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Sabemos que, na adolescência, o sujeito é convocado a significar sua existência não mais sob o lúdico infantil, colo- cado de lado pela passagem pubertária, mas sob diferentes dimensões do agir, o que nos aproxima da clínica com adoles- centes. Como vimos, essas dimensões do agir visam atenuar a angústia que emerge nas questões suscitadas pela travessia da adolescência, em que, particularmente, o posicionamento sexual deve fazer a sua marca.

Percebemos, nessa clínica institucional, que as dimen- sões do agir (o consumo, o tráfico, os atos delituosos e violen- tos) são reveladoras de uma falha essencial. Trata-se da falta de uma inscrição simbólica que possibilite a esses adolescentes significarem sua existência através das trocas e dos desliza- mentos substitutivos. A aproximação dos objetos se dá, sobre- tudo, pelo rapto, pela usurpação. (MELMAN, 1992).

Na clínica com esses jovens há um movimento de entra- das e saídas, presenças e ausências que refletem a dificuldade de estarem inseridos em um contexto institucional, de forma mais organizada, pela falta de recursos simbólicos que lhes possibilitariam aquiescer às regras requeridas para este conví- vio. Muitos são atendidos individualmente, mas, para outros,

esta oferta não é suficiente para a manutenção do tratamento e, por essa razão, o Centro funciona com um dispositivo insti- tucional clínico em que diferentes estratégias se articulam.

Como dissemos a Oficina destinada aos adolescentes ins- tala um TEMPO de funcionamento, com um começo e um fim, em encontros semanais. Nele se estabelecem regras de não vio- lência e de respeito à fala de cada um. Compromisso, esboço de lei acordado entre os integrantes.

A estratégia grupal, pelos efeitos imaginários de cola que suscita entre os participantes, favorece a transferência institu- cional e opera como um TEMPO de travessia, de restauração de um espaço lúdico, propiciador de deslizamentos significantes, subitamente rompidos por um agir incessante. Esse agir repe- tido parece impossível de ser barrado, contornado.

As atividades ofertadas propiciam também um TEMPO de instalação de outros modos de fazer, diferente da dimensão do agir em que estão capturados. O trabalho de colagem, a cons- trução de maquetes, a discussão de filmes, a pintura, os dese- nhos, a leitura, se misturam no envolvimento da atividade com a fala de cada um que, aos poucos, revela suas inquietações, seus temores. A Oficina é um espaço em que se possibilita aos jovens um fazer capaz de delinear bordas, contornos, para que possam criar e produzir, na tentativa de produzir um desloca- mento do “usar” para “o falar da” droga.

Assim, a direção da Oficina instala um TEMPO, que visa também o desmonte da cumplicidade de um dizer sobre a dro- ga, que se pensa, a princípio, ser igual para todos. Dessa for- ma, os efeitos do trabalho no grupo surgem por vezes na emer- gência de uma fala, em contraposição à fala do outro:

- Você não nasceu pra ser ruim, você nasceu pra ser algu- ma coisa.

- Por que da sua boca não sai nada que preste?...

- Você sai pra usar droga e deixa a filha com sua mãe, mas a filha é sua!

Esses efeitos devem possibilitar a construção de alguma responsabilidade sobre o fazer e o questionamento de um agir incessante, em que a droga é, por vezes, a única saída possível. O trabalho da Oficina instaura um TEMPO que permita a passagem do agir sem limites, para um escutar, um pensar em outros modos de fazer, através de novas experiências e do encontro com outros objetos do mundo, outras possibilidades de escolha e construção de saídas.

O atendimento a adolescentes usuários de drogas em si- tuações de risco deve comportar múltiplas intervenções. Res- saltamos, dentre elas, as estratégias de redução de riscos e da- nos nos espaços urbanos, a permanência transitória, em tempo integral, nos centros de atenção psicossocial voltados para essa população, além do incremento de dispositivos comunitários que propiciem a inserção desses jovens no campo da educação, da cultura e do lazer.

No âmbito da clínica institucional com jovens usuários de drogas, a Oficina Tempo de Adolescente se configura como uma dentre muitas estratégias possíveis na abordagem clínica desse fenômeno. Entretanto, os limites dessa experiência não devem ser minimizados. Mas é inegável, ao menos para esses jovens, excluídos, rechaçados das instituições, marginalizados e seguindo trajetórias errantes, que o CETAD se configura no seu próprio dizer, como o único lugar que têm para ir e para falar de si. Um lugar onde se sentem acolhidos e, sobretudo, escutados.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Daniel. F.; FONTENELE, Laéria. Adolescência e crise: uma visão psicanalítica. Disponível em: <http://www.

corpofreudiano.com.br/txtdfc1.doc>. Acesso em: 20 abr. 2009. CHAGAS, Arnaldo. Adolescência: um fenômeno contraditório.

UFRGS. Disponível em: <http://www.pailegal.net/fatpar. asp?rvtextold=482489451>. Acesso em: 15 abr. 2009.

MELMAN, Charles. Alcoolismo, delinqüência e toxicomania. São

Paulo: Escuta, 1992.

MUZA, Gilson. M.; COSTA, Marisa P. Elementos para a elaboração de um projeto de promoção à saúde e desenvolvimento dos

adolescentes: o olhar dos adolescentes. Cadernos de Saúde Pública,

v. 18, n. 1, p. 321-28, 2002. Disponível em: <http://www.scielosp. org/pdf/csp/v18n1/8169.pdf>. Acesso em: 30 abr. 2009.

NERY FILHO, Antonio; TORRES, Inês Maria Antunes. Drogas: isso

lhe interessa? Salvador: CETAD/UFBA – CPTT/PMV, 2002. 54p. TAVARES, Luiz Alberto. Adolescência e toxicomanias: paradigmas da modernidade.In:TAVARES, Luiz Alberto et al. (Org.). Drogas:

tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, 2004. p. 133-43.

Miriam Gracie Plena77

“Salvador, Centro Histórico, julho de 2004: um grupo de jo- vens usuários de drogas circula rapidamente por algumas casas desgastadas pelo tempo, nas ruas mais escondidas das áreas que ainda não foram beneficiadas pelos projetos de restauração do Pe- lourinho. Movimentam-se em contatos fugazes uns com os outros, em constante ‘entra-e-sai’ dos velhos casarios, denotando uma an- siedade irreprimível. A maior parte deles se apresenta vestida de forma descuidada: com roupas sujas, descalços, cabelos desali- nhados, bocas feridas com pequenas queimaduras, provavelmente como conseqüência do uso de cachimbos improvisados com mate- riais cortantes ou plásticos feitos para fumar o crack”.

O trecho acima é um recorte das observações que ilus- tram o panorama de inúmeros jovens em situação de rua e uso de drogas, vivendo sob condições de alta vulnerabilidade social e, por isso, expostos a graves riscos à saúde física e psíquica, o que se repete no cotidiano de dezenas de cidades brasilei- ras. Ainda assim, é um quadro que persiste há mais de duas décadas e, paralelamente, ainda se constata o grande déficit de serviços especializados para o atendimento dessa população (NERY FILHO, 1993; NOTO et al., 1993; 1997, 2003; BUCHER,

1996; CARVALHO, 1999; DIOS, 1999; CEBRID, 1983, 1987, 1989, 2004).

O consumo de substâncias psicoativas é algo comum a cada sociedade em todos os tempos (ESCOHOTADO, 1994). A sociedade contemporânea vai além, sobretudo em relação aos psicoativos lícitos, como o álcool, estimulada por uma sedutora publicidade midiática e pelos psicotrópicos, largamente pres- critos na prática médica. Paradoxalmente, as drogas ilícitas são demonizadas e consideradas uma praga com capacidade de provocar uma toxicomania coletiva, com ares de uma incon- trolável “epidemia social”.

A sociedade, em um movimento circular, paga o preço de suas contradições, através do sofrimento dos indivíduos e de suas famílias quando se tornam reféns de uma dada subs- tância psicoativa, vítimas dos excessos de um gozo desmedido, sem saber como lidar com as repercussões de tamanhos desa- certos.

Segundo referências de Escohotado (1994), a ilicitude atribuída a algumas substâncias psicoativas varia de acordo com a ideologia dominante em cada período histórico e com as conveniências sociais e econômicas de uma dada sociedade.

O uso clandestino de substâncias psicoati- vas ilícitas conduz seus usuários a viverem em circunstâncias que os abrigue da repres- são policial, o que determina, muitas vezes, ‘o viver na marginalidade’ e faz com que o uso da droga ocorra em condições de falta de higiene e cuidados, propiciando maior risco de contaminação de doenças [...]. (OLI- VEIRA, 2009, p. 60).

Além disso, e apesar dos problemas de saúde, a condição de estar à margem produz o afastamento desses usuários da rede de serviços de saúde e sociais institucionalizados.

Frente a essa realidade, inicia-se, no Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD)/UFBA, a experiência do Consultório de Rua, uma proposta de atendimento extramu- ros dirigido aos usuários de drogas que vivem em condições de maior vulnerabilidade social e distanciados da rede de serviços de saúde. O projeto, idealizado pelo Prof. Antônio Nery Filho, no início dos anos noventa, foi concretizado no ano de 1999 e esteve, nos oito anos seguintes, sob minha coordenação. Essa primeira experiência, de caráter inovador, foi desenvolvida, a partir de 2004, também no 1° Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas Canela, posteriormente denominado CAPS AD Pernambués, em Salvador (OLIVEIRA, 2009).

Podemos conceituar o Consultório de Rua como um dis- positivo clínico-comunitário que busca, para muitos usuários, uma primeira abordagem na cadeia de serviços da rede de aten- ção integral em álcool e outras drogas. Trata-se de uma oferta de cuidados primários à saúde no espaço da rua, identificando emergências clínicas, distribuindo insumos de redução de da- nos, atendendo os usuários em seus locais de permanência e encaminhando as demandas mais complexas para a rede de saúde institucionalizada. Para os atendimentos in loco, utiliza- -se um carro que se desloca com a equipe para as áreas previa- mente determinadas para a realização do trabalho.

Nessa iniciativa, prioriza-se a construção de vínculos de confiança com os usuários, que possam permitir o engate para um tratamento, caso esses necessitem e assim o desejem. Nes- se sentido, uma das funções do Consultório de Rua é atuar como uma ponte para a população que está à margem do siste- ma de saúde e possibilitar sua reinserção na rede.

A proposta do Consultório de Rua promove a acessibili- dade aos serviços da rede institucionalizada, a assistência in- tegral, a construção de laços sociais para os usuários em situ-

ação de exclusão social, possibilitando um espaço concreto do exercício de direitos e cidadania, traduzindo em sua prática os princípios ético-doutrinários que norteiam o Sistema Único de Saúde (SUS): a universalidade do acesso à saúde, a integra- lidade da assistência e a equidade. Além desses, preconiza o respeito ao modus vivendi dos usuários, sem nenhuma forma de julgamento moral e repressivo ao consumo de drogas, res- peitando o usuário em sua singularidade e norteado pela lógica da Redução de Danos.

O público ao qual se dirigem as ações do Consultório de Rua é constituído por usuários de substâncias psicoativas líci- tas e ilícitas em situação de alta vulnerabilidade, que se man- têm distantes dos serviços de saúde e sociais da rede oficial. Além dessa característica, trabalha-se com aqueles que se en- quadram no perfil de indivíduos “em situação de rua”, tomando como base a conceituação de Neiva-Silva e Koller (2002) para compreender essa clientela, ou seja,

todos aqueles que passam grande parte do tempo no espaço público, mantendo vínculos precários com a família ou aqueles que toma- ram o espaço da rua como local de moradia, visto que muitas vezes a passagem de uma condição a outra é questão de uma gradativa desvinculação que vai se processando pouco a pouco ao longo de meses e anos.

Sem deixar de colocar a prioridade da atenção nas crian- ças e adolescentes usuários de drogas, a equipe deve atender a todas as faixas etárias que se aproximam e solicitam ajuda, independentemente de serem usuários de drogas ou não, haja vista a importância de alcançar a rede de sociabilidade exis- tente entre os indivíduos que vivem nas ruas, marcados por vínculos de solidariedade e necessidade de proteção (embora