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A cultura e o outro: os jogos da alteridade

Pensamento evolucionista e expansão colonial remetem a “operação antropológica” para o centro de um debate sobre uma questão antiga mas permanentemente renovada: a alteridade. Com efeito, conciliar a unidade biológica e a imensa diversidade de comportamentos da espécie humana –

diversidade cultural, portanto – foi, desde sempre, um grande dilema para os

homens. Dilema que raras vezes encontrou soluções que não fossem excludentes. Afinal, menos do que como fato, a diversidade das sociedades humanas foi, regra geral, compreendida como uma aberração que precisava ser justificada. Bárbaro para a antiguidade helênica, selvagem entre o Renascimento e as Luzes ou primitivo para o moderno Oitocentos, alterava- se o nome de batismo conforme a época, mas a condição de inferioridade do

outro permanecia.

Ou seja, a gênese do etnocentrismo não pode ser debitada ao pensamento ocidental. A idéia de um outro é não só antiga como universal. São inúmeros os povos que se autodesignam os homens, os seres humanos (Laraia, 1994). Mas é o processo de expansão e conquista promovido pelo Ocidente na Idade Moderna que, descobrindo povos e civilizações além-mar, vai constituir a alteridade como um problema, como um objeto de reflexão sistemática. Desse ponto de vista, o Ocidente não apenas inventou o outro. Também partejou variadas teorias para explicar a sua existência – e, é claro, para colocá-lo no seu devido lugar (Sodré, 1988a).

No entanto, até que a antropologia realizasse, no século XIX, a “operação” de resemantização da noção de cultura, a questão da alteridade resolvia-se em outros territórios Até então, as posturas racistas estavam normalmente associadas a posições etnocentristas espontâneas, gestos de intolerância religiosa, preconceitos impressionistas, padrões assentados na estética classicista e interesses políticos diversos.

Mas já no século XVIII, a filosofia iluminista, ao inventar o conceito de homem inaugurando a modernidade, reacendera o debate e a reflexão à volta da questão da alteridade. Era o tempo dos filósofos-viajantes.11 A observação

etnográfica começava a dar os seus primeiros passos. Inicia-se aí o deslocamento do problema da alteridade do plano da fé religiosa para o território da ciência – deslocamento que só se completará integralmente no século XIX. Por enquanto, para a salvação do outro – já agora dotado de

natureza humana mas ainda carente de espírito – acudiriam as luzes da

Ilustração em substituição à luz divina.

A “operação antropológica”, ao consolidar o olhar científico sobre o

outro amparada na noção requalificada de cultura, promove uma reviravolta

radical no enfrentamento da questão da alteridade. A “operação” funda o racismo doutrinário12, uma das marcas do pensamento científico oitocentista.

É o século XIX, portanto, que vai conceder ao “pensamento racista dignidade e importância, como se ele fosse uma das maiores contribuições espirituais do mundo ocidental” (Appiah, 1997, p. 189). O racismo passa à condição de ideologia. Institucionaliza-se. Toma assento em academias e escolas. Torna- se majoritário como opinião das elites intelectuais e políticas européias e vai desempenhar um papel central nas transformações políticas que o mundo experimentou nas últimas décadas daquele século.

É a vitória do discurso científico, racional objetivo e quantificador contra o discurso religioso que reinara até então. A partir daí, da ciência e de

11 Laplantine (1995, p.59) considera que “o par do viajante e do filósofo”, que se forma no

século XVIII, cumpriu um papel fundamental no arranque do projeto iluminista de estabelecer um conhecimento positivo do homem. “Bougainville, Maupertius, La Condamine, Cook, La Pérouse ..., realizando o que é chamado na época de ‘viagens filosóficas’, precursoras das nossas missões científicas contemporâneas [...], Buffon, Voltaire, Rousseau, Diderot ... ‘esclarecendo’ com suas reflexões as observações trazidas pelo viajante”.

12 Segundo Muniz Sodré, o “racismo consiste na passagem forçada da biologia darwinista

para um monogenismo do sentido, onde a universalização do conceito de homem cria necessariamente o inumano universal (ou seja, uma identidade gerando sua alteridade) a partir de um centro equivalente geral europeu. Homem inferior seria o desigual, aquele que não se assemelha ao mesmo centrado na Europa” (Sodré, 1988a, p. 36, grifos do autor).

seus aparatos institucionais que se multiplicam e crescem de importância ao longo de todo o século XIX, o racismo vai adquirir a legitimidade necessária para afirmar a superioridade da raça branco-européia frente às outras raças, sempre descritas como incapazes de qualquer progresso, supersticiosas, ignorantes, irresponsáveis, infantis, preguiçosas, despóticas, animalescas, imorais e sanguinárias.

Dessa forma, as atitudes de exclusão e intolerância que marcaram historicamente o enfrentamento do velho dilema da espécie humana passam a dispor de argumentos cientificamente elaborados para a sua justificativa. O preconceito racista fundado numa “razão universal” é, então, incorporado à “consciência subjetiva do homem branco”, uma conseqüência direta da “operação antropológica” que estatuiu um conceito universalista de cultura “fundado na visão indiferenciada do humano”. Com efeito, à universalização do conceito de homem (com base no Ocidente culto e civilizado) correspondeu, necessariamente, a redução das diferenças a um denominador comum, a um “equivalente geral”. Daí que ao “outro”, ainda que portador de cultura, não seja reconhecida mais que a condição de um anacronismo “do mesmo universalizado do Ocidente” (Sodré, 1988a, p. 34-35).

É ponto pacífico que nesse processo de universalização ocidentalizante, de refundação simbólica do planeta, um dos elementos centrais foi a constante exaltação da superioridade do modelo de civilização ocidental – ou seja, da supremacia racial, moral, política, cultural, artística, religiosa, técnica, militar e industrial das elites (brancas) européia e norte-americana – em face de uma pretensa animalização e infantilização que caracterizariam a condição de inferioridade dos povos ditos primitivos e selvagens. Assim, à lógica das primeiras investidas coloniais, encenada por soldados, mercadores, administradores coloniais e missionários religiosos, seguiu-se a racionalidade da ciência, da técnica e do mercado e seu projeto ocidentalizante de mundo, não faltando jamais a este processo, em suas múltiplas formas, criatividade e justificativas.

Todavia, é bom que frisemos, se a antropologia funda, com o seu conceito universalista de cultura, o racismo doutrinário no século XIX, é também esta ciência que, desenvolvendo-se e superando os limites estreitos do evolucionismo unilinear, irá fornecer os argumentos, os dados e os instrumentos que serviram de munição ao combate político anti-racista que se desenvolveu em particular a partir das primeiras décadas do século XX.

Não vamos tratar aqui dos caminhos teóricos que orientaram o desenvolvimento da antropologia, no centro dos quais esteve sempre o conceito de cultura em suas múltiplas formulações, e que resultaram na superação das teses racistas – o que só aconteceu oficialmente, é bem verdade, quando o século XX já caminhava para a sua metade13. Mas, 13 Praticamente, é no pós- II Guerra Mundial que se pode falar do abandono das teses

racistas pela ciência em seu conjunto. Segundo Renato da Silveira, só após a “Declaração dos Direitos Humanos pela ONU, em 1948, e ainda sob o impacto da brutalidade nazista, a Unesco publicou estudos de cientistas de todo o mundo que desqualificaram as doutrinas racistas e demonstraram a unidade do gênero humano. Desde então, a grande maioria dos próprios cientistas europeus reconheceu o caráter discriminatório da pretensa superioridade racial do homem branco e condenou as aberrações cometidas em seu nome” (Silveira, 2001, p. 89). Fato da mais alta importância, não se pode duvidar, mas que nunca impediu o apoio declarado que durante muito tempo muitos países do Ocidente emprestaram aos regimes racistas da África do Sul e da Rodésia (atual Zimbabwe), ambos felizmente já arremessados à “lata de lixo da história”, como gostava de dizer o presidente moçambicano Samora Machel,

alertamos, a superação do racismo doutrinário não é uma façanha que deva ser creditada exclusivamente à antropologia ou a qualquer outra das várias disciplinas das ciências sociais. É obra coletiva que leva a assinatura da ciência, em seu vasto e variado terreno, e do movimento real da sociedade alimentado por múltiplos atores, por lutas político-sociais e por batalhas culturais.

O fato é que hoje a postura anti-racista está institucionalizada. É hegemônica tanto na ciência14 como na mídia. E, mais ainda, é indissociável

da noção de cidadania vigente nas democracias contemporâneas. O que, obviamente, não significa dizer que o cotidiano de muitas sociedades em várias partes do mundo tenha deixado de ser palco de práticas primárias de racismo e intolerância, como revelam, por exemplo, os acontecimentos recentes na região dos Balcãs.

Pois bem. O racismo científico marcou fundamente a sociedade humana. Mas que isso, com o seu discurso objetivo, racional e oficial foi um fator fundamental e estruturante da sociedade ocidental, um elemento decisivo para a conquista do imaginário e das mentalidades dos povos ocidentais e também dos povos extra-ocidentais. Quanto a isto parece não pairar a menor sombra de dúvida. Com a palavra, o professor Renato da Silveira:

A vigência deste racismo científico oficializado ocasionou mudanças nos modos de legitimação do poder e reestruturou, em escala mundial, o imaginário coletivo, a educação pública, os padrões de credibilidade e os mecanismos de formação da opinião. O racismo científico foi, portanto, uma parte importantíssima da estruturação, pela primeira vez na história da humanidade, de uma nova hegemonia abrangendo todo o globo terrestre (Silveira, 2001, p. 92).

graças, em especial, à luta político-militar levada a cabo por organizações do povo sul- africano e zimbabweano.

14 Silveira (2001) observa que hoje são raríssimos as teorias e os cientistas assumidamente

racistas. Os poucos que assim se declaram, fazem-no em tom moderado, o que não impede que suas idéias tenham pouca credibilidade e enfrentem, regra geral, grande hostilidade e desconfiança tanto nos meios acadêmicos como junto à opinião pública em geral.

Nessa questão, isto é, no que se refere às mentalidades e ao imaginário, vale sublinharmos que, consolidado e legitimado por academias e laboratórios, o racismo erudito instalou-se, também, nos meios de comunicação de massa emergentes, na nascente cultura de massa, nos produtos da indústria cultural que começava a constituir-se (Silveira, 2001). E daí não mais arredou o pé. Quando a ciência deixou de legitimá-lo, ele já dispunha de espaço suficiente pra continuar, mundo afora, povoando imaginários, formando mentalidades, fazendo cabeças.

Com efeito, a imagem depreciativa e preconceituosa dos povos extra- ocidentais (africanos, árabes, orientais e indígenas americanos – e, de quebra, dos brancos de segunda como, por exemplo, europeus orientais) vai estar presente nos produtos da cultura de massas, desde a sua gênese. Nos romances e livros de aventuras, nas histórias em quadrinhos e, depois, no cinema e na televisão. Daí por diante, e pelo menos até às grandes transformações culturais dos anos 1960, quando as prateleiras entulhadas de modelos ocidentais foram abaladas por doses generosas de imaginação e de questionamentos, boa parte dos produtos da cultura de massas invadiu corações e mentes, ocidentais e extra-ocidentais, armando o cenário para a vitória do mocinho branco sobre o bandido negro ou amarelo, ou vermelho, ou qualquer outro.15