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A Guerra Fria antes de outubro de 1962

No documento Um mundo que também é nosso (páginas 92-96)

3. Sementes da détente (Rio de Janeiro, 1961-1963)

3.3. A Guerra Fria antes de outubro de 1962

Em junho de 1962, Castro foi novamente convidado a realizar palestra na Escola Superior de Guerra. Dessa vez, o título que lhe foi dado para sua exposição foi “Panorama Mundial: sistemas mundiais e regionais de segurança”87. O texto contém uma série de aspectos interessantes, inclusive considerações sobre a relativa eficácia dos sistemas de segurança coletiva das Nações Unidas e do sistema interamericano e de sua compatibilidade entre si.

No entanto, seu elemento mais marcante é a caracterização do

87 Araujo Castro (1962).

sistema internacional à época, que descartava o predomínio absoluto tanto da ideologia, quando das questões militares.

Castro começou por rejeitar a visão segundo a qual a situação internacional seria definida apenas pelo conflito bipolar. Ressalvou que “na realidade, à margem desse conflito e sofrendo seu impacto e sua influência, subsistem inúmeros fatores e circunstâncias que compõem a crise atual e o quadro geral da guerra fria”88. Entre esses, estariam “os antagonismos latentes e inconciliáveis” entre o Norte e o Sul, entre potências grandes e menores e entre potências nuclearmente armadas e não nuclearmente armadas89. Apontou, ainda que “nem sempre é impossível um acordo tácito e tático”

entre as superpotências e que nem mesmo os blocos ocidental, comunista e não alinhado tinham perfeita homogeneidade interna, em termos de visão de mundo90.

Para Castro, o embate bipolar não era fundamentalmente ideológico. Argumentou que os países comunistas não seriam

“fanáticos de uma ideia ou de uma ortodoxia econômica”; ao contrário, “o fanatismo comunista se vincula a seus objetivos e não às suas ideias. O marxismo-leninismo é, assim, o instrumento de uma política e não uma estrita finalidade”91. A conduta do bloco comunista não seria dada pela doutrina do marxismo-leninismo, mas pela “pura e simples política de poder”.

A operação secular da política de poder teria sido profundamente alterada pelo surgimento das armas atômicas e Castro não acreditava que o pensamento contemporâneo estava acompanhando essa transformação da realidade:

88 Franco (2007), p. 3.

89 Naquele momento, os Estados Unidos, a União Soviética, o Reino Unido e a França possuíam artefatos atômicos; a China só os adquiriria em 1964.

90 Araujo Castro (1962), p. 4.

91 Franco (2007), p. 5.

sucessivamente se tornaram obsoletas e sem sentido todas as grandes teorias políticas formuladas no após guerra, desde o containment de George Kennan, através das situações de força de Acheson, até a brinkmanship de Foster Dulles. A própria teoria da “retaliação maciça”, sobre a qual parecia apoiar-se toda a estratégia ocidental, encontra-se em fase de gradual e franca desmoralização.

É sabido que os Estados-Maiores novamente se preocupam com a possibilidade de novas “guerras limitadas” e dão especial ênfase à técnica das guerrilhas92.

Apontou, ainda, que embora o comunismo estivesse “contido”

na Europa, seria “mais inquietante o quadro que se oferece na Ásia e em certas áreas da África e América Latina”, e que, “num erro monstruoso de propaganda, o Ocidente permitiu que os comunistas se assenhoreassem, com sinceridade altamente discutível, de todas as ideias dinâmicas do nosso tempo: Paz, Justiça Social, Revolução, Desarmamento, Coexistência, etc.”. Observou, ainda, que a opinião pública doméstica nos países ocidentais lhes dificultava adotar uma política externa mais flexível, não sendo, portanto,

“uma conselheira segura para a estratégia e a tática de uma política de poder”93. Embora ele não o tivesse dito explicitamente, essa constatação poderia se aplicar também ao caso brasileiro.

À primeira vista, o quadro apresentado por Castro parecia pessimista. Falava de um mundo dominado pela política de poder, onde o surgimento de armas de capacidade destrutiva sem precedentes inviabilizava as técnicas tradicionais – e mesmo as mais recentes – de conduzir essa política de poder. Que tipo de ação seria possível nessas condições? Em particular, como poderiam

92 Araujo Castro (1962), p. 7 (grifos no original).

93 Araujo Castro (1962), p. 8-9.

as Nações Unidas “disciplinar, coordenar, suavizar e metodizar”

a política de poder?

Aqui, Castro introduziu na equação elemento mais otimista.

Afirmou que a operação da política de poder não poderia ser reduzida a um equilíbrio militar:

Suponhamos que o conflito nunca se resolva em termos militares, suponhamos que o fatídico botão nunca seja apertado, que o apocalipse atômico e nuclear nunca venha a materializar-se. [...] De qualquer maneira, o conflito prosseguirá, em outras áreas e outros setores [...] sob forma de pressões políticas e econômicas94.

O surgimento das armas nucleares em grande medida inviabilizava o poderia militar como instrumento para resolver contendas. No entanto, a diplomacia continuava a ser uma ferramenta útil, com amplo escopo de ação. Castro defendeu, portanto,

um longo processo diplomático que vise ao gradual relaxamento de tensões e à melhor compreensão dos pontos de vista antagônicos. Talvez a sorte do mundo não esteja tão indissoluvelmente ligada aos botões da guerra atômica e talvez se resolva por outros meios95.

As armas nucleares não inviabilizariam, portanto, a diplomacia, e no campo diplomático, um país não teria que possuir armas nucleares para poder fazer uma contribuição. Nessa seara, o Brasil poderia participar, especialmente no contexto das Nações Unidas, no qual a “admissão em massa das novas nações africanas e asiáticas veio alterar profundamente a composição política da

94 Araujo Castro (1962), p. 13.

95 Araujo Castro (1962), p. 13.

Assembleia [Geral]”, passando esta a exercer relevante “pressão moral” sobre as grandes potências96.

No entanto, esse raciocínio de Castro rapidamente se tornaria tão obsoleto quanto as “grandes teorias políticas formuladas no após guerra” que ele mencionara. Os acontecimentos de outubro de 1962 mudariam profundamente a relação entre as superpotências e, com isso, o espaço para ação diplomática no contexto da Guerra Fria. De toda forma, seguiria válido o entendimento de Castro sobre a natureza fria e realista do jogo de poder no qual o Brasil se inseria.

3.4. A crise dos mísseis e os primeiros

No documento Um mundo que também é nosso (páginas 92-96)