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O Tratado de Não Proliferação Nuclear

No documento Um mundo que também é nosso (páginas 185-190)

6. Nas Nações Unidas (Nova York, 1968-1971)

6.5. O Tratado de Não Proliferação Nuclear

No começo de 1968, enquanto ainda era Embaixador em Lima, Castro havia participado, em Genebra, das negociações acerca do Tratado de Não Proliferação Nuclear. Nos telegramas que enviara de lá, já havia denunciado a “ação abusiva e ditatorial dos Copresidentes” da reunião (os delegados soviético e americano), que se esforçavam, com seu “poder quase discricionário”, para manter um controle total do processo negociador, restringindo a capacidade dos demais países de contribuírem substantivamente para o texto em negociação243.

Quando, meses depois, Castro desembarcou em Nova York, chegou praticamente junto com o Tratado, que passava a ser discutido na Assembleia Geral das Nações Unidas. Os elementos desse tratado viam sendo negociados em Genebra desde 1962 e Castro em vários momentos se envolveu nesse processo, sempre de forma crítica à atitude das superpotências. Ao chegar a Nova York, Castro retomou energicamente a crítica à estrutura do Tratado, consolidando sua associação, na história diplomática brasileira, com a recusa do país em assinar o TNP244.

As objeções que Castro fez ao Tratado em Genebra e Nova York não eram de sua autoria exclusiva. Faziam parte de um discurso mais amplo da política exterior brasileira, ao qual ele havia contribuído ao longo de sua carreira, mas que também foi influenciado por outros diplomatas, por militares e por políticos.

A crítica mais identificável com o pensamento de Castro era aquela que denunciava a natureza desigual do Tratado e de suas

243 Telegramas 286 e 335 da Delegação do Brasil em Genebra, 5 e 12 de março de 1968, respectivamente (AHMRE, pasta Delegação Genebra – CTs e Telegramas – Janeiro-Abril – 1968) . Ver também telegramas 333 e 354 da Delegação do Brasil em Genebra, 11 e 14 de março de 1968, respectivamente (AHMRE, pasta Delegação Genebra – CTs e Telegramas – Janeiro-Abril – 1968).

244 O Brasil assinou o TNP em 1998.

implicações para a ordem internacional, que seriam no sentido de congelar o poder mundial. Esse argumento permaneceria basicamente inalterado no discurso diplomático brasileiro durante as três décadas seguintes.

Em 1963, Castro havia defendido que o desarmamento, como uma questão central para o mundo, deveria ser discutido multilateralmente, e não detrás de portas fechadas pelas grandes potências. Em 1968, continuava convencido desse argumento.

Afirmava que, ao presidirem as negociações em torno do Tratado, os Estados Unidos e a União Soviética admitiam apenas reparos superficiais ao texto e não modificações substantivas, tentando, assim, impor uma nova ordem de cima para baixo, com o mínimo de discussão possível. Essa colaboração entre as superpotências no processo negociador, que Castro denominaria de “a sutil arte da copresidência”, era a ilustração viva da redução das margens de ação dos países em desenvolvimento na ordem interacional.

O conteúdo do TNP apenas agravava os efeitos desse processo negociador. O Tratado dividia seus Estados Partes em Estados nuclearmente armados (que realizaram explosões nucleares até o primeiro dia de 1967) e Estados não nuclearmente armados, vedando terminantemente a transferência de tecnologia para realizar explosões nucleares dos primeiros para os últimos. Suas menções ao desarmamento por parte dos Estados nuclearmente armados eram vagas e não continha obrigações vinculantes nesse sentido. Para Castro, o TNP:

condena o desarmamento nuclear a um virtual esquecimento, com a teoria subjacente de que o problema não está nas armas em si mesmas, mas em seus donos e possuidores. O Tratado é uma limitação à soberania de alguns Estados, não uma limitação real às armas. As armas nucleares são tratadas como válidas e inofensivas, desde

que permaneçam nas mãos de nações responsáveis, adultas e poderosas245.

A posse de armas nucleares por quem já as tinha era aceitável;

a aquisição dessas armas por outros países era perigosa. Países como o Brasil temiam que essa tentativa de preservar o status quo acabaria por impedir que os Estados não nuclearmente armados tivessem acesso às aplicações pacíficas da tecnologia nuclear (mesmo que não tivessem, naquele momento, muita clareza sobre que aplicações seriam essas), dificultando seu desenvolvimento econômico. Fica nítido nesse caso o nexo entre alta e baixa política e a importância de uma diplomacia atenta não só a esta, como àquela. Não surpreende, nesse contexto, que Castro enxergasse no TNP uma das mais explícitas tentativas de congelar o poder mundial.

Os discursos e escritos de Castro sobre desarmamento e não proliferação deixam claro que sua preocupação central não era a segurança em si, mas sim essa tentativa de gerir a ordem internacional de forma desigual, dando a um desequilíbrio de poder (militar e tecnológico) um caráter jurídico permanente.

Traçava um paralelo entre o TNP e a Carta das Nações Unidas, que, ao instituir o veto, teria outorgado um caráter jurídico permanente à distribuição de poder que prevalecia em 1945.

Para Castro, o TNP desvirtuava os debates sobre desar-mamento. Em maio de 1970, ao abrir um seminário sobre desarmamento promovido pelas Nações Unidas, afirmou:

O desarmamento desvaneceu e deixou em seu lugar o

“controle de armas” ou a “limitação de armamentos”. Não ousamos mais falar na Paz – reduzimos nas ambições ao ponto de nos satisfazermos com a “détente” ou o

245 Amado (1982), p. 85.

“relaxamento de tensões”. Não ousamos mais falar em

“soluções políticas”; buscamos “cessar-fogos” e “armistícios”.

Parecemos ter abandonado a busca por segurança coletiva;

agora falamos em “garantias de segurança”. [...] O que ocorreu no esforço rumo ao Desarmamento é na verdade um reflexo da redução das expectativas em outras áreas. E todo esse processo de redução e desvalorização está sendo levado adiante em nome do realismo – que, no jargão diplomático, passou a significar a aceitação passiva do Poder como a única medida das ações dos Homens e dos atos das nações.

A principal razão pela qual o desarmamento se dissolveu no “controle de armas” ou na “limitação de armamentos” é o fato de que as duas superpotências, em suas negociações atuais, não visam a suprimir o Poder como um meio legítimo para buscar e alcançar objetivos políticos, mas sim a estabilizar o Poder com base em duas datas históricas arbitrárias – 1945, o ano da assinatura da Carta das Nações Unidas, com seu componente de Cinco Membros Permanentes, dotados de direitos e prerrogativas especiais, e 1967, prazo para que os países se qualificassem como Estados nuclearmente armados nos termos do Tratado de Não Proliferação246.

Como já observamos, Castro acreditava que as instâncias multilaterais, em particular as Nações Unidas, poderiam tanto avançar quanto dificultar o congelamento. A aprovação do TNP foi certamente um importante passo para fortalecê-lo. Nem por isso Castro considerava a batalha perdida. Em telegrama ao Itamaraty, propôs uma estratégia para a diplomacia nuclear brasileira no

246 Araujo Castro (1970a).

contexto criado pela aprovação do TNP. Sugeriu que o Brasil e outros países insatisfeitos com o tratado buscassem propor e aprovar:

resoluções da Assembleia Geral, que constituiriam recomendações em favor de várias reivindicações que deixaram de ser atendidas pelos coautores do Tratado.

Essas recomendações [...] deveriam ser específicas e objetivas, e voltadas para as potências nucleares de maneira a nivelar gradualmente os compromissos e deveres das duas classes de países. [...] Ficaria criado, assim, um sistema de compromissos para as potências nucleares, inclusive com possibilidade de sanções, pelo menos de ordem moral, toda a vez que se verificasse falta de cumprimento que permitisse reparos e críticas nas sessões da Assembleia Geral. Essas resoluções da Assembleia Geral dificilmente poderiam ser objetadas pelas superpotências e acabariam por constituir um conjunto de compromissos regulamentadores do Tratado de Não Proliferação no que se refere, especialmente, à definição das obrigações dos países nucleares247.

As Nações Unidas facilitaram imensamente a criação de

“sanções de ordem moral” contra Estados mais poderosos. Embora essas sanções fossem débeis quando comparadas à operação crua dos mecanismos de poder, eram uma importante arma no arsenal muito limitado do qual dispunham os Estados menores. Enquanto as grandes potências tentavam utilizar o multilateralismo para eternizar sua superioridade, as pequenas valiam-se dele para coibir o exercício daquela superioridade. A noção de que os fracos poderiam utilizar normas internacionais para “disciplinar, coordenar, suavizar e metodizar” os fortes era antiga. No caso do Brasil, por

247 Telegrama 884 da Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas à Secretaria de Estado, 19 de agosto de 1968 (AHMRE, caixa 390).

exemplo, remontava aos próprios debates do Conselho de Estado do Império sobre a conveniência de se assinar tratados com as grandes potências248. No entanto, o multilateralismo institucionalizado das Nações Unidas, ao consagrar a igualdade soberana dos Estados, dava aos fracos uma posição negociadora muito mais favorável do que a que costumavam ter antes.

No documento Um mundo que também é nosso (páginas 185-190)