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Sacizeiro, usuário e patrão: a “carreira” do consumidor de crack

Durante o trabalho de campo realizado nos circuitos de consumo de crack em Salvador, Bahia – Centro Histórico – eu buscava compreender principalmente, como se forma uma “carreira de uso de crack”, a partir da análise de trajetórias de consumo. O suporte metodológico foi o método utilizado por Becker, na década de 1950, com usuários de maconha. Assim como Becker, estava interessada em apreender a forma como os meus interlocutores montam o conhecimento necessário para iniciar o consumo de crack, como esse conhecimento é ad- quirido e compartilhado na sua rede de sociabilidades e como constroem noções sobre formas seguras de uso da substância.

41 MALHEIRO, L. S. B. Sacizeiro, usuário e patrão: um estudo etnográfico

sobre consumidores de crack no Centro Histórico de Salvador. Monografia apresentada ao Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia.

Por serem indivíduos com histórico de 8 a 15 anos de uso da substância, estava particularmente interessada em conhecer como se fixa e constrói a “cultura da droga”, segundo Becker (1976), “um conjunto de entendimentos comuns sobre a droga, suas caracterís- ticas e a maneira como ela pode ser melhor usada”.

As entrevistas em profundidade, com o foco nas trajetó- rias de consumo de drogas, foram particularmente interessan- tes para compreender a formação e o fortalecimento da cultura de uso do crack ao longo da vida do sujeito investigado e da formação da sua “carreira de uso”. Por carreira de consumidor, entende-se, segundo Becker (1966):

[...] uma seqüência de etapas reconhecidas e valorizadas pelos consumidores, a partir de suas experiências com a substância e dos modos de reação que desenvolveram em relação aos vários controles sociais relati- vos ao consumo de drogas: segredo, manei- ras de manter o uso de drogas, e a postura diante da moral vigente.

No seu estudo com usuários de maconha, Becker (1966) mostra como atitudes individuais são modificadas a partir da experiência com a substância em suas etapas de aprendizado e identifica três etapas: a primeira seria a de aprender a técnica de uso da substância; em seguida, seria o aprendizado acerca da percepção quanto aos efeitos; e, por fim, estaria o apren- der a desfrutar os efeitos da substância. Depois dessa etapa, o consumidor passa por três outras etapas – a do iniciante, a do usuário ocasional e a do uso regular. O estudo de Becker sobre as etapas de aprendizado com a experiência psicoativa foi um dos trabalhos que guiaram as minhas observações de campo e, assim, procurei perceber as categorias nativas que descrevem as etapas do consumidor.

Foram, também, de fundamental importância, para a compreensão das modalidades de uso da substância bem como do estabelecimento de controles sociais informais que agiriam na regulação do uso, os trabalhos de Norman Zinberg (1984) e Jean Paul Grund (1993) cuja posição teórica me levou à opção de selecionar, para o presente estudo, apenas consumidores que usavam a substância de forma “controlada” para poder perceber as regras e os valores que emergiam do conhecimento adquirido em anos de uso da mesma substância.

Vale lembrar que Norman Zinberg (1984), nesse estudo pioneiro, por abordar, pela primeira vez na literatura sobre dro- gas, usos controlados de substâncias ilícitas (fator que, na épo- ca, era pouco conhecido), faz uma importante distinção entre uso compulsivo e uso controlado de substâncias ilícitas. Por uso controlado, compreende-se um uso funcional, sem grandes custos sociais e pessoais para o consumidor e a sua rede so- cial. O uso compulsivo, ao contrário, seria disfuncional e com altos custos para o consumidor. Assim, o que caracterizaria, segundo o autor, o uso controlado é ser este regido por regras e sanções sociais que teriam por função regular o consumo da substância em um determinado meio social.

Na relação entre pares, no exercício da sociabilidade e em interação com o aprendizado com a substância, emergem os controles sociais informais que se relacionam com a cultura hegemônica e com a cultura de uso de crack que interessam ao olhar antropológico, principalmente, por revelarem as nuances da regulação do uso da droga para o estabelecimento de um padrão controlado de uso da substância, bem como os aspec- tos socioculturais que estariam envolvidos neste processo. Por vezes, o consumidor não se dá conta do funcionamento desses controles, principalmente, por se tratarem de acordos tácitos que emergem no processo de sociabilidade entre pares. Assim,

a ciência antropológica, através da etnografia, é de extrema importância para o estudo dessas práticas, por viabilizar uma descrição densa de contextos até então ocultos e desconheci- dos. É função do antropólogo que busca estudar estes contex- tos estar atento a esses acordos implícitos nas práticas sociais e individuais de forma que o trabalho de campo deve focar a observação desses rituais sociais.

Estar atento para esses controles sociais significa, segun- do Zinberg (1984), observar definições internas sobre usos acei- táveis (e não aceitáveis), os padrões estabelecidos e a seleção do contexto físico, a fim de proporcionar experiências seguras e agradáveis e identificar efeitos negativos e os métodos utiliza- dos para prevenir esses efeitos. Daí apreende-se que diferentes contextos e sujeitos produzem diferentes estilos e modalidades de consumo.

Jean Paul Grund (1993), em seu estudo sobre compor- tamento de risco entre soropositivos e usuários de drogas in- jetáveis, retoma as ideias de Zinberg (1984), ratificando a sua tese de autorregulação do uso de drogas e acrescentando mais dois fatores na compreensão do fenômeno: a disponibilidade da droga e a estrutura de vida. Grund (1993) afirma a importância de controles sociais que partam da base sociocultural dos con- sumidores, através do estudo de sequências estereotipadas de consumo de drogas – as regras/rituais de administração –, e o aprendizado do consumidor, em sua rede social, figura também como importante fator para a compreensão biopsicossocial da questão.

Segundo esse autor, a disponibilidade da droga interfere nos rituais de uso. Para um usuário regular, a preocupação com a disponibilidade interfere nos padrões de consumo, de forma que os rituais estarão atrelados à facilidade ou dificulda- de do acesso à droga. O foco do usuário na obtenção da droga,

tendo em vista a sua escassez, conduzirá a uma forte limitação de expressões comportamentais quando esta se tornar dispo- nível. Como resultado da escassez da droga, o usuário estaria mais preocupado com formas de obtenção da substância, com a facilitação do seu uso e menos voltado para a autorregulação e para a criação de regras e rituais que visem a proteção à sua saúde.

O acerto desta teoria pôde ser observado no campo estu- dado quando os usuários se queixavam, por exemplo, de épo- cas de falta de maconha nos seus territórios. O uso de maconha entre os interlocutores que estudei é extremamente importante quando eles desejam minimizar os efeitos do uso de crack pois o seu consumo possibilitaria a emergência de outros efeitos no corpo como a sonolência e a fome, tornando-se, assim, um importante regulador do consumo de crack.

De acordo com Grund, a estrutura de vida, a disponibili- dade da droga e as normas, regras de conduta e rituais sociais são fatores que dialogam em um processo circular e lógico no qual eles se reforçariam e se modificariam, de acordo com os resultados alcançados. Os processos de autorregulação no uso de drogas seriam reforçados por esse circuito, chamado por ele de circuito retroalimentado ou feedback circuit (1993, p. 300-1).

Ao final, Grund foi um autor importante para este estudo, pois ele reitera a teoria de Becker e Zinberg (1984) e enfatiza a importância de controles sociais informais no estabelecimento de padrões controlados de uso de drogas. O corpo teórico des- crito foi a base de investigação de consumidores controlados de crack, foco principal desta pesquisa que, em categoria nativa, são denominados de usuários.

A diversidade de categorias sociais e de definição de pes- soas utilizada pelos interlocutores para se referirem às moda- lidades de consumo da droga foi frequentemente constatada.

Há uma linguagem dos espaços e condutas sociais que define o grupo e sua lógica interna, que tenho me empenhado em interpretar através do conjunto das categorias nativas: “saci- zeiro”, “usuário” e “patrão”. A escolha dessas categorias para descrever os diferentes estilos de vida relacionados ao consumo de drogas foi uma tentativa de transcrever a linguagem nativa para a narrativa da antropologia dos usos de drogas. Sendo as- sim, busquei fazer uma correspondência dos conceitos nativos com conceitos oriundos do corpo teórico selecionado. É valido ressaltar que essa categorização corresponde ao discurso dos interlocutores desta pesquisa, os usuários ou pessoas que fa- zem “uso controlado” de drogas e não de outros atores sociais. O “sacizeiro” seria o consumidor iniciante, aquele que não consegue regular o uso devido ao pouco tempo de contato com a substância, segundo a classificação de Becker. Seria o indivíduo que tem um uso compulsivo e disfuncional de cra- ck, sem emprego fixo e cuja atividade de trabalho varia de pe- quenos furtos à mendicância, o que torna a sua estrutura de vida precária. Tem um maior comprometimento físico e social, além de modalidades de consumo mais severas, chegando a usar grandes quantidades por dias seguidos e não recorre a nenhuma discrição para o uso. Segundo uma interlocutora, o sacizeiro é:

- [...] aquele que você reconhece logo; não consegue escon- der que fumou o crack. Não [es]tá acostumado com a onda e fica no pânico; você reconhece fácil um sacizeiro, ele não faz questão de se esconder. Fuma na frente de todo mundo, fica no pânico, não se controla, quer usar toda hora, quando tem a pedra, não quer dividir, é guloso, vive sujo, fedido... Por uma pedra de cra- ck, é capaz de fazer qualquer covardia, não pensa no dia seguin- te, só pensa na droga. (VANESSA).

É muito frequente que os interlocutores enfatizem, a todo momento, que eles não são sacizeiros, são usuários, porém, quando conversamos sobre suas trajetórias de vida, é recorren- te nas suas falas, assumirem que um dia já foram sacizeiros, mas hoje não são mais. De uma forma geral, o sacizeiro não frequenta as rodas de fumo dos usuários, tampouco circula pelos mesmos espaços nos seus territórios. Constatei que, ge- ralmente, os usuários se referem aos sacizeiros para enfatizar determinadas usos não aceitáveis, sendo esses usos disfuncio- nais aqueles que mais se afastam do ideal deles. O sacizeiro faz um uso que Zinberg (1984) chamaria de compulsivo.

Diferente dos sacizeiros, o “usuário” é um indivíduo que tem mais tempo de uso de crack e um saber acumulado a partir do seu horizonte de experiências com a substância. O termo usuário parece ser uma categoria nativizada apreendida, tal- vez, através do contato que esses indivíduos mantiveram com programas de redução de danos e serviços de tratamento, onde são chamados dessa maneira. Todos os interlocutores que acompanhei durante o meu trabalho de campo se autodenomi- nam usuários e todos já utilizaram serviços como o Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD)42 e a Aliança

de Redução de Danos Fátima Cavalcanti (ARD-FC)43, serviços

nos quais a categorização como usuário é corrente entre os téc- nicos. É válido ressaltar que a minha imersão em campo só foi possível por ter trabalhado como supervisora de uma equipe de redução de danos na ARD-FC de modo que pude ter contatos

42 Serviço de extensão da Faculdade de Medicina da Bahia, ligada a Universi-

dade Federal da Bahia. Foi o primeiro serviço a fazer trabalho de prevenção nos territórios psicotrópicos na década de 90, com um projeto intitulado Consultório de Rua.

43 Serviço de extensão permanente da Faculdade de Medicina da Bahia que

atua na lógica da Redução de Danos na cidade de Salvador, acessado usu- ários de drogas em seus contextos de uso.

diários com a população usuária de drogas do Centro Histórico de Salvador.

Os membros dessa categoria seriam o que Becker (1966) denomina de usuário regular, aquele que faz uso controlado da substância. Ele desenvolve uma série de estratégias para regu- lar o uso da substância na sua vida sempre corrida e, como o consumo da substância não pode interferir nas suas atividades de trabalho, desenvolve um tempo e um lugar adequados para o consumo. Dificilmente, observa-se usuários nas ruas, no Pe- lourinho, fazendo uso de crack sem maiores discrições, pois eles selecionam o espaço físico de modo a restringir a inserção de pessoas estranhas naquela rede social. Depois de oito meses de trabalho de campo trabalhando na equipe de redução de danos com os usuários, pude ser aceita no grupo e observar as cenas de uso de crack em dois casarões abandonados da rua 28 de setembro. Eles realizam uma série de estratégias para manter estável o seu uso de crack e possuem um código de condutas para a manutenção da sua rede de sociabilidade, como podemos notar na fala a seguir:

- Aqui tem um cotidiano que é o seguinte, tem pessoas que tem o autocontrole para usar, sair, voltar, mas tem outras não, que só fica se atiçando mesmo. Se atiça no bagulho e fica naque- le negócio, não quer se cuidar, vende tudo o que tem e tal. Isso a gente não aprova, esse pessoal não entra aqui para fumar, de jeito nenhum. (JORGE).

Examinando as suas estruturas de vida, podemos dizer que esses indivíduos possuem trabalho estável, mesmo que não regulamentados, como prostituição, guardador de carros e pequeno tráfico de drogas, estável no sentido de permitir a obtenção de renda fixa e não enfrentam grandes dificuldades de obter fundos para sustentar suas atividades de lazer e o seu

uso de drogas, o que possibilita a manutenção do seu estilo de vida. Na análise das suas trajetórias de vida, interessava- -me compreender o início do consumo de drogas e as variações nesse uso ao longo da sua vida até chegar ao uso controlado da substância. Refazendo as suas trajetórias de consumo, obser- va-se que, no começo do uso de crack, esse controle era difícil e, muitas vezes, não era importante no momento, pois estavam sempre preocupados em garantir a próxima dose. Ao longo dos anos, assumem uma postura mais reflexiva perante o seu uso. Nesses momentos da sua vida nos quais o indivíduo saía do uso para o abuso de drogas, os significados atribuídos a uma “recaída” nos revelam as determinantes socioculturais que pos- sibilitaram a emergência de um uso controlado ou compulsivo.

O padrão de uso controlado de crack é pouco abordado em pesquisas científicas que focam em pessoas que consomem crack, porém, na sua pesquisa de doutorado em Psicobiologia, Lucio Garcia, também identifica padrões de uso controlado de crack na cidade de São Paulo. O pesquisador define uso con- trolado por “uso em que o crack não assume papel central no estilo de vida do usuário”, intercalando a substância em ques- tão com outras atividades da vida cotidiana.

Por último, temos o “patrão”, categoria também usada pelos usuários para se referirem a comerciantes mais especia- lizados da substância. Tive a oportunidade de conversar algu- mas vezes com um patrão, no momento em que acompanhava uma usuária na compra da sua substância. Geralmente, as descrições que me eram dadas pelos usuários correspondiam às minhas observações de campo em relação aos patrões.

O patrão tem a sua atividade centrada na venda da subs- tância, haja vista que ele é a pessoa responsável pela regulação do comércio na zona estudada. Dificilmente, se observa um pa- trão fazendo uso compulsivo da substância, até mesmo porque

isto impossibilitaria a manutenção de um mercado lucrativo de drogas. Os usuários se referem aos patrões sempre com muito respeito e, em geral, mantêm com eles uma relação amistosa, o que possibilitou a minha aproximação através dos meus inter- locutores. Durante conversas informais, os patrões revelaram que só é possível assumir essa função se houver controle no uso de crack. Observa-se, também, um desprezo para com a fi- gura do “sacizeiro”, que está sempre “devendo na boca”44 e que

dificultaria o comércio.