• Nenhum resultado encontrado

ELETRÔNICA NO BRASIL (2006–2010)

Marcelo Andrade Guimarães48

Edward MacRae49

Wagner Coutinho Alves50

Introdução

No início da década de 1980, por ocasião do desembar- que de contingentes de jovens norte-americanos e europeus na antiga província portuguesa de Goa, na Índia, a música eletrô- nica de sintetizadores encontrou as batidas indianas usadas

48 Psicólogo, Doutor em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em

Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FFCH/ UFBA; Docente do curso de Psicologia do Centro Universitário Jorge Amado; Coordenador Técnico do Coletivo Balance de Redução de Riscos e Danos – Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas – CETAD/UFBA e Pesqui- sador do Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Substâncias Psicoativas – GIESP.

49 Antropólogo, Professor Associado II do Deptº. de Antropologia e Etnologia

da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FFCH/UFBA; Pesquisador Associado do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas – CETAD/ UFBA; Presidente da Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos – ABESUP e Líder do Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Substâncias Psicoativas – GIESP.

50 Historiador, mestrando em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação

em Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FFCH/ UFBA; Pesquisador e Secretário Geral da Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos – ABESUP e do Grupo Interdisciplinar de Es- tudos sobre Substâncias Psicoativas – GIESP.

em meditações ativas do guru Osho, cujo centro, em Poona, na Índia, era, então, um importante polo aglutinador deste seg- mento da população. Algo dessa influência espiritual repercu- tiu nas celebrações profanas realizadas por jovens estrangeiros na região. Inaugurava-se, então, a modalidade de festas de mú- sica eletrônica, inicialmente, privilegiando-se o estilo conhecido como psytrance, um estilo de música eletrônica associado à dança e à meditação que tem como figura emblemática Goa Gil, músico e sadhu51, um dos primeiros artistas a utilizarem

na música eletrônica, propositalmente, elementos sonoros vi- sando propiciar estados alterados de consciência. (COUTINHO, 2008; HOLLAND, 2001).

Ao encontro de culturas e estilos distintos somou-se o LSD-25, cujo uso se tornara popular entre os hippies na década de 1960, passando o seu consumo, a partir de então, a ser re- ferenciado em diversas expressões artístico-culturais. Alusões às experiências psicodélicas propiciadas pelo LSD tinham pre- sença marcante na música, na literatura, nas artes plásticas e visuais, assim como em diversos outros contextos ocidentais. Essa estética se tornaria cada vez mais presente, com a difusão desse tipo de festa mundo afora, prevalecendo na decoração dos ambientes, nas vestimentas e nas tatuagens dos seus par- ticipantes. Ainda em Goa, outro elemento inanimado entrou na cena – o MDMA ou Ecstasy. A adoção do uso desse psicoativo nas festas de psytrance de Goa havia sido, também, original- mente fomentada pelos sannyasins, seguidores de Osho, na década de 1980, vindo depois a se difundir internacionalmente, particularmente nos Países Baixos, onde o MDMA permaneceu legal até 1988. (COLLINAND, 1997 apud HOLLAND, 2001).

51 No Hinduísmo, Sadhu é um termo comum para um asceta dedicado a al-

cançar Moksha (liberação) através da meditação e contemplação de Deus. Sadhus frequentemente usam roupas de cor ocre, simbolizando a renúncia e usam “ganja” (Cannabis), consagrada ao deus Shiva.

Diz-se que os seguidores de Osho haviam começado a usar o MDMA, após ter ocorrido entre eles alguns casos de contami- nação pelo HIV decorrentes dos encontros tântricos nos quais buscavam experiências de êxtase através do sexo. Como alter- nativa a essas práticas de risco, passaram, inicialmente, a recor- rer a técnicas de meditação natajara (também desenvolvida por Osho), com movimento e música repetitiva, em sessões coletivas, que propiciavam aos participantes alterações da consciência. Logo se constatou que o Ecstasy, por sua capacidade de elevar a captação de serotonina, também era capaz de suprir, de modo exógeno (através da adição de um componente químico inani- mado), os elevados índices serotoninérgicos que a experiência tântrica possibilitava de modo endógeno, sendo, então, seu uso largamente adotado naquele movimento religioso.

Deve-se ter em mente que, antes de seus usos serem proibidos, o LSD-25 e o MDMA, ou Ecstasy, eram considerados como relativamente inócuos, sendo largamente pesquisados e utilizados como recursos terapêuticos por conceituados psi- quiatras e psicólogos europeus e norte-americanos (MELECHI, 1997). Mas, a difusão de consumos recreacionais dessas subs- tâncias acabou levando ao surgimento de reações conservado- ras que conseguiram banir o uso, inicialmente de LSD e, poste- riormente, de Ecstasy, para qualquer finalidade. O MDMA viria a ser incluído, de modo controverso, na lista de substâncias ilegais (Schedule I) nos EUA pela Drug Enforcement Administra- tion (DEA), em 1984, e, posteriormente, banido internacional- mente. (HOLLAND, 2001).

No Brasil, festas de música eletrônica começaram a ser realizadas nos primeiros anos da década de 1990, inicialmente nas praias baianas de Trancoso e Arraial d’Ajuda, difundindo- -se, em seguida, para os grandes centros na Região Sudeste – Rio e São Paulo –, assim como para regiões mais remotas como

Alto do Paraíso (Goiás) e Serra da Mesa (Maranhão), por exem- plo. (ABREU, 2005; COUTINHO, 2008). Esses eventos, cuja duração pode variar de algumas poucas horas a uma semana inteira, congregam grande número de frequentadores, majo- ritariamente jovens adultos provenientes dos estratos socioe- conômicos mais elevados. São também conhecidos pelo nome rave52 e podem apresentar dimensões de produção e público

que variam entre “festas”, para um público inferior a 500 pes- soas e de curta duração, a “festivais”, de diversos dias com uma frequência estimada em até 30.000 pessoas. Realizados muitas vezes em locais paradisíacos, ao ar livre, fornecem um setting ideal para o uso de psicodélicos e outras drogas que se dá em meio a uma trama de valores convergentes, envolvendo esti- los, identidades e práticas de si e associando o uso de diversas substâncias psicoativas à música e à psicodelia.

Atualmente, as drogas mais comumente encontradas nesses eventos são o LSD, conhecido como “doce”, e o MDMA, Ecstasy ou “bala”, mas, várias outras, lícitas e ilícitas, são também usadas. Diversas delas vêm na forma de pílulas de diferentes formas e cores, fabricadas clandestinamente e sem nenhuma forma de controle de qualidade, o que aumenta em muito os riscos decorrentes de seu uso, pois nem mesmo se pode ter certeza a respeito da real natureza da substância que está sendo ingerida.

Vale notar que, apesar do uso de Ecstasy e de outras “drogas de desenho” ter inicialmente ocorrido na cena de músi- ca psytrance, atualmente, o consumo dessas substâncias já se estende a festividades onde se tocam outros estilos de música eletrônica como, por exemplo, clubber, house, techouse, trance (PRATES, 2006), assim como a outras cenas, como a da axé music. (SANTANA, 2007).

Apesar de se ter notícia, somente, de um relativamente pequeno número de incidentes de maior gravidade relaciona- dos a esses eventos, no Brasil, assim como em outras partes do mundo, os festivais e festas de música eletrônica têm recebido uma cobertura bastante tendenciosa por parte dos meios de comunicação de massa que, muitas vezes fazem campanhas em torno de determinadas ocorrências, retratando episódios pontuais como se fossem característicos da totalidade desses eventos musicais e festivos. Tais matérias jornalísticas têm ser- vido para pautar abordagens repressivas levadas a cabo pelo Ministério Público e pelas Polícias Civil, Militar e Federal (AN- DRADE et al., 2009b): configura-se, assim, a criação do que o sociólogo britânico Stanley Cohen chama de “pânico moral”.

Esse conceito foi inicialmente elaborado na década de 1960 e vem sendo utilizado desde então, na compreensão da adoção de medidas drásticas de controle social relacionadas a fenômenos culturais tais como brigas de gangues, prostituição e condutas homossexuais, implicando também na criação de categorias de desviantes sociais a serem culpabilizados. Cohen explica o funcionamento do pânico moral:

[...] um problema é identificado, as causas são simplificadas, os participantes são es- tigmatizados, uma campanha da mídia por ação é seguida por respostas das autorida- des que reificam o problema e recomeçam uma nova onda de pânico moral naturaliza- do. (ANDRADE et al., 2009b).

Nos EUA, Jenkins (1999) também demonstrou o funcio- namento desse processo na criação de uma série de alarmes sociais, chamados por ele de “pânicos sintéticos”, promovidos em torno de uma ampla gama de novas drogas que foram apa- recendo no mercado ilícito, durante o século XX. Essas, apesar

de diferentes, receberam tratamento muito similar por parte dos meios de comunicação e, posteriormente, por parte das au- toridades.

Já no Brasil, nos últimos anos, uma série de reportagens veiculadas na televisão, rádio e na imprensa escrita, vêm enfo- cando o uso e o tráfico de drogas ilícitas em eventos de música eletrônica, chegando até a lançar mão do emprego de câmeras ocultas para obter imagens a serem utilizadas de modo sensa- cionalista. Ao dar destaque ao consumo e venda de drogas ilíci- tas em raves, deixam de sinalizar que, na maioria dos eventos festivos no Brasil, ocorre o uso generalizado dessas mesmas substâncias e, nesses casos, aliado a um uso muito mais in- tensivo de bebidas alcoólicas, com consequências considera- velmente mais graves do que aquelas normalmente observadas na “cena eletrônica”. Promovem, assim, um preconceito contra determinado tipo de música, levando até a propostas de legis- lação que pretendem regulamentar, e mesmo proibir, a realiza- ção de eventos com esse estilo de acompanhamento musical. (ANDRADE, 2009a).

Em consequência desse tipo de alarde, certas ações de redução de danos projetadas para esse meio, como o projeto paulista “Baladaboa”, têm sido enquadradas pelo Ministério Público como crime de apologia ao uso de drogas ilícitas, di- ficultando a sua realização. Dessa forma, até a conclusão de uma pesquisa de doutorado sobre essas atividades, realizada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) foi colocada sob suspeita e prejudicada. (ALMEIDA, 2005).

Note-se que, nesses enquadramentos, ignora-se a própria Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006, que, especificamente, prevê a realização de ações de redução de danos no gerencia-

mento da questão do uso de drogas ilícitas. Esse tipo de desme- dida reação pública de alarme tem também dificultado a aceita- ção da legitimidade dessa espécie de ação entre os responsáveis pelas políticas públicas de saúde, geralmente, ainda bastante tímidos ou ignorantes a respeito de abordagens direcionadas à redução de riscos e danos decorrentes do uso de drogas.

Mas, mesmo tendo uma visão crítica do clima de alar- mismo construído pelos meios de comunicação em torno das festas de música eletrônica, não podemos deixar de reconhecer a existência de uma série de riscos que, de fato, se apresen- tam durante esses eventos festivos. Os que têm chamado mais atenção são aqueles associados ao policonsumo, ou seja, o uso de uma variedade de substâncias psicoativas de natureza in- certa, devido ao fato de terem a sua produção e distribuição realizadas na clandestinidade e com total falta de controle de qualidade (OLIVEIRA, 2010). Dessas, as que mais se destacam são o ecstasy ou “bala” e o LSD ou “doce”, mas outras também são encontradas, principalmente cannabis, cocaína e ketami- na, além de outras mais raras como cogumelos alucinógenos, GHB, mescalina, óxido nitroso e Salvia diviniorum, por exem- plo. Ocorre, além disso, o consumo de bebidas alcoólicas. O uso descuidado de substâncias desse tipo pode acarretar ex- periências desagradáveis, popularmente conhecidas como bad trips, geralmente de duração efêmera, mas, em alguns casos, a situação pode se agravar com a ocorrência de quadros de dissociação.

Além desses riscos, ocorrem também aqueles relaciona- dos à atividade sexual desprotegida, como a transmissão de DST’s e AIDS, para não falar em gravidez indesejada. Outros riscos são associados ao volume alto do som e às característi- cas dos espaços naturais onde ocorrem os eventos, tais como o terreno acidentado, a proximidade de rios, cachoeiras ou mar,

picadas de insetos e a exposição excessiva ao sol. É digno de nota que, ao contrário de outros tipos de eventos festivos que atraem grandes contingentes, são raros os casos de violência entre os participantes de raves.