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3 CONCEPÇÕES SOBRE O DESENVOLVIMENTO E A UTILIZAÇÃO DA

3.3 A criatividade na música

Segundo Gardner (1996), “toda a atividade criativa se origina, primeiro, da relação entre o indivíduo e o mundo objetivo trabalho e, segundo, dos laços entre o indivíduo e os outros seres humanos” (GARDNER, 1996, p. 10). Dentro do âmbito da música não poderia ser diferente; pelo contrário! Segundo o próprio autor,

Todos os indivíduos criativos – e especialmente os músicos – devem lidar com uma série de associados que não apenas ajudam os criadores a realizar sua visão como também eventualmente, com um público mais amplo, determinam o destino da obra dos criadores (GARDNER, 1996, p. 153, grifo nosso).

Desta forma, conclui-se que o indivíduo que lida com a criação musical sempre atinge grupos de indivíduos – mesmo que seja um grupo pequeno. Não somente no momento de compartilhamento e exposição da obra a um público, como também no processo de criação e execução, tendo em vista que

[...] a criação da música surge como uma atividade intensamente pública. Se apenas colocada numa partitura e disponível para exame, a música tem pouco efeito. São necessárias uma reunião de indivíduos [...] e uma coleção de materiais [...] para que uma ideia musical obtenha expressão pública (GARDNER, 1996, p. 153).

Ainda segundo o autor, “algumas figuras criativas – por exemplo, físicos teóricos – podem trabalhar num relativo isolamento, mas não um compositor musical” (GARDNER, 1996, p. 11), até porque é fácil perceber que a música, ou qualquer obra artística, só se efetiva como uma criação quando o interior de outras pessoas for tocado pelas cadências harmônicas, pelas nuances em um quadro, pelo movimento articulado e milimetricamente planejado, ou pelo texto emotivo do ator, por exemplo. Para Adorno (2008), a música contém elementos emocionais, o que a estabelece como uma forma expressiva de comunicação, o que nos possibilita refletir que uma criação musical possui algo muito mais aprofundado e íntimo envolvido. É o ser presente na obra. Segundo Nachmanovitch (1993), “tudo que fazemos e somos [...] são sintomas de nossa natureza original, revelam a marca de nosso estilo ou de nosso caráter mais profundo” (NACHMANOVITCH, 1993, p. 34).

Se a nossa natureza original é corriqueiramente expressa nas criações, então é possível definirmos um estilo pessoal impresso nos elementos que usamos para criar. Porém, Nachmanovitch (1993) levanta o fato de que essa natureza original é aquela que nasce conosco, é o nosso ser; mas com o passar do tempo, “vamos nos adaptando aos padrões culturais e familiares, ao ambiente físico e às circunstâncias da vida diária” (NACHMANOVITCH, 1993, p. 33). Desta forma, possuímos duas construções internas: a do ser e a do mundo, as quais geralmente entram em harmonia no decorrer da vida. Então, conclui-se que o estilo pessoal impresso nas criações musicais é permeado pela natureza original e pela percepção e aprendizado do mundo que entram em consonância para gerar um novo produto (NACHMANOVITCH, 1993). Alencar e Fleith (2003) também abordam que a produção criativa – além das habilidades e traços de personalidade do criador que são impressas na criação – também sofre influência de elementos do ambiente onde o indivíduo se encontra inserido (ALENCAR; FLEITH, 2003). Sendo assim, o estilo das criações é definido pelo agrupamento desses elementos de forma consciente – e às vezes, até mesmo, inconsciente.

Se podemos considerar que uma criação musical atinge grupos de indivíduos, e muitas vezes é preciso contar com “associados” para dar vida à música, imagine uma criação musical idealizada por um professor de uma instituição de educação básica? O objetivo sempre envolve uma turma com inúmeros indivíduos, que na maioria das vezes não irão apenas apreciar a criação, mas se apropriar dela. Corriqueiramente a natureza original do educador é expressa (NACHMANOVITCH, 1993), mas também elementos externos precisam ser levados em consideração no momento da criação (ALENCAR; FLEITH, 2003). Um exemplo disso foi uma pesquisa-ação que desenvolvi no contexto do Curso de Iniciação Artística da UFRN, onde a minha intenção foi observar a expressividade musical das crianças frente a características musicais distintas envolvidas no repertório proposto na disciplina de prática coral (LUNA, 2017). Quero aqui ressaltar que todas as canções desenvolvidas eram autorais, as quais foram planejadas especificamente para essa pesquisa, levando em consideração, principalmente, os aspetos emocionais presentes na história7 que norteava as canções. Nesse caso, foram elementos externos à minha natureza original que orientaram as criações.

7 “A bolsa amarela” (Lygia Bojunga).

No contexto da pesquisa, eu possuía um objetivo específico que estava diretamente ligado à expressividade, pois a intenção era justamente afetar as crianças com elementos musicais que os levassem à expressão natural. Porém, esse objetivo pode emergir de diversas maneiras, como a necessidade de efetivar a aprendizagem de algum conteúdo específico, a criação de um repertório relacionado a um tema interdisciplinar, ou ainda a faixa etária que se deseja alcançar, por exemplo.

Outro ponto relevante a se destacar sobre a criação musical é que, inicialmente, a produção criativa era atribuída apenas a mentes privilegiadas – os chamados gênios. Criou-se uma aura em torno de compositores como Mozart, onde acreditava-se que aqueles que demonstravam habilidades precoces eram impulsionados e inspirados por algo divino, acreditando no talento inato do compositor (GRASSI, 2010). Com o passar do tempo, a pesquisa sobre processos criativos avançou, e atualmente, “alguns estudiosos têm voltado sua atenção para a influência que fatores sociais, culturais e históricos têm [sic] no desenvolvimento da criatividade” (GRASSI, 2010, p. 64). Apesar do avanço, consequências do primeiro momento ainda emergem em várias situações atuais. Grassi (2010) comenta que

[...] o mito do gênio que, num primeiro momento, permeou a pesquisa em criatividade ainda está fortemente arraigado em nossa cultura e parece ter sido o responsável por uma série de preconceitos e ideias falsas sobre o processo criativo que, até hoje, trazem consequências para o ensino e a aprendizagem musical. Como por exemplo, podemos citar a insegurança que professores recém-formados sentem no ensino da composição musical, ou a falta de confiança que muitos alunos têm em suas capacidades – ou “talentos” – para a música (GRASSI, 2010, p. 64).

Desta forma, é possível perceber que, tratar sobre processo criativo em música, principalmente no âmbito da educação, ainda consiste num desafio. As ideias de Nachmanovitch (1993) sobre o exercício do processo criativo para a familiaridade com os desafios emergentes e corriqueiros desse âmbito, talvez não ganhe a credibilidade de alguns profissionais que temem a criação do novo. Porém, Grassi (2008) corrobora com as ideias de Nachmanovitch (1993) quando aborda sobre estudos que comparam o desempenho de principiantes com o de experts em tarefas de composição musical. Grassi (2010) nos apresenta que

[...] o principiante parece, muitas vezes, paralisado, sem saber como proceder e toma a maior parte de suas decisões em nível local –

sendo comum que componha pequenos trechos sucessivamente, sem apresentar um plano maior e previamente elaborado. Já o

expert parece aplicar sua expertise durante todo o processo e

resolve seus problemas em nível global, definindo objetivos gerais desde cedo, restringindo o problema de maneira adequada e evitando a perda de tempo em detalhes menores – que ele resolve com muita facilidade, e até inconscientemente, devido à sua experiência no domínio (GRASSI, 2010, p. 74).

Grassi (2010) ainda discorre que o expert apresenta dificuldade em descrever detalhes do seu processo criativo devido à prática rotineira de algumas tarefas, desenvolvendo uma automatização em seus processos. Desta forma, fica perceptível que, quanto maior o exercício da criação musical, mais fácil torna-se o processo de definição de elementos e estratégias para a resolução de problemas e a elaboração do produto final. Sendo assim, o processo criativo musical é um exercício, assim como a criação em qualquer outro âmbito; o que precisa ser extinto são as barreiras que nós mesmos colocamos perante um processo criativo.