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Do nascimento da História às crónicas zurarianas do século

2.1. Historiografia e discurso historiográfico

La véritable Histoire, aujourd`hui comme hier, ne s`écrit pas chez les historiens mais chez les écrivains (Barbéris, 1991: 9).

O discurso historiográfico não é uma categoria constante e imutável. Ao invés, constituiu-se ao longo dos séculos, como produto de diversas condicionantes políticas, sociais, religiosas, culturais e científicas.

Essa evolução não foi linear e, por vezes, assistimos à coexistência de vários discursos historiográficos simultâneos, assim como a divergências sobre a ciência da história: «El hecho de que hoy los historiadores no sean ya capaces de ponerse de acuerdo sobre qué se ala “ciencia de le historia” es un argumento que suele aducirse para justificar el diagnóstico de la “desintegración” de la disciplina» (Noiriel, 1996: 43).

O fim da historiografia é reconstruir e explicar o movimento cumulativo feito de aquisições, de correcções, de progresso, de aprofundamentos, garantindo o sentido e autenticidade à história (cfr. Lefèbvre, 1978: 4).

Mas afinal, de onde vem o interesse pela História e porque continua a interessar a História?

Olga Magalhães infere que a resposta está em grande parte nas possibilidades do seu estudo:

Can satisfy sheer curiosity (about what our predecessors were like and what they did); it can stimulate our imagination through the strange and exotic; it can tell how people have lived in others states and societies and so, by comparison, help us understand our contemporary problems. It can increase our patriotism or our sense of corporate identity. It can trace the origins and causes of present states of affairs. It can make us broader-minded and more tolerant by showing that it has been possible for people and societies to behave very differently and yet be equally human, no better and no worse than we are (2000: 15).

Este interesse multifacetado pela História tem a incomensurável vantagem de trazer para a luz do dia um saber antes confinado às universidades e academias, e de atrair para a sua influência um número cada vez maior de cultores e de divulgadores.71

Ao longo dos tempos e da sua própria evolução, a História já foi considerada como sendo uma arte, uma forma literária, uma narrativa, uma ciência e ciência peculiar.

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Considerar a História uma arte, uma forma literária ou uma narrativa, fundamenta-se nos seguintes pressupostos: o essencial, em História, é a forma, a exposição. A narrativa é vista como a essência da História, pelo que a história e conto (history e story, em inglês) se identificam.

Apesar de tudo, a grande tradição da narrativa tem declinado, ainda que de modo algum tenha desaparecido, daí os melhores historiadores da nossa época, tais como Marc Bloch, Emmanuel Le Roy Ladurie e E. P. Thompson levam-nos a acreditar que a história analítica e qualidade literária não são incompatíveis (cfr. Iggers, 1980: 13).

Estas concepções não se coadunam com a História que a partir dos meados do século XIX se tem feito. Contudo, algo de positivo, ainda hoje, podemos extrair das mesmas. Delas se pode deduzir, que a exposição, a linguagem, o estilo e a ilustração, nos trabalhos de história, deverão ser objecto de bastante atenção e dedicação.72

A obra do historiador é, de alguma forma, uma actividade simultaneamente poética, científica e filosófica. Daí a complexidade da História e das restantes ciências humanas: a dificuldade epistemológica central das ciências do homem, que é a de ele ser ao mesmo tempo sujeito e objecto.

A objectividade em História, pressuposto ambicioso, constrói-se pouco a pouco através de revisões incessantes do trabalho histórico, laboriosas verificações sucessivas e acumulação de verdades parciais. Assim, «ser intelectualmente objectivo é descontar e eliminar os factores meramente pessoais nas operações pelas quais se chega a uma conclusão» (Gardiner, 1984: 405).

Em História, a objectividade e a imparcialidade são as duas faces de uma mesma moeda que o historiador procura conciliar. Até porque toda a História é, no fundo, história do presente em que é feita, pois o historiador que a faz não deixa de ser um homem do seu presente e, porque é assim, absolutamente inseparável da sua contemporaneidade.

Nos tempos hodiernos não podemos simplesmente repetir o que foi ouvido, ou de organizar cronologicamente um conjunto de acontecimentos, sem perspectiva nem enquadramento, renunciando assim à tarefa de explicar. Não se trata igualmente de fazer a História de forma definitiva e perene. Também parece não ser possível continuar a esgrimir argumentos de cientificidade pura, construídos com base num paradigma das ciências exactas, ele próprio em permanente discussão e constante mutação. Se, na década de 60 do século passado, a história social parecia determinada a varrer tudo à sua frente, hoje é a

72 Vide, FURET, François, “Da história-narrativa à história-problema”, A oficina da história (trad. do

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história cultural que parece estar em fase ascendente: em parte porque reivindica como objecto de estudo uma área do passado muito ampla; e depois porque foi a mais beneficiada com o novo interesse pela compreensão em detrimento da explicação.

A revolução da tecnologia da informação, que transformou e democratizou o saber, a expansão do ensino superior, o recurso dos historiadores à antropologia em prejuízo da sociologia, a influência de Michel Foucault, do pós-modernismo e da “viragem linguística”, o desenvolvimento da história das mulheres, da história do género e da história cultural e a reconfiguração da história “imperial”, aliada a uma tendência mais ampla para a busca do significado em detrimento da “causação”, induzem-nos a sentir que temos é de aprender a aprender a saber ser, saber estar e saber fazer, com reflexão, criatividade e autonomia, especialmente na transposição da História – ciência ou epistemologia para a História – didáctica ou ensino, que nos compete fazer chegar aos alunos nas turmas das escolas, tão díspares a vários níveis e que temos em mãos. Caso contrário, a História chega aos alunos como algo de cansativo, de monótono, e difícil de compreender.

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2.2. A herança da Grécia Clássica

Perdem-se no tempo as raízes mais profundas da História. Mesmo sem aludir à memória antes da escrita – na pré-história – diversos povos ou grupos humanos recordaram ou transmitiram algo do seu passado colectivo.

Para nós, ocidentais, a História foi criada pelos Gregos. Com efeito, é comum acentuar-se o papel da Grécia Clássica na formação do espírito historiador e na construção do pensamento racional. Três grandes nomes dominaram, como é sabido, a historiografia grega: Heródoto, historiador das guerras Médicas, em meados do século V a. C., Tucídides, actor e historiador da guerra do Peloponeso, nos finais do século V a. C. e Políbio, que escreveu no século II d. C., depois da conquista da Grécia pelos Romanos.

Até ao século V a. C., a interpretação do passado fazia-se pela projecção no presente de mitos que tinham como função explicar a formação da realidade pela intervenção de seres sobrenaturais. Relativamente ao nascimento da História, o historiador Georges Lefèbvre aduz o seguinte: «os primeiros historiadores são provavelmente poetas, existindo assim uma Proto-história da qual dificilmente deslumbramos alguns traços através dos mitos e das lendas (…). Um belo dia aparece o papiro, o pergaminho, o papel: surge o manuscrito, nasce então a história» (1978: 13-14).

O pai da História73 no Ocidente foi Heródoto. Encontrando-se a História ainda nos inícios da fase pré-científica, Heródoto não podia ter sido – e de facto não foi – um historiador, na moderna acepção da palavra, pelo facto de, no seu programa de pesquisa, a curiosidade por vezes sobrelevar a lucidez74, nem sempre distinguindo o anedótico do histórico. Heródoto concebeu o discurso histórico não somente como uma relação, mas ainda como uma consequência de factos em si interessantes, cujo vínculo com o essencial podia ser muito ténue.

No seu esforço de interpretação dos factos que narrava, Heródoto fazia intervir as intenções ou conflitos dos deuses. Mas ao mesmo tempo, alargava a sua pesquisa a tópicos tão variados como a geografia, a história natural, a etnologia e a religião, pelo que também já foi considerado o pai da antropologia» (cfr. Myres, 1966: 43-73). Tendo em conta os

73 Expressão utilizada por Cícero e ainda em voga. Vide, De Legibus, I.5. Maria Helena da Rocha Pereira,

“Estudos de História da Cultura Clássica”, I vol.: Cultura Grega, 5.ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 249, nota 109. O atributo surge também, por exemplo, em Myres, John L. (1966). Herodotus, Father

of History. Oxford: University Press.

74 Vide, GUSDORF, Georges (1985: 84-86). Les sciences humaines et la pensée occidentale, II: Les origins

des sciences humaines (Antiquité, Moyen Age, Renaissance). Paris: Payot. Este autor inclui Heródoto entre os