• Nenhum resultado encontrado

A Conferência dos Não Alinhados no Cairo

No documento Um mundo que também é nosso (páginas 70-76)

2. Missões ao Cairo e a Pequim (Tóquio, 1959-1961)

2.1. A Conferência dos Não Alinhados no Cairo

Em 2 de junho de 1961, após quase dois anos no Japão, Araujo Castro recebeu a notícia de que havia sido designado como observador brasileiro na Reunião Preliminar da Conferência de Chefes de Estado e Governo de Países Não Alinhados, a ocorrer no Cairo, a partir do dia 5 de junho. A reunião discutiria os preparativos para a Conferência dos Países Não Alinhados que veio a se realizar em Belgrado, em setembro do mesmo ano, para a qual o Presidente Jânio Quadros havia sido convidado.

O Secretário de Imprensa da Presidência, o jornalista Carlos Castello Branco, era amigo de Araujo Castro e sugeriu seu nome a Jânio para a missão ao Cairo55. Assim, em 2 de maio, Jânio enviou bilhete (seu método preferido de comunicação) ao Ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos de Mello Franco, solicitando que designasse Castro como observador brasileiro na Conferência.

No dia 31 do mesmo mês, entretanto, enviou memorando que, sem

54 Exceto onde estiver especificada, esta seção é baseada no relato de Araujo Castro acerca de sua participação na Conferência do Cairo, disponível em Franco (2007), p. 94-115.

55 E-mails do Embaixador Luiz Augusto de Araujo Castro ao autor, 25 e 29 de agosto de 2013.

fazer referência ao bilhete anterior, indicava o Secretário-Geral do Ministério, Embaixador Vasco Leitão da Cunha, como observador brasileiro. Contudo, naquele mesmo dia, Leitão da Cunha deixou o cargo56, e Jânio redigiu um terceiro bilhete, novamente indicando o nome de Castro57.

Após apressados arranjos de viagem, Castro desembarcou no Cairo na madrugada do dia 4 de junho, logo antes do início da Conferência. Lá, deparou-se com uma contradição: um telegrama do Itamaraty excluía terminantemente a possibilidade do Presidente Jânio Quadros vir a participar da Conferência em Belgrado.

Para Castro, a decisão já tomada pelo não comparecimento do Presidente tornava sem sentido sua missão no Cairo, onde a reunião deveria justamente preparar a cúpula de Belgrado. Nessas condições, Castro preferiu entender que a determinação de que Jânio não iria a Belgrado seria ainda confidencial, e se esforçou para sublinhar, em seus contatos com delegados na Conferência do Cairo, que o governo brasileiro ainda não tinha tomado uma decisão a respeito, justificando, assim, a participação do Brasil como (único) observador no encontro.

Seus esforços nesse sentido foram dificultados pela atuação do Chanceler de Cuba, Raul Roa, único outro latino-americano presente na reunião. Alegando estar agindo com base em informações transmitidas à diplomacia cubana por autoridades brasileiras no Rio de Janeiro, Roa anunciou, em sessão fechada da Conferência, que o Presidente Jânio Quadros participaria da cúpula de Belgrado se a ela fosse convidado. Ao ouvir o representante cubano falar em nome do Brasil – e expressar posição que não

56 Em função de desentendimentos em torno da missão de João Dantas à Europa Oriental, Jânio instruiu Afonso Arinos a demitir Leitão da Cunha do cargo de Secretário-Geral. Leitão da Cunha preferiu entregar o cargo, para evitar que Afonso Arinos se sentisse constrangido a também pedir demissão. Ver Cunha (2003), p. 222-224.

57 CHDD (2006), p. 380 e p. 411-412.

correspondia, no seu entender, à realidade – Castro abandonou o discreto silêncio que havia mantido na reunião até então e pediu para fazer uso da palavra.

Em seu discurso, Castro afirmou que não poderia permitir a ninguém – “nem mesmo o Ministro dos Negócios Estrangeiros de uma nação irmã” – falar em nome do Brasil. Expressou o compromisso brasileiro com a paz e a autodeterminação dos povos, com suas obrigações sob a Carta das Nações Unidas e com o sistema interamericano. Mencionou o repúdio brasileiro ao racismo (citando, inclusive, o suposto “alto nível de democracia racial” no país) e disse que o Brasil acompanhava os debates em curso como uma contribuição positiva à paz e à segurança internacional.

Esclareceu, contudo, que o governo brasileiro reservaria sua posição em relação a tudo aquilo que se discutia.

A irritação que o incidente causou a Castro fica clara no seu relato da reunião e em carta que escreveu a San Tiago Dantas, três meses mais tarde, na qual se referiu a seu “sério atrito” com o Chanceler de Cuba, que colocou o Brasil “na mais ridícula das posições”. Reclamou, ainda, que a diplomacia brasileira teria

“deixado de manifestar nossa estranheza por gesto tão insólito de Roa, ao governo de Havana”58.

Concluída a Conferência, Castro seguiu para o Rio de Janeiro, onde foi recebido em audiência por Jânio para fazer-lhe um relato pessoal do que transcorreu. Ainda no Rio, escreveu um relatório da reunião para os arquivos do Itamaraty, no qual incluiu uma série de considerações notáveis sobre a política externa brasileira.

Ao tentar precisar o lugar do Brasil no cenário global, Castro reconheceu não ser o país “neutro”, pois “ideologicamente é parte do Ocidente”. Isso não significaria, contudo, que o Brasil

58 Franco (2007), p. 168-169.

seria “alinhado” ou pertencente ao “bloco Ocidental”, pois como não era parte da OTAN, não estava juridicamente comprometido com a “‘defesa’ do Ocidente”. O TIAR só versaria sobre ataques ao hemisfério e não ao “Ocidente”. Com base nesse (um tanto quanto tortuoso) raciocínio, Castro conclui que o Brasil “não está alinhado contra ninguém, mas alinhado na defesa do hemisfério”59. Assim, como em suas outras referências ao TIAR, não há indícios de que Castro vislumbrava seriamente a possibilidade de que o Tratado viesse a ser acionado. A menção a ele seria uma forma de recordar a proximidade do Brasil com os Estados Unidos (importante naquele contexto político polarizado), sem tolher a autonomia do Brasil para fazer uma política externa defensora de seus próprios interesses.

Cairo foi o contato mais direto, até aquele momento, que Araujo Castro teve com o efervescente movimento político das novas nações afro-asiáticas. Embora percebesse a relevância daquele fenômeno para a política mundial e a importância, para o Brasil, de se engajar naquele processo, reconheceu também os riscos de uma aproximação demasiadamente entusiasmada do país com o Movimento Não Alinhado. Observou que comparecimento do Presidente Quadros à reunião em Belgrado suscitaria:

toda uma série de especulações sobre os rumos de nossa política exterior, com graves reflexos sobre nossa ação diplomática no continente. O México, particularmente, não deixaria de explorar, a fundo, junto às chancelarias do hemisfério, as brechas que se ofereceriam com o delineamento de uma “nova” posição brasileira60.

59 Franco (2007), p. 95-96 (grifos no original).

60 Franco (2007), p. 110-111.

Mais grave ainda, Castro apontou que as decisões a serem tomadas no seio no Movimento Não Alinhado teriam “um cunho de radicalismo anticolonialista, que estaremos dificilmente em condições de aceitar, sem reservas”. O Brasil sofreria desgaste ao expressar suas numerosas reservas às resoluções a serem adotadas.

Continuava Castro:

Em confronto com a de países muito mais radicais, nossa posição pareceria tímida e indecisa, em contraste com a posição ativa e independente que o presidente Jânio Quadros vem procurando assumir. É preferível ser o elemento mais avançado de uma corrente de conservadores a ser o elemento mais tímido e reacionário numa assembleia de radicais61.

Consciente, contudo, da importância de aproximar o Brasil da África e da Ásia, Castro formula proposta alternativa:

O presidente Jânio Quadros poderia contemplar a possibilidade de um comparecimento seu à Assembleia Geral da ONU, onde encontraria os chefes de Estado não alinhados, em terreno nosso [...] Nessa hipótese, teríamos, entretanto, de assentar meticulosamente, desde já, as bases de nossa atuação frente aos grandes problemas mundiais, de maneira a mais perfeitamente definir as bases de nossa política exterior independente, não alinhada contra ninguém, mas alinhada em favor da paz.

Num certo sentido, podemos dizer que o Brasil nunca desenvolveu uma ação política na Assembleia Geral da ONU; nunca compareceu à Nova York com plano de ação articulado, limitando-se quase sempre a uma reiteração

61 Franco (2007), p. 112 (grifo no original).

de princípios e posições. E estamos convencidos de que, convenientemente aproveitado por nós, as Nações Unidas constituíram o melhor foro para uma mais perfeita caracterização de nossa nova política exterior, em bases de completa independência62.

Vários aspectos desse trecho merecem destaque, a começar pela caracterização das Nações Unidas como “território nosso”, termo que sugere uma eficientíssima atuação brasileira na Organização. No entanto, essa imagem é desfeita logo adiante com a afirmação de que o país “nunca compareceu à Nova York com plano de ação articulado”.

O ponto de Castro aqui é semelhante àquele que fez na ESG, em 1958, quando reconheceu o potencial das Nações Unidas de

“disciplinar, coordenar, suavizar e metodizar” a política de poder.

O multilateralismo universal trazia consigo possibilidades de ação que inexistiam na relação bilateral com os Estados Unidos ou no sistema interamericano. Essas possibilidades, somadas às mudanças pelas quais o Brasil passara na última década, não eram acessórias: ao contrário, eram verdadeiros vetores de transformação:

pela primeira vez, tentamos situar o Brasil no mundo e definir uma linha política brasileira em função e dentro do contexto da política das nações. Estamos diante de um problema novo. Pela primeira vez se coloca, entre nós, o problema da política exterior e a colocação do problema não poderia ser feita sem divergências e controvérsias63. Afirmar (de forma um pouco exagerada) que se colocava pela “primeira vez” o problema da política exterior era chamar

62 Franco (2007), p. 112.

63 Franco (2007), p. 113.

atenção para os horizontes do Brasil que agora eram outros, e para a necessidade, que Castro anunciara na ESG, de ajustar a

“mentalidade ou psicologia internacional” brasileira à nova posição relativa do país no sistema internacional.

Castro reconheceu que esse processo seria controverso e enxergou, desde logo, o que viria a ser um dos elementos mais problemáticos para a nova atuação multilateral que preconizava para o Brasil. Em suas conversas com delegados africanos no Cairo, escutou críticas ao apoio brasileiro ao colonialismo e foi advertido de que o comportamento do Brasil nas votações sobre o tema nas Nações Unidas seria o “banco de prova” nesse sentido.

Estaria longe ser a última vez que Castro se deparava com essa intricada questão.

No documento Um mundo que também é nosso (páginas 70-76)