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A descolonização como problema parlamentar

No documento Um mundo que também é nosso (páginas 196-200)

6. Nas Nações Unidas (Nova York, 1968-1971)

6.7. A descolonização como problema parlamentar

Castro enquanto Representante Permanente em Nova York. Nessa questão, ele divergia significativamente da Secretaria de Estado.

Enquanto Castro continuava a considerar a posição brasileira sobre o tema elemento central para conquistar a confiança e o apoio dos países africanos, as instruções que recebia eram quase exclusivamente no sentido de apoiar as posições de Portugal que, a essa altura, não contavam com o apoio de praticamente mais nenhum país.

Resultava disso uma troca constante de telegramas, nos quais Castro tentava convencer a Secretaria de Estado das adversas consequências parlamentares de continuar a apoiar o colonialismo português na África, evitando, no entanto, criticar a substância dessa política. O Itamaraty, de sua parte, permanecia inamovível, argumentando ser imprescindível manter a confiança de Portugal, para que o Brasil pudesse eventualmente mediar entre as autoridades lusitanas e as colônias – embora não desse sinais de efetivamente começar tal mediação.

Particularmente ilustrativa dessa dinâmica é uma série de telegramas trocados em novembro de 1968 sobre o que viria a ser a Resolução 2395 (XXIII) de Assembleia Geral, sobre os territórios coloniais portugueses256. Frente à possibilidade de que

256 Telegramas 1382, 5 de novembro de 1968; 1473, 13 de novembro de 1968; 1476, 15 de novembro de 1968; 1511, 19 de novembro de 1968; 1532, 20 de novembro de 1968; e 1534, 21 de novembro de 1968, todos da Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas à Secretaria de Estado; e despachos telegráficos 625, 6 de novembro de 1968; 660, 16 de novembro de 1968; 668, 20 de novembro de 1968;

e 688, 26 de novembro de 1968, todos da Secretaria de Estado à Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas (AHMRE, caixa 390).

eventual voto contrário brasileiro fosse acompanhado apenas por Portugal e África do Sul, Castro escreveu uma série de telegramas solicitando autorização para que o Brasil se abstivesse, em vez de votar contra. A cada mudança no texto da resolução, por menor que fosse, reiterava seu apelo, argumentando que o texto ficara mais brando e que, portanto, não necessariamente se justificaria mais o voto contrário. A cada vez, seu pleito era rechaçado pela Secretaria de Estado. Afinal, o quadro parlamentar acabou sendo aquele previsto por Castro: 96 votos a favor, 13 abstenções e Brasil, Portugal e África do Sul contra. Poucas semanas depois, Castro escreveu ao Itamaraty:

Faltaria [a] meu dever se não confiasse [a] Vossência minha grande preocupação com visível deterioração [da] posição brasileira na ONU, em virtude do acúmulo de tantos votos negativos [contrários às posições africanas]. Como disse anteriormente a Vossência, prevejo grandes dificuldades para quaisquer pretensões brasileiras a posições eletivas na ONU, dado o desapontamento e mesmo franca irritação de inúmeros países africanos, que já não escondem sua hostilidade para conosco. [...] Por outro lado, é de prever- -se um sensível isolamento e diminuição influência do Brasil no seio do próprio bloco latino-americano que já não nos procura nem nos consulta sobre qualquer assunto da 4ª Comissão257.

As constantes advertências de Castro sobre as consequências negativas do apoio brasileiro a Portugal não sensibilizaram a Secretaria de Estado. De fato, especialmente a partir do governo Médici, ela parecia não dar a menor importância à situação parlamentar configurada pelo apoio brasileiro a Portugal, conforme

257 Telegrama 1720 da Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas à Secretaria de Estado, 12 de dezembro de 1968 (AHMRE, caixa 390).

demonstrado por instrução enviada a Castro, instruindo-o a votar contra um projeto de resolução referente às colônias portuguesas

“desde que esse voto não nos deixe inteiramente isolados. Esclareço que não considero que nos acharemos isolados se só a Grã-Bretanha acompanhar o voto contrário”258.

Chegaram, inclusive, a gerar uma situação levemente cons- trangedora para Castro, quando, depois de todos os seus vaticínios, o Brasil foi eleito para o Conselho Econômico e Social com votação muito maior do que a esperada. Nas circunstâncias, Castro se sentiu obrigado a enviar um telegrama “explicando” o resultado positivo, no qual citou fatores como o copatrocínio brasileiro a projeto de resolução sobre a Namíbia e a defesa, pelo país, de posições dos países médios e pequenos em temas afeitos à segurança internacional259. O aparente exagero de Castro em relação às consequências parlamentares nefastas do apoio brasileiro a Portugal sugere que ele poderia, também, estar buscando utilizar argumentos sobre o interesse nacional brasileiro para tentar alterar uma política que ele considerava moralmente repugnante.

Embora tivesse sido incapaz de demover o Itamaraty do apoio ao colonialismo português, Castro continuou a buscar uma aproximação com as delegações africanas por outros meios, como a denúncia veemente do apartheid ou a ênfase nos profundos laços que uniam o Brasil à África260. Também buscou demover o Itamaraty de aproximar-se da África do Sul e desmentiu energicamente os

258 Despacho telegráfico 506 da Secretaria de Estado à Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas, 4 de novembro de 1970 (AHMRE, caixa 397).

259 Telegrama 1233 da Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas à Secretaria de Estado, 20 de outubro de 1969 (AHMRE, caixa 392).

260 Sobre apartheid, ver, por exemplo, Amado (1982), p. 121-125. Para os laços com a África, bons exemplos são os discursos de Castro por ocasião da acessão da Guiné Equatorial e da Suazilândia às Nações Unidas, contidos em UNODS, documentos S/PV. 1458 e S/PV. 1450, respectivamente.

rumores no sentido de que o Brasil estaria estudando a conclusão de pacto militar com aquele país261.

Claramente, Castro tinha uma preocupação real em manter boas relações com a África nas Nações Unidas. No entanto, fica a impressão de que essa preocupação era majoritariamente, se não exclusivamente, parlamentar. Durante seu período nas Nações Unidas, Castro não associou a descolonização aos elementos mais substantivos do seu pensamento. Não escreveu sobre as consequências do congelamento do poder mundial para a África, por exemplo, nem parece ter tido interesse especial pelos desafios do processo de independência das ex-colônias africanas. Castro falava da descolonização essencialmente em termos de seus efeitos para a posição brasileira na diplomacia parlamentar. Essa posição era consistente com aquela que havia expressado enquanto Chanceler (no Discurso dos Três Ds, a descolonização também estava menos articulada às ideias centrais de Castro do que o desarmamento ou o desenvolvimento) ou mesmo antes, quando foi observador na Conferência do Cairo (quando, em seu relato, defendeu que a aproximação com os países não alinhados se desse no contexto das Nações Unidas e “com vistas à conservação de nossa mobilidade diplomática”262).

Apontar o caráter instrumental da descolonização no pensamento de Castro não é fazer um julgamento moral ou dizer que ele fosse favorável ao colonialismo. Serve, porém, para ilustrar a distinção que ele fazia entre aqueles temas que considerava de importância política intrínseca (por exemplo, as relações entre as superpotências) e instrumental (como a descolonização).

261 Telegramas 2 e 22 da Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas à Secretaria de Estado, 2 e 6 de janeiro de 1970, respectivamente (AHMRE, caixa 397). Ver também “Resposta à África do Sul”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 jul.1969.

262 Franco (2007), p. 112.

No documento Um mundo que também é nosso (páginas 196-200)