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A gestão Araujo Castro

No documento Um mundo que também é nosso (páginas 129-134)

4. Chanceler (Rio de Janeiro, 1963-1964)

4.10. A gestão Araujo Castro

Não resgataremos, aqui, o dia a dia de Araujo Castro como Chanceler. Esta não é, propriamente, uma biografia de Castro, mas uma exploração de seu pensamento. Assim, não cabe entrar aqui na minúcia de sua gestão. Optaremos por uma pincelada geral sobre aqueles sete meses, com alguns detalhes a mais sobre aspectos particularmente relevantes para compreender seu pensamento.

Muito do que Castro fez como Chanceler foi cumprir as exigências rotineiras do cargo. No dia antes de partir para Nova York para proferir o Discurso dos Três Ds, recebeu o primeiro Chefe de Estado declaradamente socialista a visitar o Brasil, Josip Broz Tito, Presidente da Iugoslávia155. Em Nova York, foi apresentado a John F. Kennedy; dois meses depois, representaria o Brasil no enterro do Presidente assassinado. Também representou o Brasil na posse do Presidente Illia, da Argentina, em outubro de 1963.

Entre os complexos problemas diplomáticos que passaram pela sua mesa estiveram a acusação da Venezuela de que Cuba estaria ilegalmente transportando armas com fins ilícitos para o território venezuelano e a crise constante em torno da presença portuguesa na África.

Sobrou para Castro resolver o último resquício da disputa com a França em torno da pesca ilegal na costa brasileira que, por

154 Freitas-Valle (2001), p. 16.

155 Fidel Castro visitou o Brasil em 1959, antes, portanto, de se declarar comunista.

ter mobilizado as armadas dos dois países, passou para a História como a “Guerra da Lagosta”. Embora a disputa em si já tivesse sido resolvida pacificamente, havia uma pendência diplomática.

O Brasil havia pedido o agrément (assentimento) francês à indicação do Embaixador Vasco Leitão da Cunha como novo Embaixador em Paris. O governo francês, em retaliação pela Guerra da Lagosta, ignorou o pedido e não respondeu. Castro buscou evitar que o tema tomasse proporções maiores. Finalmente, em novembro de 1963, ao anunciar a retirada do pedido de agrément e a designação do Embaixador Leitão da Cunha para a Embaixada em Lisboa, declarou à imprensa: “o Brasil coloca a amizade franco-brasileira muito acima de considerações ligadas ao processamento de formalidades diplomáticas”156.

Aparentemente, Castro teve um papel relativamente modesto naquilo que era talvez a principal questão internacional do Brasil à época: o apoio americano para a estabilização econômica brasileira.

Essa relação era manejada em boa parte diretamente pelo Ministro da Fazenda (primeiro Carvalho Pinto, depois Ney Galvão)157. De resto, o Embaixador norte-americano Lincoln Gordon tinha acesso direto ao Presidente João Goulart (o que inspirou a imortal faixa de protesto “Chega de intermediários! Lincoln Gordon para Presidente!”). Alguns aspectos da relação bilateral ainda ocupavam Castro. Um em particular merece ser citado a título de correção biográfica: a renovação do Acordo de Assistência Militar com os Estados Unidos.

156 “Brasil não manda Leitão, mas continua amigo da França”, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 13 nov.1963.

157 Por exemplo, no relato de sua reunião com o Secretário de Estado Dean Rusk em setembro de 1963, Castro escreveu: “como combinara no Rio, com o Ministro Carvalho Pinto, evitei tratar de questões específicas como concessionários e acordos Dantas-Bell”. Telegrama 464 da Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas à Secretaria de Estado, 24 de setembro de 1963 (AHMRE, pasta ONU – CTs e Telegramas – Confidenciais – Julho-Dezembro 1963).

O historiador Moniz Bandeira alega que Araujo Castro teria renovado o Acordo a pedido do General Castello Branco e sem o conhecimento do Presidente Goulart, de modo a “proporcionar aos Estados Unidos a base legal para a intervenção armada no Brasil”158 Não cita, porém, quaisquer fontes para embasar essa afirmativa. Outros autores que a ela se referiram o fizeram sempre com base em Moniz Bandeira, tampouco citando fonte primária a respeito159.

No entanto, busca nos arquivos do governo brasileiro revela ser improcedente a acusação. O ofício do Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas para Castro referente ao Acordo transcrevia o despacho do Presidente João Goulart favorável à sua renovação160. Não há, portanto, qualquer indicação de que Castro tenha se envolvido com a conspiração que viria a derrubar Goulart.

Enquanto Ministro, além de dar seguimento a todas as questões específicas que surgiam no dia a dia da diplomacia brasileira, Castro continuou a defender que a política externa rompesse com o passado de forma a acompanhar a evolução da sociedade brasileira e das relações internacionais. As seguintes citações, retiradas de entrevistas ao Jornal do Brasil e à revista Manchete, em momentos distintos, exemplificam essa postura:

Os jornais, as estações de rádio e televisão representam papel altamente dinâmico, como meios de levar ao povo informação e esclarecimento sobre a realidade da atuação da diplomacia brasileira, desfazendo eventuais equívocos ou incompreensões, e de trazer para o Itamaraty as certezas,

158 Moniz Bandeira (2007), p. 629-630; a alegação também consta em outras obras do mesmo autor.

159 Por exemplo, Vizentini (2004), p. 228-229, e o verbete sobre Castro no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, em <http://cpdoc.fgv.br/acervo/dhbb>.

160 Aviso 41-C/34 do Chefe de Estado Maior das Forças Armadas para o Ministro de Estado das Relações Exteriores, 31 de janeiro de 1964.

os anseios e as perplexidades desse povo, elementos que nos orientarão e nos auxiliarão ao procurarmos definir os interesses diplomáticos do Brasil. [...] Manteremos a política externa a serviço dos objetivos e interesses gerais da nação brasileira, fazendo do Itamaraty um instrumento da luta pelo progresso econômico e pelo bem-estar social, dentro dos propósitos de paz e entendimento entre todos os povos161.

Podemos afirmar que, em nenhum momento de nossa história, esteve a atitude internacional do Brasil tão afinada com os anseios do seu povo. Não mais se define, nem se executa a política externa à sombra de gabinetes ou em arroubos literários. Hoje em dia, ela encontra a sua autenticidade na fiel interpretação dos objetivos nacionais e é o reflexo das nossas certezas e das nossas perplexidades162. Essa mudança se manifestava em decisões específicas – por exemplo, na maior assertividade em relação a Portugal na questão colonial. No entanto, seus objetivos eram mais profundos e de longo prazo. Por um lado, buscava angariar maior apoio popular para a política externa, que poderia ajudar a escudá-la das pressões da polarização partidária. Por outro lado, visava a transformar a como que a diplomacia brasileira enxergava o mundo e avaliava as opções que se apresentavam para o Brasil. Nesse sentido, Castro também planejou algumas reformas de cunho administrativo no Itamaraty, sintetizadas em nove pontos que incluíam a revisão dos currículos do Instituto Rio Branco, a publicação de novas normas

161 Franco (2008), p. 247.

162 Franco (2008), p. 271.

que regessem a promoção dos diplomatas e a modernização dos sistemas de comunicação do Ministério163.

Em março de 1964, Castro participou de seu último grande evento como Chanceler: a abertura da UNCTAD, em Genebra. Pelo que se pode depreender dos arquivos do Itamaraty, ele delegou ao Embaixador Jayme de Azevedo Rodrigues a maior parte do envolvimento direto com o tema. Os discursos e artigos de Castro sobre a UNCTAD parecem ter sido majoritariamente elaborados por Azevedo Rodrigues, tendo estilo e abordagem muito diferentes dos escritos de Castro. Há, entretanto, alguns trechos muito provavelmente redigidos pelo próprio Chanceler, que ligam os temas específicos da UNCTAD à abordagem mais ampla da política externa, como, por exemplo, os últimos parágrafos do artigo sobre a Conferência publicado em nome de Castro no Jornal do Brasil:

Estamos em pleno processo de aceleração da história.

Contemplem-se, por exemplo, os resultados alcançados, em curto prazo, no setor da descolonização. Com suas resoluções, que em certo momento pareceram platônicas e inconclusivas, a ONU criou o mundo de 1964, o mundo da autodeterminação e da libertação dos povos.

A atual política do Itamaraty, caracterizada pelo trinômio Desarmamento, Desenvolvimento e Descolonização, baseia-se num agudo senso de realismo. Mas o realismo não abrange apenas a consideração das dificuldades e dos fatores. O realismo brasileiro não pode abdicar da esperança, esperança de um mundo melhor, que se renove dia a dia, numa ânsia de liberdade e de justiça. Com suas teses apresentadas no campo da descolonização,

163 “Itamarati executa sua quinta reforma interna em 32 anos”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 set.1963.

do desarmamento e do desenvolvimento, a política externa do Brasil atinge um momento de maturidade e de autenticidade. O Itamaraty tem de ser representativo do Brasil, com todos os seus anseios e reivindicações 164. No entanto, dizer que Castro não se ocupou pessoalmente dos detalhes da participação brasileira na Conferência não é negar sua influência nela. Na verdade, a UNCTAD foi de certa forma a culminação do projeto de Castro como Ministro das Relações Exteriores. Foi a manifestação mais concreta até então de que o tema do desenvolvimento ingressara irreversivelmente na agenda multilateral, com o reconhecimento de sua natureza política.

Ademais, foi a realização da UNCTAD que ensejou a criação do Grupo dos 77 (G-77)165. O Grupo foi concebido como uma agremiação de países em desenvolvimento mais amplo do que o Movimento Não Alinhado, voltado principalmente para temas econômicos. Não era um bloco político, mas um grupo negociador.

Essencialmente, era a “articulação parlamentar de pequenas e médias potências” da qual Castro falara, cujos membros eram unidos não pelas ideologias que marcaram a Guerra Fria, mas pela condição comum de subdesenvolvimento.

No documento Um mundo que também é nosso (páginas 129-134)