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Do nascimento da História às crónicas zurarianas do século

2.2. A herança da Grécia Clássica

2.2. A herança da Grécia Clássica

Perdem-se no tempo as raízes mais profundas da História. Mesmo sem aludir à memória antes da escrita – na pré-história – diversos povos ou grupos humanos recordaram ou transmitiram algo do seu passado colectivo.

Para nós, ocidentais, a História foi criada pelos Gregos. Com efeito, é comum acentuar-se o papel da Grécia Clássica na formação do espírito historiador e na construção do pensamento racional. Três grandes nomes dominaram, como é sabido, a historiografia grega: Heródoto, historiador das guerras Médicas, em meados do século V a. C., Tucídides, actor e historiador da guerra do Peloponeso, nos finais do século V a. C. e Políbio, que escreveu no século II d. C., depois da conquista da Grécia pelos Romanos.

Até ao século V a. C., a interpretação do passado fazia-se pela projecção no presente de mitos que tinham como função explicar a formação da realidade pela intervenção de seres sobrenaturais. Relativamente ao nascimento da História, o historiador Georges Lefèbvre aduz o seguinte: «os primeiros historiadores são provavelmente poetas, existindo assim uma Proto-história da qual dificilmente deslumbramos alguns traços através dos mitos e das lendas (…). Um belo dia aparece o papiro, o pergaminho, o papel: surge o manuscrito, nasce então a história» (1978: 13-14).

O pai da História73 no Ocidente foi Heródoto. Encontrando-se a História ainda nos inícios da fase pré-científica, Heródoto não podia ter sido – e de facto não foi – um historiador, na moderna acepção da palavra, pelo facto de, no seu programa de pesquisa, a curiosidade por vezes sobrelevar a lucidez74, nem sempre distinguindo o anedótico do histórico. Heródoto concebeu o discurso histórico não somente como uma relação, mas ainda como uma consequência de factos em si interessantes, cujo vínculo com o essencial podia ser muito ténue.

No seu esforço de interpretação dos factos que narrava, Heródoto fazia intervir as intenções ou conflitos dos deuses. Mas ao mesmo tempo, alargava a sua pesquisa a tópicos tão variados como a geografia, a história natural, a etnologia e a religião, pelo que também já foi considerado o pai da antropologia» (cfr. Myres, 1966: 43-73). Tendo em conta os

73 Expressão utilizada por Cícero e ainda em voga. Vide, De Legibus, I.5. Maria Helena da Rocha Pereira,

“Estudos de História da Cultura Clássica”, I vol.: Cultura Grega, 5.ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 249, nota 109. O atributo surge também, por exemplo, em Myres, John L. (1966). Herodotus, Father

of History. Oxford: University Press.

74 Vide, GUSDORF, Georges (1985: 84-86). Les sciences humaines et la pensée occidentale, II: Les origins

des sciences humaines (Antiquité, Moyen Age, Renaissance). Paris: Payot. Este autor inclui Heródoto entre os

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antecedentes, a sua época, século V a. C., e o contexto em que viveu, foi de alguma forma inovador, quanto à finalidade75, ao métodoe à utilização de novos conceitos.

Hérodoto usou ainda um certo número de conceitos-chave que, daí em diante, dominaram todas as meditações sobre a História: conceitos de oposição política, de diferenciação cultural, de solidariedade entre nações da mesma língua e da mesma religião, de afrontamento inelutável e de destino de um povo.

Apesar de apenas uma geração o separar de Heródoto, Tucídides (460-395 a. C.) atingiu um ponto mais alto. Com Tucídides, não só a consciência histórica se tornou mais sólida, como o próprio ofício de historiador se aperfeiçoou, teórica e metodologicamente, isto porque a História, ainda essencialmente narrativa com Heródoto, tornou-se mais explicativa, o mito cedeu lugar ao logos e a cronologia adquiriu maior precisão, tal como afirma Maria Cândida Proença, para quem os historiadores gregos, «compõem as suas narrativas seguindo a ordem cronológica e a preocupação literária e oratória não lhes é de maneira nenhuma estranha» (1989: 23).

Tucídides fugiu, assim, das interpretações maravilhosas procurando uma inteligibilidade assente na formação objectiva: «Esboça, à sua maneira, um sistema explicativo esforçando-se por relacionar os acontecimentos e por confrontar as decisões com as possibilidades» (Idem: 27), a tal ponto que foi considerado «fundador da história explicativa» (Chatelet & Bury, 1962: 407), hierarquizando as causas, pelo que distinguiu as causas verdadeiras, profundas ou reais das causas aparentes, exteriores ou acidentais, no que seria um precursor de Aristóteles76.

Tucídides visava acima de tudo a verdade histórica, prescindindo do fabuloso na sua narrativa, ainda que com o risco, aliás conscientemente assumido, de a tornar menos atraente (cfr. Ferreira, 1983: 440).

Apesar de estarmos perante uma história já apenas humana, «porque depurada dos tradicionais aspectos mitológicos» (Pédech, 1964: 56-59), permitiu tornar o discurso histórico mais objectivo e concreto, com aspectos positivos, mas ainda não se considerando verdadeiramente científica, dadas algumas insuficiências que apresentava: «datação imprecisa, confusão entre o verdadeiro e o inverosímil, secundarização do económico- social da guerra, perante o político» (Chatelet & Bury, 1962: 408).

75 Maria Helena da Rocha Pereira, op. cit., I vol., p. 250, destaca em Heródoto uma tríplice finalidade:

«perpetuar o passado; dar glória; encontrar a causa da guerra».

76 Aristóteles adoptou um esquema causal mais complexo, ao distinguir quatro tipos de causa – material,

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Para os gregos, a História descrevia dominantemente o passado recente, incidindo o trabalho dos historiadores, sobretudo, na acribia, isto é, na observação directa e na depuração do testemunho oral (principalmente com Tucídides). Todavia, a partir do século IV a. C., «uma tríplice tentação – retórica, política e ética – desvia Clio77 da via traçada por Tucídides» (Carbonell, 1981: 16).

A conhecida máxima do sofista Protágoras, “O homem é a medida de todas as coisas”, como observam François Chatelet e Bagnell Bury, «reflecte-se na concepção de história, valorizando a acção humana, particularmente de iniciativa individual, a qual foi seguida mais tarde pelos humanistas» (1962: 241).

Pensadores como Platão, Aristóteles e alguns sofistas, contribuíram com algumas mais valias para o conhecimento histórico. Em Platão, segundo Amado Mendes, «poderá detectar-se uma certa filosofia da história, embora difusa por vários textos» (1987: 32).

Platão construiu uma política ideal do devir porque não tinha conseguido melhorar as cidades existentes. Aristóteles, por sua vez, elaborou uma sociologia comparada, uma vez que era impossível acreditar numa inteligibilidade da História e Isócrates situou o discurso histórico no plano da opinião, porque procurou um compromisso entre o movimento real e a tradição. Este autor, ao defender que a historicidade humana se impunha como um facto, sendo suficiente descrevê-la, surgiu como um precursor remoto dos historiadores da escola metódica78, cujo aparecimento se verificaria em finais do século XIX.

Tucídides e Políbio (208? -122? a. C.) não foram simples narradores pois procuraram fazer História explicativa e educativa79. Políbio teve a ideia de uma História universal e encontrou o sentido para a mesma naquilo que designou por ciclos. Com esta habilidade, Políbio transformou a História numa ciência, uma vez que a História descobriu a lei80 que presidiu à vida das sociedades.

Seguindo as orientações de Tucídides, três séculos mais tarde, Políbio ensaiou análises quase sociológicas das instituições. A sua História foi a última obra da inteligência

77 Clio, musa da História, filha de Júpiter e Memória, tinha como atributos a trombeta heróica e a clepsidra.

Tendo reprovado Afrodite a sua paixão por Adónis, foi punida pela deusa, que fez nascer em seu coração um amor irresístivel por Píero, rei da Macedónia. Teve um filho desse rei, Jacinto, que foi transformado em flor.

78 As profundas diferenças entre a escola metódica e a anterior, positivista, foram intuídas por G. Lefèbvre,

ainda que sem lhes aplicar designações diversas. As origens desta escola remontam a Jean Mabillon (final do século XVII) e à historiografia erudita setecentista e da primeira metade de Oitocentos, caracterizada por uma pesquisa exaustiva das fontes (o que na prática se torna impossível) e pela objectividade, de igual modo impossível, daí os ataques que se seguem do grupo dos Annales.

79 Explicativa porque procuraram descobrir as forças naturais e humanas que conduziram os acontecimentos.

Educativa porque escolheram, no conjunto dos factos, os mais favoráveis à instrução do homem de Estado. A história foi para ambos outrossim crítica. Assim, foram precursores da crónica zurariana, como veremos.

80 Esta lei permitiu uma certa previsão, que é o que caracteriza qualquer ciência experimental. Foi nisto que

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grega e a primeira da historiografia romana, que tanto se comprazia em narrar as conquistas e as virtudes. Políbio foi o primeiro a tentar conjugar, deliberadamente, o saber histórico81 com a inteligibilidade filosófica ao que já se chamava, «intelectualismo histórico» (Pédech, 1964: 87).

Os estóicos82 indicaram aos homens a aplicação do direito natural à realidade, e assim surgiu um evidente sentido para a História: o de impor à matéria bruta, à natureza, as regras que a razão formula.

Na época romana, o Ocidente foi pouco a pouco submerso pelo espírito primitivo, pelo misticismo e pela magia do oriente. Apesar de Tito Lívio ter sido considerado pelos homens do Renascimento o maior dos historiadores latinos, também é um pragmático: enaltece a História lendária da República, não parecendo muito preocupado com a explicação (cfr. Lefèbvre, 1978: 38).

Em jeito de conclusão, poderíamos dizer que o homem das civilizações clássicas, grega e romana, não conferiu um valor ontológico ao acontecimento histórico, isto é, não se sentia como um ser que fazia e que era feito pela própria História. Assim, só no lugar do sagrado, o mundo profano pode ser suportado, pelo que somente o mito serve de paradigma do tempo profano. Ora, por mito, na concepção clássica, entende-se uma narração cosmogónica da luta entre deuses ou princípios contrários, de onde se processa a transformação do Caos ao Cosmos, evocando, portanto, um acontecimento in illo tempore e, consequentemente, representa um precedente exemplar para todas as acções, que depois repetirão, ritualista e simbolicamente, esse acontecimento.

Pautado pela irrupção do sagrado, o tempo não é homogéneo e exprime a nostalgia da Origem (o mito platónico do eterno retorno, representado no Ouróboro), recordado como paraíso perdido, cuja representação só é possibilitada pelo recurso ao rito.

Traçado este breve olhar sobre a evolução da História herdada da época clássica, no sentido de garantir e dar uma sequência cronológica ao estudo, penetremos agora no período histórico medieval, aquele em cuja última fase viveu e se insere o cronista Gomes Eanes de Zurara.

81 Merecem destaque especial os sistemas relacional e causal e o uso dos métodos apodíctico (adj. que

convence, necessariamente verdadeiro) e comparativo.

82 Escola filosófica fundada por Zenão de Cício, (336-264 a. C.) e que preconizava a indiferença à dor, a

firmeza de ânimo oposta aos males e agruras da vida. Austeridade na virtude; insensível; imperturbável. Para os estóicos, ao fatalismo do devir natural, opõe o homem a coragem de aceitar o destino inexorável. O ideal do sábio estóico é o «Sofre e abstém-te», enunciado por Epitecto, que permitia alcançar a indiferença

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2.3. Idade Média: da história ao serviço da fé à história moralista e