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«E deuees ajmda de comsijrar como todallas homrras deste mundo

Capítulo 1. Da Reconquista cristã às conquistas marroquinas da dinastia de Avis

1.2. A viragem geoestratégica e política da dinastia de Avis nos séculos XIV e

1.2.2. A Conquista de Alcácer Ceguer

Os Portugueses têm tendência a pôr entre parênteses o seu tempo

africano, iniciado com a conquista de Ceuta, em 1415, continuado durante

século e meio com implantação custosa nas costas de Marrocos e terminado em tragédia – a única assumida como tal no tempo eufórico do destino português, nas areias marroquinas de Alcácer Quibir (Eduardo Lourenço, 1999).

Pelos motivos acabados de explanar e devido à pressa que a proeza exigia, a expedição a Tânger em 1437 foi organizada em pouco tempo, sendo o número de soldados e armamento reunido manifestamente insuficiente para a envergadura de tão arrojada façanha. Nem o

59 A nova bula de Nicolau V, a Romanus Pontifex, de 8 de Janeiro de 1455, concede a D. Afonso V todos os

territórios descobertos, ratifica a bula anterior e alarga os direitos anteriores até aos índios (etíopes ocidentais, como eram conhecidos na época os habitantes da Guiné).

60 Em Toledo, no dia seis de Março de 1480, ratificou-se o Tratado de Alcáçovas e Portugal abandonou

definitivamente qualquer pretensão sobre as Canárias.

segredo do empreendimento se acautelou, perdendo-se assim a vantagem da surpresa: «E a terceira cousa que se no conselheiro rrequere he grande segredo. Por quanto o rromprimento do conselho traz desfazimento da obra» (CC: Capitullo x, 32), «por que de trimta e huüa uirtudes que ao prinçipe som apropiadas, mujto lhe comuem que seia cauteloso» (Idem: Capitullo xij, 38). Mas não havia tempo a perder face às pretensões castelhanas e à bula que o Papa Nicolau V concedeu a D. Duarte em 1436.

Este monarca, à frente dos destinos do reino desde 1433, ano da morte de seu pai, não participou directamente na preparação do empreendimento, secundarizando o evento, pelo que os expedicionários de 1437 não estavam muito motivados para uma guerra de cuja dimensão não comungavam, o que não tinha sucedido com a preparação da conquista de Ceuta, onde o próprio rei D. João I desempenhou papel activo e preponderante.

O infante D. Henrique comandou um grupo e o infante D. Fernando comandou o outro. A estratégia foi mal concebida desde o início e o desfecho do assédio a Tânger traduziu-se por uma pesada derrota, tendo os Portugueses sido obrigados a retirar-se, depois de deixarem o infante D. Fernando prisioneiro, como refém da restituição de Ceuta, e a quem «os próprios mouros tinham por santo, ou antes, diziam que o seria, se não fosse cristão. A santidade inferiram-na eles, de três sinais positivos que observaram no infante: a sua virgindade, o não ter mentido nunca, e o viver meses na prisão ajoelhado sempre» (Martins, 1993: 191).

A derrota militar em Tânger (Tandja) e a prisão do infante Santo fizeram da vida de D. Duarte um verdadeiro martírio, calvário e suplício, na incerteza de entregar Ceuta e salvar o irmão, ou não entregar Ceuta e deixá-lo morrer. Esta situação arrastou-o para uma morte prematura, em 1438, um ano após o desastre de Tânger: «E no ano de XXXVIII (1438) se finou deste mundo o mui virtuoso el-Rei D. Eduarte, IX dias de Setembro, em Tomar, por cujo falecimento se seguiram no reino mui grandes discordias» (CG: Cap. XI, 63).

Após a morte do rei D. Duarte levantaram-se os problemas da sucessão62 porque o seu filho, o futuro Afonso V, tinha apenas seis anos de idade:

Seguyranse despois grandes deuisoões no regno por causa do regimëto. E isto por que o Rey finado leixara o encarrego de todo aa Raynha sua molher, o que pareceo caasy a todos contrayro aa boa rezom .s. que huü tal regno e em que aaquelle týo taaes tres principes auya como eram os Jffantes dom Pedro e dom Henrique e dom Joham, ouuessem de ser Regidos por molher dado que uertuosa fosse (CCDM: Capitulo .xxv., 44-45).

62 Tratou-se da verdadeira guerra civil desencadeada pelo partido da Rainha viúva D. Leonor, à frente do qual

Embora D. Duarte tenha acautelado a regência do reino entregando-a, por testamento, à Rainha Dona Leonor, não foi cumprido o seu desejo por oposição de alguns notáveis que entenderam que D. Duarte «nan podia leixar este cargo de reger: ca este poder demlege Regedor do reino era soomente ao Reino, e aos três Estados dele reservado».63

Foi sob um clima de tensão que os trabalhos das Cortes de Torres Novas se iniciaram em inícios de Novembro 1438:

Fezerom sobre ello cortes ë Torres Nouas [1438] onde foy grande deuisam, por que o pouoo de todo nõ querya consentyr na uoõtade do Rey finado quanto era aa parte do regimento, e os fidalgos requeryã o contrayro, com os quaaes era o cõde de Barcellos [D. Afonso] filho bastardo delRey dom Joham. E finalmente foy acordado que a Raynha fosse titor e curador dos filhos. E que o Jffante dom Pedro teuesse carrego da defensom dos Regnos e o cõde dArrayollos da justiça. E de todo o al que per teecesse ao regimëto do Regno a Raynha soomente o mandasse (Idem: 45).

Longe estava o estado de paz entre os dois cunhados e apesar desta co-Regência, os desentendimentos acumulavam-se. A Rainha viúva iniciou uma intensa actividade epistolar, enviando cartas64 aos seus partidários, para «que nam vyessem aas Cortes, e se escusassem

como melhor vyssem: e enviassem a ella procuraçoões abastantes com suas protestaçoões de nom outorgarem, nem obedecerem em cousa que se nelas acordasse»65. Ao mesmo tempo escrevia ao infante D. Henrique tentando incompatibilizá-lo com seu irmão.

D. Pedro fazia um controlo apertado a D. Leonor, viúva de D. Duarte, vigiando todos os seus movimentos, ao mesmo tempo que delineava um plano de unidade política da nação, procurando cativar os partidários da cunhada. Aliou-se ao condestável de Castela, D. Álvaro de Luna, procurando salvaguardar-se de eventuais ataques dos infantes de Aragão, familiares directos da cunhada. Esgotadas as possibilidades de entendimento, o regente preparou um ataque às fortalezas do Crato, fugindo a Rainha na companhia do Prior do Crato, entregando o infante D. Pedro, ao infante D. João, seu irmão, o castelo.

Foi neste clima de intrigas e conspirações mútuas que nas Cortes iniciadas em Lisboa, em 1439, foi posto à frente do País, como regente, o infante D. Pedro, homem de 47 anos, muito rico e muito culto. A sua experiência, aliada à sua prudência, marcou uma pausa nas

63 PINA, Ruy de (1790). “Chronica do Senhor Rey D. Afonso V”. In Collecção de Livros Inéditos de História

Portugueza. Pub. da Academia Real das Sciencias de Lisboa por J. C. da da Serra, Tomo I, cap. XLI, p. 205.

64 Alguns destes destinatários foram Prior do Crato, D. Duarte de Bragança, D. Duarte de Meneses, Fernão

Coutinho, Gonçalo Pereira, Álvaro Pires de Távora, Rui Vaz Pereira, Fernão Soares, Diogo Soares de Albergaria, Luís Álvares de Sousa, Gomes Freire de Andrade, Pêro Gomes de Abreu, Leonel de Lima, D. Sancho de Noronha, Vasco Fernandes Coutinho, entre outros. A maior parte destes nobres assumirão o partido do rei D. Afonso V contra o infante D. Pedro, durante a crise de Alfarrobeira.

“almogavarias” e guerras no Norte de África. Todavia, o regente não conseguiu resolver o dilema relativo à problemática da eventual restituição ou não de Ceuta, em troca da libertação do irmão, até que o infante D. Fernando sucumbiu, em 1443, na masmorra de Fez.

Doravante, aos argumentos favoráveis à Expansão portuguesa para Marrocos e à acção do papa Eugénio IV, o qual, nesse mesmo ano de 1443, ressalvando possíveis direitos da Coroa de Castela, interveio favoravelmente sobre a empresa portuguesa de evangelização africana (nova bula Rex Regum), somavam-se os votos daqueles que pretendiam vingar a humilhação de 1437 e a morte do infante Santo.

Com a chegada ao trono, em 1447, de D. Afonso V, dando fim à regência de D. Pedro, a guerra em Marrocos voltava a tornar-se possível, dadas as inclinações bélicas do novo monarca. Por sugestão de seu tio, o infante D. Henrique, D. Afonso V resolveu conquistar Tânger, tentando evitar que se repetisse a derrota sucedida em 1437. Para esta empresa foram utilizados os meios reunidos para a cruzada pregada pelo Papa Nicolau V, após a tomada de Constantinopla pelos turcos em 29 de Maio de 1453, às mãos de Maomé II, que alvoraçou a Europa cristã de lés a lés, cruzada que não chegou a realizar-se.

Caberia ao sucessor do Papa Nicolau V, o Papa Calisto III, eleito em Roma a 8 de Abril de 1455, tentar levar a cabo a tarefa da cruzada e demover os soberanos e príncipes cristãos a tomarem de facto as armas contra os infiéis, até porque as tropas de Mohamed II avançavam para Norte e estavam às portas da Europa. Assim, em 17 de Fevereiro de 1454, o Duque de Borgonha, e mais uma centena de cavaleiros, no conhecido “Serment du Faisan”, juraram ir combater os infiéis. No Outono de 1455, o imperador Frederico III e, em Novembro de 1455, Afonso V, rei de Aragão, tomaram a cruz da guerra santa. Carlos VII, rei de França, comprometeu-se também a tomar parte na cruzada.

Nessa altura circulava nas cortes europeias a notícia de que Afonso V de Portugal tomaria pessoalmente parte na cruzada com uma armada portuguesa, movido talvez, como opina D. Charles-Martial de Witte66, pelo convite do cunhado67, o imperador Frederico III.

Ora, e quando se afigurara mais difícil, mas necessário, reunir uma armada para atacar os Turcos, D. Afonso V preparou-se activamente para a cruzada: «Porque de sua Real condiçam era pera honrosos feitos muy inclinado (...), elle com grande allegria e muita devaçam, e com todallas pessoas pryncypaes do Reyno aceytou a dita Cruzada. Na qual se offereceu servir com os ditos doze mil homens por huum anno á sua custa, como dantes

66 Les Bulles pontificales et l`Expansion portugaise au XV siècle, in “Revue d`histoire ecclesiastique”, t. XLVIII

(1953), t. XLIL (1954), t. LI (1956), t. LIII (1958). Lovaina.

prometera, pera que tinha d’ajuda muytas armas que comprara, e navios que mandara fazer, e asy outras muitas cousas» (Pina, 1790: 195).

No ano em que o Papa Calisto III, 1456, enviou D. Álvaro Afonso, bispo de Silves, seu legado a latere em Portugal e no Algarve, ao nosso país, para arranjar donativos e apoios económicos junto da população para ajudar na cruzada, D. Afonso V efectuou diversos preparativos e sondagens diplomáticas e fez votar nas cortes de Lisboa a concessão de três pedidos e um empréstimo para financiar a expedição contra os turcos: «Com o grande desejo e louvado alvoroço, que ElRey tinha pera esta santa viagem, mandou novamente lavrar d’ouro fino sobido em toda perfeiçam, a moeda dos cruzados, em cujo peso e nam preço, mandou sobre todolos Ducados da Cristandade acrescentar dous graaõs por tal, que per terras tam alongadas, e naçooês tam dyversas como as perque esperava de passar, corressem e se tomassem sem alguma duvida» (Idem).

Face às exigências monetárias da guerra, D. Afonso V mandou cunhar novos cruzados, passando assim de uma política de quebra de moeda, desvalorizada mais de 300 vezes no reinado de D. João I para a cunhagem dos cruzados de D. Afonso V, com peso superior ao seu valor nominal. Já com o novo cruzado em circulação, Afonso V preparou uma frota que, junto à esquadra do Papa, defrontou os Turcos em Metellino mas como essa acção não prosseguiu, o monarca português entendeu, aproveitando os recursos humanos e logísticos já preparados, continuar a guerra no Magrebe.

A desgraça e derrota de Tânger estavam frescas na memória dos Portugueses, pelo que o monarca português ambicionava conquistar Tânger. O rei convocou o seu conselho para aí se debater essa intenção. Opôs-se a isso o infante D. Henrique, cuja opinião prevaleceu, porque a tentativa do rei de Fez contra Ceuta, em 1458, e os incessantes pedidos de auxílio do conde de Odemira, confinante dessa praça, fizeram tomar diferentes medidas. Assim, era mais prudente conquistar Alcácer Ceguer, por ser mais fácil de tomar e porque Alcácer servia aos Mouros de base nas operações contra Ceuta.

Apressaram-se os preparativos e convocaram-se os fidalgos e os besteiros de Setúbal, Porto e Lagos. Uma peste em Lisboa atrasou ainda a expedição durante algum tempo, mas a 30 de Setembro de 1458, a frota de el-rei D. Afonso V, de 94 navios, saiu de Lisboa para Lagos, onde o infante D. Henrique organizava o contingente do sul. Nos começos de Outubro juntou-se-lhes em Lagos o conde de Odemira com 4 navios. Pouco depois chegou também a esquadra do Porto, sob o comando do Marquês de Valença. Finalmente, a 17 de Outubro, saiu de Lagos a grande frota de 220 velas, com 25000 homens de guerra, sob o comando de Afonso V que ia na nau Santo António.

D. Afonso V, após a conquista de Alcácer Ceguer, desembarcou em Ceuta e ficou constrangido entre a grandeza desta e a pequenez da nóvel praça portuguesa. Tal comparação suscitou, certamente, desejos de emulação com os feitos de seu avô D. João I e foi segura promessa de porvir.

A conquista de Alcácer Ceguer foi levada a cabo como estratégia geográfica e militar, servindo de ponto de partida e base de apoio para outras conquistas futuras, mais importantes e rendíveis, como a ambicionada Tânger, espinho cravado na memória colectiva dos Portugueses, após o martírio do infante Santo, por razões de Estado.

Em 1464, D. Afonso V tentou tomar a cidade de Tânger. Contudo, antes do cerco, «a tristeza e pezo que todos levavam pello caminho, logo pera bem do feito pareceo desaventurado pronostico, especialmente que sendo sobre o cabeço, que dizem de Almenar pareceo no Ceo à vista de todos huum espantoso cometa, que lençava de sy muitos rayos de fogo em figura de dragam»68.

Fosse pela criação de superstições em torno das questões dos cometas, usuais naquela época, ou não, o certo é que o medo acabou por se transformar em terror e este em superstição, acabando por se perder 200 combatentes e deixar 102 prisioneiros de guerra, para além de terem de retirar para Alcácer Ceguer.

Coincidência do destino, Tânger, essa fatídica praça que tanto sangue e lágrimas havia custado aos Portugueses, velho espinho cravado na nossa memória colectiva, caiu inesperadamente em poder de Afonso V, devido à sua complicada situação geográfica, entre Arzila e Alcácer, ambas nas mãos dos Portugueses. Não foi conquistada, foi tomada sem luta, sem glória, sem guerra, sem nada, após a conquista de Arzila em 1471. Tomou-se então posse pacífica da famosa e cobiçada cidade do Estreito, e o rei de Portugal pôde, finalmente, inscrever entre os seus títulos, o de rei dos Algarves e d’aquém e d’além-mar em África.

Foi na qualidade de primeiro capitão de Alcácer Ceguer que o conde D. Duarte de Meneses encontrou a morte, em defesa de Afonso V, numa saída arriscada por terras inimigas, sendo por isso, e pelos seus notáveis feitos militares no Norte de África contra os mouros, que o monarca encarregou o cronista Gomes Eanes de Zurara de redigir a Crónica

do Conde D. Duarte de Meneses: «Me trabalhasse logo de ajuntar e screuer os feitos do

conde dõ Duarte de Meneses uosso alferez moor e capitam ë a uilla dAlcacer. E isto creo eu muyto alto princepe que serya por que nom auya muytos dyas que o uirees acabar suã uida antre os mouros por defensom de uossa pessoa na serra de Benacofu quando a ssegunda uez passastes em Africa» (CCDM: Cap. I, 3).

68 PINA, Rui de (1977). Crónica de D. Afonso V. Titulação e remissão de M. Lopes de Almeida. Porto: Lello &

Crónica do Conde D. Duarte de Meneses – Estudo histórico-cultural e edição semidiplomática

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Capítulo 2.

Do nascimento da História às