o colorido da frase desaparece, às vezes, num traço de erudição maçuda, não há, todavia, razão para o alcunhar de prolixo e sempre afectado. Nos preciosos livros que nos legou está escrito o seu elogio (1992: 19).

Por sua vez, Vieira de Meireles acrescenta que se o colorido da frase desaparece às vezes num traço de erudição maçuda, não há todavia razão para o alcunhar de prolixo e sempre afectado.

À semelhança do abade José Correia da Serra, para quem o cronista falava a “duas vozes”, notámos que, de uma maneira geral, nas crónicas zurarianas, parece haver divergência sensível no estilo de uma e de outras (Crónica da Tomada de Ceuta e Crónica

da Guiné, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses e Crónica do Conde D. Duarte de Meneses), mais elegante na Crónica da Tomada de Ceuta do que nas restantes:

Será talvez por constituir o texto daquela obra reprodução mais exacta do autógrafo de Zurara, por isso, não estranha o comentário de Góis, feito um século depois de escritas as obras de Zurara e ao cabo de um período durante o qual a língua portuguesa se fora ensaiando para moldes definitivos. Por outra parte, as leituras de “escrituras antigas”, das “crónicas e livros historiais” tinham de produzir a sua natural influência no seu estilo, aliás nem sempre definível, nestes nossos tempos, pelos textos existentes, por incertos, à falta dos respectivos autógrafos, e porque às vezes representarão transcrição

- 163 - de documentos ou memórias redigidas anteriormente e, tantas vezes, citadas por Zurara (Dinis, 1949b: 51-52).

Numa tentativa clara de atenuar algumas das críticas mais agudas ao estilo de Zurara, o mesmo autor relembra a existência de alguns códices das obras do cronista com variantes notáveis no texto e até na ordem e recorte dos capítulos, o que documenta sobejamente a liberdade com que foram tratados, pelos séculos fora, os seus manuscritos. Com efeito, em todas ou quase todas essas obras, parece haver alterações ou adulterações póstumas, o que nos traz à ideia a possibilidade de não terem sido só as Crónicas de D. Afonso V e de el-rei D. Duarte que sofreram a joeira do cronista Rui de Pina ou de idêntico e atrevido sucessor, adaptador ou copista, assunto que retomaremos, mais pormenorizadamente, ao longo deste estudo.

Alexandre Herculano acha no estilo de Zurara inflexibilidade e ausência de graças, enquanto o 2.º visconde de Santarém o considera simplesmente admirável. Mas, critique-se ou não Zurara, a verdade é que o seu estilo está intrinsecamente associado ao ideal de cavalaria vigente na época, sendo este um modelo real de orientação de vida para o cronista, o qual captava sobretudo a valorização de um heroísmo plasmado na honra pelo combate, legitimado por um mosaico de premissas do qual se destacava a batalha contra o infiel, em nome do serviço a Deus.

Zurara é, pois, um escritor de cariz medieval, apiedado das desgraças alheias, mesmo as dos inimigos, e em cujo espírito, como já anotámos, irrompem os alvores humanísticos da era renascentista e da modernidade, uma vez que procura filiar o seu discurso num equilíbrio entre pormenor e concisão, entre a justiça e a verdade. De facto, verifica-se no cronista a intenção de aproximar a escrita de uma concepção de modernidade, só prejudicada pelos frequentes pruridos de erudição e abuso de muitas citações e alegorias, usando um estilo empolado e hiperbólico, abusando das frases longas, que o ofuscam e tornam, por vezes, maçador.

Goste-se ou não do estilo de Zurara, há, contudo, uma característica que ninguém ousa questionar-lhe: é o seu firme propósito de dizer sempre e apenas a verdade. Mesmo com enormes prejuízos pessoais, «e o que peor he que taaes uy eu queixosos de mÿ que eu sabya certo que nom soomëte nõ erã dignos de honra nem de louuor, mas ante de doesto e reprensõ» (CCDM: Cap. I, 4), não hesita nos elogios e censuras. Esbanja louvores a quem considera merecedor, como os príncipes de Avis e os Meneses, enquanto outros são

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vituperados sem apelo, como D. Fernando, irmão de Afonso V, o que revela bem a sua coragem, carácter e rectidão, e um valor incontestável como cronista.

Apesar de tudo, o seu estilo revela já traços da cultura clássica e erudita do Renascimento, por vezes sob a forma de um discurso excessivamente afectado, o qual, apesar de historicamente rigoroso, não faculta ao seu trabalho uma visão de conjunto.

Em rigor da verdade, há que ter bem presente que o cronista se encontrou muitas vezes embaraçado por vários conflitos de interesses: registar a História, satisfazer o rei e saciar a sua ambição enquanto escritor.