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Como já observamos, Sodré (1988a) refere-se à cultura como uma “prática”, uma “prática diferenciada”. Esta “prática diferenciada”117 – isto é,

que se diferencia das outras muitas “práticas” que atuam numa determinada sociedade, por exemplo, a “prática técnica” (englobando a engenharia, a medicina, a gestão, etc.), a “prática econômica” (as relações de mercado), ou

117 A noção de “prática diferenciada” é trabalhada pelo professor Muniz Sodré a partir das

possibilidades abertas pelo conceito de “prática geral” encontrado em Louis Althusser. Segundo este pensador marxista francês, por “prática geral” deve ser entendido “‘todo o processo de transformação de uma matéria-prima determinada em um produto determinado, transformação efetuada por um trabalho humano determinado, utilizando-se meios de produção determinados’” (Althusser apud Sodré, 1988a, p. 13). Assim, da noção althusseriana de “prática geral”, Sodré (1988a) faz derivar a idéia da existência de uma diversidade de “práticas diferenciadas” atuantes na sociedade, cada uma delas expressando um conjunto particular de processos e produtos sociais.

a “prática política” (as relações envolvendo o jogo do poder) – configura, conforme Muniz Sodré, um espaço próprio com estrutura, regras e conteúdo claramente bem definidos e goza de relativa autonomia nas relações que estabelece com as demais “práticas” atuantes na sociedade.

A esse espaço próprio, configurado pelas determinações de uma “prática diferenciada” que atua na sociedade – uma “prática” denominada de “cultural” –, Sodré (1988a, p. 15) vai chamar de “campo”.

Emerge, assim, balizando o conceito de cultura, a noção de “campo”, de “campo cultural”. Isto é, um “campo normativo” particular, delimitado por uma especificidade que implica no estabelecimento das condições “de admissão de um fenômeno como elemento de cultura”, ou seja, de regras e sanções que definem o que é ou não um fato cultural (Sodré, 1988a, p. 13- 15).

Muniz Sodré, para quem a “noção de cultura é indissociável da idéia de um campo normativo” (Sodré, 1988, p. 15), o conceito de “campo” designa

um espaço próprio e distintivo de um modo específico de relacionamento com o sentido e o real, isto é, com aquilo que possibilita a delimitação de uma cultura. O emprego deste conceito implica numa tática de determinação. O campo designa, normativamente, os atos obrigatórios num determinado regime simbólico e exclui os elementos não pertinentes, as predicações que não devem ser feitas aos objetos (Sodré, 1988a, p. 15, grifos nossos).

É inevitável aqui, uma vez invocada a noção de campo, recorrermos a Pierre Bourdieu. É que este cientista social francês aplicou o conceito de “campo” – que classifica como um “modo” ou “instrumento de pensamento”, pode-se dizer, um guia de pesquisa (Bourdieu, 1989, p. 58 e 66) – a distintos universos sociais sobre os quais realiza seus estudos e pesquisas. Assim, refere-se ele, por exemplo, a um “campo cultural”, a um “campo econômico”, a um “campo religioso”, a um “campo político”, a um “campo jurídico”. Mas,

também, a um “campo artístico e intelectual”, a um “campo pictórico”, a um “campo literário”, a um “campo poético” ou a um “campo da alta costura”, isto quando o seu foco de análise desloca-se para objetos com recortes mais específicos (Bourdieu, 1989, 1992).

A primeira aplicação da noção de “campo” por Pierre Bourdieu vai estar presente – como ele próprio informa (Bourdieu, 1989) – no seu trabalho intitulado O mercado de bens simbólicos118. É este, um estudo que investiga, nas sociedades européias ocidentais, o longo e lento processo de “constituição progressiva de um campo intelectual e artístico” que, entre os séculos XV e XIX, vai se definindo “em oposição ao campo econômico, ao campo político e ao campo religioso” (Bourdieu, 1992, p. 99). Mas é com um estudo sobre a sociologia religiosa de Max Weber119 que Bourdieu (1989, p.

66) acredita ter alcançado “a primeira elaboração rigorosa” do conceito, passo importante para o seu trabalho posterior de identificação das “propriedades gerais dos campos”120 do qual vai emergir, como ele próprio nomeia, uma

“teoria geral dos campos”121, ou seja, uma teoria que “permite descrever e 118 Trata-se do texto Le marché des biens symboliques escrito por Pierre Bordieu em 1970, no

Centre de Sociologie Européenne, e traduzido no Brasil por Sérgio Miceli (Bourdieu, 1992).

119 O estudo em questão intitula-se Une interprétation de la sociologie religieuse de Max Weber

e foi publicado por Pierre Bourdieu em 1971 nos Archives européennes de sociologie (Bourdieu, 1989). No texto em que discute a gênese do conceito de campo, Bourdieu (1989) refuta os estudos – que ele opta por não nomear – que atribuem à Weber a paternidade dos conceitos de “campo religioso” e “capital simbólico” – noções que, como se sabe, são caras ao pensamento do sociólogo francês. Segundo Bourdieu, estes conceitos “são evidentemente estranhos a seu [de Weber] pensamento” (Bourdieu, 1989, p. 66).

120 A discussão sobre a existência de propriedades que seriam comuns a todos os “campos”

foi objeto de um curso ministrado por Pierre Bourdieu entre 1983 e 1984, no Collége de

France (Bourdieu, 1989).

121 Pierre Bourdieu recusa fortemente a idéia de que a sua “teoria geral dos campos” mais

não seja do que uma mera aplicação do “modo de pensamento econômico” ao entendimento dos diversos domínios sociais, tão somente pelo fato de que certas propriedades comuns aos diversos “campos” identificadas na sua teoria, já tivessem sido assinaladas, por outros caminhos, pela teoria econômica. Refuta, assim, as insinuações de que a sua “teoria dos campos” padeça, por essa razão, de economicismo, de reducionismo econômico, lembrando que também Max Weber utilizou-se de categorias típicas da teoria econômica (demanda e oferta, concorrência, monopólio, etc.) na sua sociologia da religião sem que por isso possa ser tido como economicista. E vai mais além, afirmando: “Tudo leva a supor que a teoria econômica [...], em vez de ser modelo fundador, deve antes ser pensada como um caso particular da teoria dos campos” e que os seus pressupostos devem ser repensados “à luz sobretudo dos conhecimentos adquiridos a partir da análise dos campos de produção

definir a forma específica de que se revestem, em cada campo, os mecanismos e os conceitos mais gerais” (Bourdieu, 1989, p. 68-69, grifo do autor).

Na sua formulação mais sintética, Bourdieu (1989, p. 64) define “campo” como um “espaço social de relações objectivas”. Segundo este autor, a aplicação da noção de “campo”, enquanto um “instrumento de pensamento”, permite a identificação, em distintos domínios ou universos da vida social (cultura, economia, religião, política, literatura, alta costura, etc.), tanto dos traços invariantes (as “propriedades gerais dos campos”), revelados pela comparação entre os vários domínios, como das propriedades específicas de cada um deles (as “relações objectivas”).

Os traços invariantes configuram a hipótese, trabalhada por Pierre Bourdieu, de que existem “homologias estruturais e funcionais entre todos os campos” (Bourdieu, 1989, p. 67). Dão conta, tais traços, do que é comum a todos os “campos”, ou seja, as leis que, invariavelmente, regem a estrutura e a história dos diferentes “campos”.

Já as “relações objectivas” constituintes de um “campo” determinado, expressam o que lhe é específico: suas regras e normas, a crença que o sustenta, seus jogos de linguagem, suas relações de poder, o estoque de bens materiais e simbólicos que nele é gerado, etc (Bourdieu, 1989). E são estas propriedades específicas de cada “campo” particular que, segundo Bourdieu (1989, p. 67), “denunciam de maneira mais ou menos clara” os traços invariantes, as propriedades comuns a todos os “campos”. Foi assim,

cultural” (Bourdieu, 1989, p. 69). Recorda, por exemplo, que na sua análise de um “campo” específico do domínio econômico, como é o caso do “campo dos produtores de habitação”, certo número de traços já haviam sido identificados em “campos” da produção cultural, no caso, a alta costura a literatura e a pintura. Refere-se Bourdieu (1989, p. 69, grifo do autor), sobretudo, ao “papel dos investimentos destinados a produzir a crença no valor de um produto simultaneamente econômico e simbólico, ou o facto de, neste domínio como em outros, as estratégias das operações dependerem da sua posição no campo da produção, quer dizer, na estrutura da distribuição do capital específico (no qual há que incluir a ‘reputação’ do nome da marca)”.

exemplifica o sociólogo francês, com o estudo do “campo da alta costura”. Mais e melhor do que em qualquer outro – e, certamente, pelo fato de que, neste domínio, a intensidade da relação cultura/mercado facilita sobremaneira a dessacralização das práticas culturais face ao baixo grau de censura a que está sujeita tal relação –, o desvendamento das particularidades das funções e do funcionamento deste “campo” levou à identificação, por Pierre Bourdieu, de propriedades comuns a todos os “campos de produção cultural” (Bourdieu, 1989, p. 67).

Na sua “teoria dos campos”, Bourdieu confere um papel central à história. “Nunca se passa para além da história”, afirma ele (Bourdieu, 1989, p. 70) – afirmação importante de ser lembrada nos tempos que correm, quando alguns, apressada mas não desinteressadamente, insistem em decretar o fim da história. A tarefa da ciência, de uma teoria que se pretenda científica – como é o caso da “teoria dos campos” –, é, fundamentalmente, segundo este pensador francês, dominar o conhecimento das condições históricas que levaram à produção de uma espécie de “quinta-essência

histórica” (Bourdieu, 1989, p. 70, grifo do autor).

Daí que, para a descoberta das “relações objectivas” que configuram o espaço social denominado “campo”, seja imperativa a compreensão do seu processo de autonomização enquanto um “campo” particular, ou seja, o entendimento da sua gênese social, o processo de “alquimia histórica” que lenta e longamente vai, de depuração em depuração, de luta em luta, orientando o “campo” “para aquilo que o distingue e o define de modo exclusivo, para além mesmo dos sinais exteriores, socialmente conhecidos e reconhecidos, da sua identidade” (Bourdieu, 1989, p. 70).

Assim, na constituição -de um “campo” particular, de um universo relativamente autônomo em qualquer nível de especificidade – o que significa dizer, tanto faz seja o “campo cultural” ou o “campo literário” –, a essência

mesma deste “campo” só poderá ser capturada pela análise histórica. Cabe ao processo histórico, portanto, o papel de “abstractor de quinta-essência” (Bourdieu, 1989, p. 71, grifo do autor). Não há neste raciocínio, de acordo com Bourdieu (1989), qualquer risco de que a redução histórica aí proposta possa trazer desencanto ao sublime gozo de uma experiência quinta-essencial sugerida por um determinado universo, como o da arte, por exemplo. Ao contrário, considera este autor, há, por exemplo, uma história do belo que não tem a beleza como princípio e à qual não é estranha uma gênese histórica. Assim, tomando como referência o domínio da arte, mas de olho na noção de “campo” de um ponto de vista mais genérico, Pierre Bourdieu observa com propriedade que

A autonomia relativa do campo artístico como espaço de relações objectivas em referência aos quais se acha objectivamente definida a relação entre cada agente e sua própria obra, passada ou presente, é o que confere à história da arte a sua autonomia relativa e, portanto a sua lógica original (Bourdieu, 1989, p. 71).

Ou seja – uma vez mais invocando o universo artístico, mas podendo o raciocínio ser estendido tanto aos demais “campos” da produção cultural (literatura, música, cinema, ciência, alta costura, etc.) como a quaisquer outros “campos” (como o religioso, o político ou o econômico) –,

[...] se existe uma história propriamente artística, é, além do mais, porque os artistas e seus produtos se acham objectivamente situados, pela sua pertença ao campo artístico, em relação aos outros artistas e aos seus produtos e porque as rupturas mais propriamente estéticas com uma tradição artística têm sempre algo que ver com a posição relativa, naquele campo, dos que defendem esta tradição e dos que se esforçam por quebrá-la (Bourdieu, 1989, p. 72).

O que equivale dizer, sinteticamente, que a afirmação da especificidade de um “campo” é algo absolutamente inseparável da afirmação da autonomia deste mesmo “campo”; de uma autonomia que esta especificidade, concomitantemente, supõe e reforça. Ou, ainda, que a compreensão do que é

específico de um “campo” é algo inseparável do processo de autonomização deste “campo” determinado. Da mesma maneira que, lembra Bourdieu (1989, p. 71), “a epistemologia não pode ser separada, nem de facto nem de direito, da história social da ciência”.

Pois bem. Podemos admitir, sem receios, quanto à compreensão da idéia de “campo”, a grande proximidade entre a noção desenvolvida por Bourdieu (1989, 1982) e aquela utilizada por Sodré (1988a). Assim, ao que Bourdieu (1989, p. 58 e 66) atribui, do ponto de vista metodológico, o status de “modo” ou “instrumento de pensamento”, Sodré (1988a, p.15) reconhece como uma “tática de determinação”. O que um compreende como um “espaço social de relações objectivas” (Bourdieu, 1989, p. 64), o outro registra como um espaço delimitado pela especificidade de uma “prática” social distinta (Sodré, 1988a). Por fim, tanto num quanto noutro autor está presente, com igual força, configurando a noção de “campo”, a idéia de um espaço que se autonomiza historicamente pelo estabelecimento das condições, regras e sanções que legitimam, ou não, a admissão de um fenômeno como pertencente a este domínio específico.

Cuidemos agora, mais de perto, de algumas questões específicas do que está sendo chamado de campo cultural.