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A crise dos mísseis e os primeiros sinais da détente

No documento Um mundo que também é nosso (páginas 96-99)

3. Sementes da détente (Rio de Janeiro, 1961-1963)

3.4. A crise dos mísseis e os primeiros sinais da détente

Na segunda metade de 1962, o Brasil passava por momentos conturbados e a política externa, também. Em julho, caiu o Gabinete Tancredo Neves. No Gabinete Brochado da Rocha que assumiu, Afonso Arinos voltou ao comando do Itamaraty. Contudo, apenas dois meses depois, o Primeiro-Ministro Brochado da Rocha foi substituído por Hermes Lima, que assumiu também a pasta das Relações Exteriores.

O mês de outubro marcaria a política internacional e o pensamento de Castro. A revelação de que a União Soviética estaria buscando instalar mísseis nucleares em Cuba desencadeou uma crise de treze dias, no curso dos quais muitos temeram que se deflagrasse um conflito aberto entre os Estados Unidos e a URSS.

Durante a crise, o Brasil chegou a levar adiante uma tentativa de mediação entre os EUA e Cuba97. Os americanos encorajaram o

96 Araujo Castro (1962), p. 5.

97 O relato mais detalhado desses esforços foi feito por Hershberg (2004a e 2004b). Embora seja provável que Araujo Castro tenha sido envolvido nesses esforços, uma vez que parcialmente envolviam as Nações Unidas, não há evidências de que ele tenha sido um dos articuladores centrais da iniciativa.

Brasil a enviar um recado de Kennedy a Fidel Castro, oferecendo ao líder cubano uma promessa de não intervenção na ilha se ele expulsasse os mísseis de seu território. O recado (que deveria ser apresentado como uma proposta oriunda de João Goulart, e não de Washington) foi levado pelo Chefe do Gabinete Militar de Goulart, General Albino Silva. A iniciativa fracassou, em parte por causa da insistência de Fidel Castro em que qualquer acordo contemplasse a retirada americana de sua base militar na baía de Guantánamo.

No fim das contas, o episódio não trouxe benefícios concretos e erodiu ainda mais a confiança dos Estados Unidos no governo de João Goulart.

A resolução da crise dos mísseis veio, afinal, por meio de entendimentos diretos sem precedentes entre a Casa Branca e o Kremlin. Para Castro, esses entendimentos representavam o começo de uma importante mudança no panorama político internacional. Mais tarde, ele afirmaria:

desde a vigília nuclear de outubro de 1962, a situação mundial modificou-se. A polarização internacional não se apresenta com a nitidez anterior. Embora permaneça o conflito Leste-Oeste e subsistam os problemas que separam o Ocidente do Oriente, a verdade é que se relaxaram as tensões e o panorama internacional se apresenta menos rígido. Os problemas permanecem, mas são menos críticos do que antes do mês de outubro de 1962. [...] tornaram-se menos rígidos os polos Leste-Oeste e a divisão que presidia as análises anteriores vai esmaecendo consideravelmente.

Por consequência, a haste intermediária do neutralismo tornou-se menos sólida e mais inviável. Não existe nenhum

país que esteja mediando entre a URSS e os EUA nas grandes questões internacionais98.

Os contatos diretos entre as superpotências eram o início de um processo de relaxamento de tensões que, a partir de 1968, levariam à coexistência pacífica que ficou conhecida como détente. Não obstante, em 1962, Castro já enxergava que a aproximação entre americanos e soviéticos tenderia a estreitar um importante espaço de manobra para terceiros países. Mesmo em 1959, ele já havia previsto que “um modus-vivendi entre as duas Superpotências viria alterar substancialmente o quadro político do mundo contemporâneo”99.

Promovido a Embaixador em 1962, Castro começou a pensar em deixar novamente o Brasil. Em novembro daquele ano, de Nova York, onde participava da Assembleia Geral das Nações Unidas, Castro escreveu uma carta ao deputado Renato Archer, então Subsecretário de Estado das Relações Exteriores100. Na missiva, informou que já havia pedido ao Ministro Hermes Lima e ao Secretário-Geral que o designassem para assumir a Embaixada do Brasil em Berna ou em Copenhague e pedia a Archer que apoiasse seu pleito101. Três meses depois, ainda no Brasil, recebeu carta do colega e amigo Antônio Francisco Azeredo da Silveira, que afirmou ter ouvido que Castro seria indicado para Copenhague ou até mesmo para a Missão junto às Nações Unidas.

98 Franco (2008), p. 241.

99 Carta de João Augusto de Araujo Castro a Edmundo Barbosa da Silva, 31 de julho de 1959 (Acervo Pessoal Edmundo Barbosa da Silva).

100 O Ato Adicional que instaurou o regime parlamentarista no Brasil criou a figura dos Subsecretários de Estado nos Ministérios, que representavam os Ministros junto ao Congresso Nacional e responderiam pelas respectivas pastas na eventualidade da queda do Gabinete. O deputado Renato Archer era, na época, o Subsecretário de Estado das Relações Exteriores.

101 Carta de João Augusto de Araujo Castro a Renato Archer, 10 de novembro de 1962 (Arquivo Renato Archer – CPDOC).

Como se recorda, em julho de 1959, Castro havia reclamado de que os diplomatas brasileiros não se interessavam pelos lances da política global “nem, muito menos, com as repercussões de tudo isso na linha da nossa política exterior”102. Aparentemente, essa frustração só crescera, pois na carta que enviou a Castro em janeiro de 1963, Silveira comentou:

Lamento pelo Itamaraty, que você haja pedido posto, mas compreendo perfeitamente o seu desejo, principalmente se o Ministério se recusa, como você diz, a pensar em política externa e tomar conhecimento do que vem acontecendo no mundo, a partir de outubro do ano passado103.

Para o Brasil, cujas possibilidades de desempenhar maior papel internacional eram praticamente um artigo de fé para Castro, esse quadro era desanimador. A julgar pela carta de Silveira, mais desanimador ainda para Castro era a falta de percepção, no Itamaraty, sobre a enormidade dessa mudança. Berna ou Copenhague seriam postos onde Castro teria uma vida confortável.

Poderia acompanhar por conta própria os acontecimentos internacionais, sem se aborrecer por ter que lidar cotidianamente com colegas que não compartilhavam sua percepção da importância histórica daquele momento. No entanto, a planejada remoção não se concretizaria.

No documento Um mundo que também é nosso (páginas 96-99)