• Nenhum resultado encontrado

A cultura cotidiana e o reencantamento do saber

Mas há interlocutores que não se contentam com zonas autônomas temporárias64 e buscam configurar zonas interati-

vas permanentes. Um bom exemplo é representado pelo cole- tivo Ativismo, redução de danos, pesquisa e informação sobre drogas (ANANDA), que é formado por pesquisadores, reduto- res de danos e ativistas em prol da legalização da maconha. A origem do coletivo se deu em meio à cultura universitária soteropolitana, mas seu campo de ação não se fechou nesse território, na busca por estabelecer um contato frequente com a sociedade civil.

Quando surgiu, em 2007, a meta da comunidade era quase que exclusivamente pesquisar os usos psicoativos e não psicoativos da cannabis. Em função das proibições da Marcha

63 Como também foi registrado em shows de rock na Concha Acústica do Tea-

tro Castro Alves ou em shows de jazz no Museu de Arte Moderna.

64 A zona autônoma temporária é uma categoria usada por Bay que remete a

configurações efêmeras onde, por um período curto de tempo, se estabele- cem regras e controles alternativos que imputam sentido, principalmente para os que se encontram nos limites internos da zona. Não é um cance- lamento dos valores dominantes, mas sua suspensão ou, pelo menos, sua relativização. Os festivais de música eletrônica são exemplos dessas zonas. (VALENçA, 2010, p. 153).

da Maconha65 nos anos seguintes, quando, inclusive, em de-

corrência de uma liminar do Ministério Público, foi instaurado inquérito policial para averiguar se integrantes do coletivo esta- vam fazendo apologia e estabelecendo associação com o tráfico, a ANANDA passou, em 2009, a abraçar, em sua configuração, também ativistas e redutores de danos, resultando em um co- letivo que objetiva desenvolver uma cultura positiva dos usos da maconha. Essa busca por desestigmatização da cultura da maconha é perspectivada pelo coletivo como um processo de reparação de “um erro histórico”, o proibicionismo66.

Se as carteiras de estudante de muitos dos membros da ANANDA foram insuficientes para garantir que o movimento não fosse representado de maneira estigmatizada, a penetra- ção dessa comunidade para além dos espaços estudantis foi intensificada, desde que a proibição da marcha da maconha, em Salvador, pelo segundo ano consecutivo, se tornou um mar- co emblemático na reflexão e ação sobre a problemática con- temporânea das drogas. Vetar o direito à livre expressão dos contrários à criminalização da maconha com o argumento de que tal manifestação pública é apologética de comportamento criminoso e que sua propagação deveria ser restrita ao âmbito acadêmico acabou caracterizando a academia como um espaço de pouco contato com a sociedade civil, fechado sobre si, onde tal discussão não geraria “contágio” reflexivo nos valores vigen- tes. Superar essa perspectiva demandou um grau de confiança e organização que resultou na operacionalização de um blog como ferramenta de comunicação, onde podem ser encontra- dos, além de debates de questões urgentes, como a agressão

65 Marcha que, desde 1994, já vem acontecendo, anualmente, em mais de 200

cidades espalhadas pelo mundo.

66 O proibicionismo se caracteriza por estabelecer controles sociais formais,

sancionando limites sobre práticas culturais de grupos configurados como desviantes, outsiders, da ordem dominante.

que um dos integrantes do coletivo sofreu por parte da Polícia Civil ao ser flagrado portando dois baseados, links que permi- tem acessar centros de atenção, defensoria pública, leis, pes- quisas e entrevistas sobre a temática.

A Marcha da Maconha 2009 foi proibida de ocorrer na data original, após a Justiça acatar uma liminar do Ministé- rio Público. Com essa interdição oficializada, o coletivo adiou o evento e nesse ínterim entrou com recurso jurídico. Em se- tembro de 2009, o coletivo conseguiu um Habeas Corpus que garantiu segurança judicial para a realização da marcha. No dia 5 de dezembro de 2009, a marcha da maconha aconteceu. Em torno de mil pessoas estiveram presentes na manifestação, pessoas de setores distintos da sociedade – além de estudantes e professores, puderam ser identificados médicos, artistas, jor- nalistas e uma simpática Mãe de Santo, devidamente trajada, à frente do cortejo. Como uma sorridente porta-bandeira, ela carregava um cartaz com os dizeres: “Contra a criminalização do usuário da maconha”67.

No Farol da Barra, em uma tarde de sábado, a manifestação fez o trânsito parar de circular por quase uma hora, mas foi per- ceptível que os motoristas e passageiros não manifestaram maio- res irritações. Alguns de dentro dos carros e ônibus sorriam e até cantavam em tom de brincadeira, as músicas que os integrantes da marcha cantavam – sou maconheiro/ com muito amoooor/ foi o refrão mais entoado. Alguns leram os panfletos distribuídos, com surpresa, outros, com ampla receptividade, mas não foram percebidas hostilizações à manifestação. Nesse contexto, a maco-

67 De acordo com um dos organizadores da Marcha: “O lance da Mãe-de-Santo

foi algo muito louco. Ela é quem nos procurou, perguntando se poderia ir na Marcha. Me mandou um e-mail! eu disse que é claro, iríamos adorar, e ela pareceu com os netinhos, a placa já pronta e toda vestida de baiana, inclu- sive com os detalhes verdes. Ela disse que não é usuária mas o filho é, e ela não quer que ele morra por isso”.

nha foi consumida não como substância, mas como informação ressignificada. Nessa busca por uma interpenetração segura com a sociedade civil, o que está em jogo é uma proposta mais ousa- da do que a configuração de zonas autônomas temporárias. Na prática, o coletivo ANANDA buscou sustentar zonas interativas permanentes que garantissem a possibilidade de desfrutar de va- lores culturais alternativos aos estabelecidos, não durante horas ou dias, mas por tempo indeterminado.

Também na dimensão individual, há interlocutores que incorporam a cultura positiva das drogas ao seu discurso po- lítico. Um desses interlocutores explicita que seu estilo de vida cotidiano passa por um reencantamento com o saber:

Pancho Villa – Quando eu era garoto li um livro que fala-

va de várias drogas e pra mim chamou muito a atenção que dizia que maconha era uma droga que não causava overdose, e eu pensei: ‘Que porra é essa?’ Isso instigou várias coisas e, desde então, eu comecei a ler tudo sobre maconha. Na sequência descobri que os amigos no prédio fumavam e as primeiras vezes que fumei pensei: ‘O efeito é muito bom, bom pra caralho!’. Descobri que falavam mal

de uma coisa que não fazia mal. Me senti na obrigação de me colocar como usuário e defender contra alguém que falava mal, que eu sabia que era mentira. Eu sempre

li muito, eu sempre fui da turma o excêntrico, quando eu passei a fumar passei a ser o que defendia a maconha.

(VALENçA, 2010, p. 131).

Essa situação é plenamente compatível com uma postu- ra de alguém que encontrou o reencantamento com o saber, não através da teoria, mas sim, de sua própria prática, o que o levou à ressignificação de estigmas e à construção de um discurso com instrumental universitário intensamente refle- xivo. Pancho (28 anos) almeja não só contestar o parecer de especialistas como também busca se tornar um especialista ao contestar tais pareceres. Nessa perspectiva, interpretando

o ponto de vista da maioria dos interlocutores em relação às suas estruturas de vida, seria mais preciso falar em habitus sociais ao invés de vícios ou mesmo dependência68, para des-

crever seus comportamentos em torno do consumo de drogas. Hábitos porque, se 41% desses interlocutores consomem ma- conha diariamente e outros 50% consomem maconha e álcool semanalmente, estamos nos referindo a um consumo habitual e não ocasional que acontece uma vez por mês ou mesmo por ano. Por outro lado, apenas 5% desses interlocutores relacio- nam, de modo sistemático, sua produção e atuação em papéis cotidianos com o consumo de drogas, daí seria pouco preciso falar em “vício” no sentido de as substâncias ocuparem um lugar central em suas vidas. Nesse enquadre, é possível cogi- tar que o consumo de drogas enquanto reincidência habitual de um comportamento que põe em risco os interlocutores só vem a obter sentido se for possível ser representado como um processo no qual as drogas enquanto objetos de consumo são ressignificadas, acrescentando-se às suas propriedades quí- micas, memórias afetivas positivas. Nas palavras dos próprios interlocutores, é perceptível que haja ressignificações em torno do consumo, resgatando sentidos que estiveram presentes em alguma circunstância marcante do passado:

Mozart – Pra mim droga sempre teve no meio de desco-

bertas. Ninguém sente o que sentiu a primeira vez [can-

tarolando]: ‘A primeira vezzzz!/tudo começou/ a primeira

vezzz!’ [Risos]. (VALENçA, 2010, p. 155).

68 Não é apenas no senso comum que a representação do sujeito como “vicia-

do” ou dependente é dominante em detrimento da representação do sujeito como usuário. Na base metodológica de muitas pesquisas, o uso na vida acaba sendo interpretado como se o fato de usar drogas uma vez, indicasse que o usuário se tornou dependente, quando não “viciado”.

O sentido desse cantarolar de Mozart pode ser interpreta- do como: ninguém sente o que sentiu a primeira vez, mas con- tinua tentando sentir. A repetição de um comportamento em busca de uma representação afetivamente carregada de senti- do pode até ser interpretada, psicanalítica ou filosoficamente, como uma busca do resgate do momento primordial ou do eter- no retorno ao ponto de partida. Mozart ao transformar o axio- ma em música – o que, nesse contexto, quer dizer poesia – já demonstra estar dando algum sentido, no mínimo, momenta- neamente prazeroso à sua busca. Já as palavras de Marley e de Hofmann quase fecham o sentido em torno da impossibilidade de resgatar esse prazer arcaico e de certa maneira arquetípico, associado ao consumo de substâncias psicoativas:

T.V. – O que você gostava no crack que não gostava na

cocaína?

Marley – Era muito mais forte. Uma sensação de euforia,

cê ficava... sentia o gosto e queria sentir mais e cada vez mais. Cada vez que você fumava mais você sentia menos o gosto. Cê fumava mais e mais pra sentir o gosto que sentiu na primeira vez. (VALENçA, 2010, p.156).

Hofmann – Quando viajei a Amsterdã, tive acesso a LSD,

êxtase, depois eu voltei pra cá interessado em ter outras experiências com essas coisas. Eu tinha 22 anos. Eu fui a Amsterdã com a intenção de conhecer essas coisas. Quan- do eu voltei pra cá foi uma decepção atrás da outra, eu nunca mais encontrei o que eu encontrei lá. (VALENçA,

2010, p.156).

O eterno retorno a um momento de satisfação sacraliza- do enquanto representação é uma interpretação que cabe para essas falas de Mozart, Marley e Hofmann. A busca, mesmo não atingindo seu objetivo último – na impossibilidade da satisfa- ção plena –, cumpre seu papel enquanto ritual, pois é o que motiva o consumidor a consumir mais. Enquanto Mozart emi-

tiu uma expressão de contentamento ao falar sobre a maconha sorrindo e gesticulando expansivamente, Marley falou sobre o crack cabisbaixo e pensativo. Já Hofmann se expressou sobre as substâncias sintéticas com serenidade e olhos que pareciam não piscar para não perderem minha reação às suas palavras. Outros interlocutores, quando as configurações de con- sumo em relação às drogas passam a ter seus sentidos incon- tornavelmente esvaziados, buscam configurações onde novas ritualizações de consumo possam ter curso. É o caso de Bla- vatsky que se cansou de fumar até dez baseados por dia:

T. V. – E como foi quando ao chegar aos 28 anos de idade

esta situação de consumo intenso de maconha se tornou incômoda?

Blavatsky – Quando eu entrei em contato com esse chá [a ayahuasca], ele possibilita à gente um contato com o sa-

grado, e é uma coisa que do ponto de vista da experiência, é muito mais forte do que a maconha. Comecei a perceber que aquele uso compulsivo da maconha tava me prejudi- cando, no sentido de que eu tenho uma mediunidade mui- to aguçada. Na minha visão de mundo, aquilo abriu minha energia pro campo espiritual. Como eu tinha essa mediuni- dade, eu captava muita coisa que não era legal, eu convi- via com pessoas que não tinham uma energia muito legal, em contextos tipo bares, enquanto que a ayahuasca era uma substância psicoativa usada dentro de um contexto ritualístico. Essa religião tem uma visão negativa de dro- gas, então, eu acho que isso influenciou também, eu tava num grupo com uma visão e eu tava com um comporta- mento fora da visão. (VALENçA, 2010, p. 159).

Blavatsky passou a interpretar que o seu campo de lazer onde havia consumo de maconha já não proporcionava mais satisfação e sim um desconforto, “uma visão negativa de dro- gas”. Desse modo, ela começou a tentar reconfigurar suas de- mandas de acordo com a comunidade que estava começando a conhecer, desconstruindo uma carreira na comunidade de

maconheiros para construir uma carreira que trazia novos sen- tidos, novos significados para sua busca de satisfação no terri- tório dos ayahuasqueiros.