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A repressão à ganja e a estigmatização dos rastas

O senso comum reinante tanto entre o público em geral quanto entre órgãos oficiais concebe qualquer uso de substân- cias psicoativas ilícitas como indicativo de toxicomania e de propensão à violência e outras formas de delinquência. Os es- tudos dedicados à questão das drogas, centrados em perspecti- vas diferentes das proibicionistas, preconizam a necessidade de observar quais os espaços e tempos que os psicoativos ilícitos ocupam no universo afetivo existencial do indivíduo usuário, pois, desta forma, a compreensão do consumo, suas funções

e finalidades, pode ser alcançada de maneira mais concreta e adequada, ao contrário da abordagem fundamentada em um reducionismo farmacológico. A visão de que a substância assu- me a autonomia sobre o indivíduo reitera os estereótipos histo- ricamente construídos acerca da questão.

No âmago dos ritos Rastafari, ocorre o que se poderia chamar de “uso ritualmente controlado de psicoativo”, ou seja, a substância psicoativa é utilizada de acordo com as austeras regras de conduta, valores doutrinários e com a estrutura so- cial hierarquizada da religião que, além de propor padrões aos seguidores para a reestruturação da vida, regulamenta os pro- pósitos e as situações para o uso da “ganja”. Diversos autores (BECKER, 1973a e b; ESPINHEIRA, 2004; GRUND, 1993; MA- CRAE, 2005 e 2008; MACRAE; SIMÕES, 2000; VELHO, 1975; ZINBERG, 1984) têm mostrado que, mesmo em diferentes con- textos territoriais e sociais, que acarretam alterações no seu significado cultural, o uso de psicoativos tende a ser regrado e seus efeitos, tanto em nível pessoal quanto social, modelados, de maneira a reduzir os riscos que possam apresentar e a oti- mizar os resultados.

A Cannabis sativa, em diferentes momentos e regiões, vem desempenhando um importante papel em cerimônias reli- giosas; portanto, o seu uso não é uma inovação espiritual Ras- tafari. Chamada de kan, na Bíblia Amárica, era usada com fins espirituais, lúdicos e terapêuticos desde tempos imemoriais na Índia e na China (ESCOHOTADO, 1994, p. 5-6). Na Mesopo- tâmia da Antiguidade, era usada como incenso cerimonial; na América, no início do século XX, era fumada em rituais pelas tribos mexicanas dos Tepecano e dos Tepehua, onde foi apeli- dada, respectivamente, de Rosa Maria e Santa Rosa (BENNETT; OSBURN; OSBURN, 1995, p. 8; EMBODEN JR., 2000, p. 33-4). Na década de 1970, sob antonomásia de Santa Maria, a can-

nabis passou a integrar os rituais do “Centro Eclético Fluen- te Luz Universal Raimundo Irineu Serra”, também chamado de CEFLURIS, uma vertente doutrinária da religião sincrética surgida no Acre, na década de 1930, chamada de Santo Daime (cujo sacramento central é a bebida enteógena ayahuasca31,

um psicoativo lícito), liderada pelo carismático Raimundo Iri- neu Serra, também conhecido como Mestre Irineu. (MACRAE, 2005, p. 466).

Em 1985, a ayahuasca foi posta na lista de bebidas proi- bidas, devido à prisão ocasional, por posse de cannabis fora da “Colônia 5.000” (comunidade sede do Centro), de supostos membros do CEFLURIS. A adoção da Santa Maria nos rituais realizados na Colônia 5.000 se integrou às práticas comunais já existentes e o uso de cannabis, tanto para fins religiosos quan- to terapêuticos, não foi detectado como um problema pela co- missão designada para investigar a situação. (MACRAE, 2005). A ayahuasca é parte essencial de todas as cerimônias re- alizadas no Daime e, atualmente, tem seu uso legalizado, pois as autoridades reconhecem o enfático caráter religioso do seu consumo. Entretanto, o uso da Santa Maria, mesmo de forma isolada em rituais não oficiais, é malvisto pelos membros das outras religiões que fazem uso da ayahuasca sob a alegação de que ela não é um sacramento e sim uma droga.

Embora tenham sido os europeus os responsáveis pela introdução do cultivo do cânhamo (cannabis), para fins indus- triais, na América, o hábito de fumá-lo foi, provavelmente, tra- zido por escravos oriundos de variadas partes do continente africano, ainda nos primeiros anos da colonização (MACRAE; SIMÕES, 2000, p. 19; MOTT, 1986, p. 119), os quais, espalha-

31 Chá composto da mistura do cipó Bannisteriopisis caapi (popularmente co-

nhecido como “mairí” ou “jagube”) e da folha da Psychotria viridis (“chacro- na” ou “rainha”), usado para diversos fins por nativos da Amazônia Ociden- tal e do planalto andino, desde tempos imemoriais. (MACRAE, 2005, p. 461).

dos nos inúmeros países escravistas, disseminaram também outras aplicações medicinais e religiosas dessa planta.

Mas, além dos africanos, outros imigrantes pobres, vin- dos da Índia após a abolição da escravatura, quando a Jamaica recebeu milhares de trabalhadores hindus, também trouxeram o costume para o Caribe. Entre os adeptos do Hinduísmo clás- sico há personagens como o eremita, o asceta e o sadhu (ho- mem santo) que cultivam um estilo de vida semelhante ao al- mejado pelos Rastafari, habitando modestas cabanas, criando dreads e fumando cannabis, também chamada por eles de gan- jah (nome de origem hindu), em rituais religiosos comunitários. Alguns pesquisadores consideram muito importante, embora pouco reconhecida, essa influência indiana na constituição do Rastafarianismo. (LEE, 1999, p. 121-33).

Na Jamaica, o preconceito relacionado ao uso da “ganja” antecede a formação das diversas seitas Rastafari. Desde o iní- cio do século XIX, o uso de psicoativos vem sendo combatido pelo puritanismo da sociedade conservadora norte-americana que, em diferentes momentos, associou ao uso de substâncias psicoativas a origem de vários problemas relacionados a grupos étnicos específicos, uma postura que foi, subsequentemente, exportada para o resto do mundo, inclusive Jamaica e Brasil (ESCOHOTADO, 1994, p. 85-6). Os agricultores negros, na Ja- maica, já usavam a erva com fins lúdicos e medicinais há vá- rios séculos, mesmo sendo este uso proibido por lei, e quando as populações rurais migraram para os centros urbanos leva- ram consigo esse costume, que assumiria, ainda, um forte ca- ráter de contestação à ordem social excludente pela qual eram subjugados.

No Brasil, em 4 de outubro de 1830, a Câmara Muni- cipal da Cidade do Rio de Janeiro proibia o porte e a venda do “pito de pango” (ganja) após as autoridades sanitárias da

época constatarem o seu consumo bastante disseminado entre os escravos. Na época, sabia-se pouco sobre essa planta e, pro- vavelmente, o Decreto Municipal proibitivo tinha a finalidade de evitar um efeito da cannabis que nada tem de psicoativo: o efeito aglutinador de indivíduos. O consumo do “pito de pango” se dava de forma coletiva e, temendo que, nessas ocasiões, os escravos pudessem se organizar e fazer motins ou badernas, as autoridades proibiram a erva. De fato, as primeiras prisões registradas envolvendo cannabis só seriam registradas, no Rio de Janeiro, a partir do ano de 1933. No resto do país, é a par- tir de 1940 que se pode perceber uma investida nacional mais incisiva no combate ao problema do “maconhismo”, devido aos interesses dos poderes da época em se adequarem aos mol- des internacionais de combate à toxicomania. (ADIALA, 1986; 2006, p. 77; MOTT, 1986, p. 127).

Historicamente, problemas relacionados a grupos étnicos específicos têm sido associados ao consumo de substâncias psicoativas. Nos Estados Unidos, no início do século passado, a corrupção infantil era atribuída aos chineses, usuários de ópio, os negros teriam na cocaína a fonte de suas perversões sexu- ais, a cannabis era a causadora da indolência dos mexicanos e ao álcool era atribuída a imoralidade dos judeus e irlandeses. (ESCOHOTADO, 1994, p. 85-6).

Segundo Richard Bucher (1996, p. 50-1), o combate às drogas serve de “bode expiatório”, encobrindo as origens mais prováveis das mazelas sociais que afligem as mais diversas populações, possibilitando uma política de manutenção de in- teresses elitistas, influenciando a formação de opinião sobre o assunto e impedindo que o uso de psicoativos ilícitos seja corretamente dimensionado e compreendido por grande parte, quiçá, a maioria da população. Destarte, aqueles que conso- mem psicoativos ilícitos, incluindo os que não o fazem de for-

ma abusiva, são perseguidos pelas organizações encarregadas de coibir o uso e rotulados de toxicômanos pela maioria dos órgãos que elaboram as estratégias para lidar com o assunto.

Conclusões

Os rastas são categorizados como “drogados” pelo senso comum, com base no duplo equívoco de considerar que a to- talidade dos adeptos a este estilo, rastaman ou não, faz uso de ganja e que o uso desta é sempre um sinal de toxicomania.

Além da substância, outros elementos exercem influência no consumo de psicoativos ilícitos. Teóricos dedicados à socio- antropologia do uso de substâncias psicoativas ressaltam a im- portância de vários aspectos a serem observados nas pesquisas sobre a temática: a) a substância, suas propriedades farmaco- lógicas e a disponibilidade da mesma; b) o set, ou seja, o estado psíquico do indivíduo no momento do consumo, sua estrutura de personalidade e o seu histórico de vida; e c) o setting, que é o contexto social e físico no qual o uso acontece. (BECKER, 1973a; 1973b; ESPINHEIRA, 2004; GRUND, 1993; MACRAE, 2005; 2008; 2009; MACRAE; SIMÕES, 2000; VELHO, 1975; ZINBERG, 1984).

A drogadição está sujeita à quantidade e ao tipo de co- nhecimento a respeito do uso de psicoativos ilícitos ao qual o consumidor tem acesso. A produção de informação sobre o uso de substâncias ilícitas é oriunda das redes informais que se formam na “cultura da droga” e chega aos neófitos legada por usuários mais experientes e integrados às redes já existentes (BECKER, 1973a; 1973b; GRUND, 1993; VELHO, 1975).

Além do aprendizado sobre o uso, a disponibilidade da substância, a estrutura de vida do usuário e sua disposição para o consumo e os controles sociais informais são relevantes

no tocante à regulação do uso de psicoativos (GRUND, 1993). Os valores e as regras de conduta socialmente aceitáveis, tam- bém chamados de sanções sociais, aliados aos padrões de com- portamento considerados adequados, ou rituais sociais, são os elementos que constituem os controles sociais informais. (ZIN- BERG, 1984, p. 5).

O estigma sofrido pelos adeptos e simpatizantes do Ras- tafarianismo parece decorrer de questões de ordem social mais do que do efeito do uso da ganja que, neste caso, é utilizada para auxiliar a meditação, na alimentação ou no tratamento de doenças, tanto nos ritos como no cotidiano dos adeptos des- ta religião. Os diversificados usos têm propósitos específicos, que são normatizados e legitimados quando feitos em anuência com as regras do código de conduta, mesmo que informal, no qual se baseia o culto.

O uso de cannabis feito pelos adeptos da crença seguiria as austeras recomendações da Holy Piby, embora mudanças no tempo e espaço levem a novas interpretações deste livro adap- tadas aos diferentes contextos nos quais o Rastafarianismo é praticado, e esse uso ritualmente controlado pode ser compre- endido como um elemento redutor de danos32, da mesma for-

ma como ocorre entre os seguidores do líder daimista acreano Padrinho Sebastião, que também preconizava um uso sagrado da cannabis. (MACRAE, 2005, p. 466; 2009). Esses elementos reguladores do consumo compõem outro aspecto da religiosi- dade Rastafari, que tem merecido pouca atenção por parte dos pesquisadores e das esferas jurídico-sanitárias que focam suas

32 A redução de danos é uma das maneiras de lidar com a questão do uso de

psicoativos. Essa abordagem admite que o uso de substâncias psicoativas, inevitavelmente, vai continuar acontecendo. A política de redução de danos propõe que se ofereçam aos indivíduos usuários informações sobre os di- versos psicoativos e suas propriedades para que o uso seja feito da forma menos danosa possível. (BASTOS; MESQUITA, 2001, p. 181-2; MACRAE, 2006, p. 367-8).

ações no combate e na tentativa de extirpação do uso de al- gumas substâncias psicoativas e, ao fazê-lo, entram em con- tradição com a Constituição que, a priori, é laica e garante a liberdade de culto para todos os indivíduos.

Mesmo sendo usada desde tempos imemoriais em di- ferentes cerimônias, a situação ilegal na qual se encontra a cannabis e os estereótipos pejorativos evocados pelo uso desta planta dificultam a possível legitimação da sua utilização com finalidades religiosas. Os problemas legais dos seguidores do Rastafarianismo são exemplos do quanto a visão unilateral so- bre as questões ligadas ao consumo de psicoativos é intoleran- te e preconceituosa.

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Sergio Vidal

Introdução

A Cannabis sativa, mais conhecida no Brasil pelo nome de maconha, é uma das plantas mais antigas cultivadas pelos seres humanos. Há, pelo menos, 12.000 anos, pessoas de todo o planeta, de diferentes países e tradições culturais fazem uso tanto das suas partes psicoativas quanto daquelas não psicoa- tivas (ABEL, 1980). Seja por suas potencialidades medicinais, nutricionais, pelas utilidades de suas fibras têxteis, de seu óleo combustível ou, ainda, por suas propriedades psicoativas, con- sumir derivados de Cannabis sempre foi algo natural às socie- dades humanas.

A mais antiga farmacopeia conhecida, o Pen-ts’ao Ching, é também um dos registros históricos mais antigos sobre o uso medicinal da cannabis. O documento foi compilado no primeiro século da Era Cristã, mas é baseado na tradição oral chinesa do Império Shen-Nung (2.700 a.C.). Na época, a Cannabis era receitada para dores reumáticas, constipação intestinal e infer- tilidade feminina, dentre outras doenças. (ZUARDI, 2006).

33 Antropólogo e autor do livro Cannabis Medicinal: introdução ao cultivo

Os antigos Vedas indianos (2.000 a.C.) a mencionavam como uma das plantas sagradas que deveriam ser cultivadas e usadas com respeito. Desde essa época, a tradição indiana reconhecia as propriedades medicinais dos preparados à base da erva: propriedades terapêuticas analgésicas, anticonvulsi- vas, tranquilizantes, anestésicas, antibióticas, anti-inflamató- rias, antiespasmódicas, diuréticas e expectorantes são apenas alguns exemplos dentre os diversos usos relatados. (ZUARDI, 2006).

Nessa época, eram designados para cuidar dos jardins de cannabis os denominados paddars, homens sagrados respon- sáveis por todos os cuidados do jardim, desde o cultivo até a preparação do sacramento. Esses sacerdotes jardineiros eram também responsáveis por garantir que os machos fossem eli- minados antes que polinizassem as fêmeas, uma das principais técnicas empregadas para assegurar uma boa produção de re- sina medicinal, tão antiga quanto a relação dos seres humanos com a planta, tendo sido os primeiros a fazer seleções buscan- do sempre melhorar as linhagens em busca de mais resina e inflorescências.

A cannabis se consolidou como medicamento seguro, efi- caz e barato, na China e Índia, mas, rapidamente, sua fama se espalhou por todo o mundo. Em 1.000 d.C., médicos árabes a receitavam como diurética, digestiva, analgésica e anticonvul- sivante (ZUARDI, 2006). Da Ásia para o Oriente Médio e África, seguiu sendo cultivada e usada para tratar doenças e aliviar os sofrimentos e dores do corpo e da alma. Em 1534, o médico naturalista português Garcia da Orta se mudou para Goa, na Índia, onde passou a estudar a medicina tradicional do povo indiano e o uso de plantas. Em 1563, publicou o livro Colóquio dos simples e drogas e cousas medicinais da Índia, trazendo os dados de décadas de seus estudos e descrições detalhadas dos

vegetais de uso medicinal, incluindo os de propriedades psico- ativas e, entre eles, está a cannabis e sua resina. São quatro páginas dedicadas à descrição da cultura do “bangue”34 e suas

propriedades terapêuticas, incluindo a primeira descrição no Ocidente sobre os efeitos psicoativos referindo-os com o termo “viagens”. (HERER, 2003, p. 179).

No período da Expansão Marítima, houve o aumento de expedições de cunho comercial e exploratório com a partici- pação de naturalistas, herboristas e botânicos em busca das riquezas naturais de cada nova região “descoberta”. Foi nessa época que pesquisadores passaram a se interessar em registrar e descrever as variedades de plantas e animais nativos de cada região e foi, também, quando surgiu o modelo de taxonomia binomial para classificar os seres vivos e as nomenclaturas da- das à maconha que ficaram mais conhecidas – Cannabis sativa e indica.

Em 1753, Carl Linnaeus, que ficou conhecido como um dos principais criadores da nomenclatura binomial, publicou em seu livro Species Plantarum uma descrição da maconha nomeando-a Cannabis sativa. Poucos anos depois, em 1783, o biólogo Jean-Baptiste Lamarck encontrou no Oriente uma variedade de Cannabis bastante exótica e decidiu que era me- lhor dar-lhe uma classificação separada. Nascia a nomencla- tura Cannabis indica e, junto com ela, o mito fundador de que a Cannabis tem várias espécies, um equívoco que perdura até hoje no senso comum e, até mesmo, entre alguns cientistas.

Porém, de fato, todas as variedades de Cannabis podem ser cruzadas entre si gerando descendência fértil, não sendo, portanto, possível considerá-las espécies distintas. Do século XVIII até meados do século XX, muitos outros entusiastas ten-

34 O bangue é uma bebida sagrada, tradicional na Índia, feita à base de leite de

taram nomear suas próprias “espécies” de maconha sem, no entanto, obterem a popularidade que as nomenclaturas sativa e indica conseguiram. Atualmente, a maior parte dessas no- menclaturas está em desuso, pois a planta é considerada da espécie Cannabis sativa, sendo os outros nomes mais usados como sinônimos de fenótipos da planta, ajudando os cultivado-