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Entre passadismos e futurismos

Na Salvador das primeiras décadas novecentistas, a dinâmica do Modernismo – inscrita em símbolos como “máquina”, “eletricidade”, “fábrica” e “arranha-céus” – não tocou o universo da cultura oficial. Assim, antes que buscar na velocidade modernista mais um mecanismo de compensação para o atraso e a modorra de sua vida insular, a exemplo do que já se permitira com a submissão ao “urbanismo demolidor”, Salvador vai fincar pé nas tradições do seu orgulho senhorial, mantendo-se como um inexpugnável bastião do conservadorismo literário. Suas elites letradas vão defender a cultura oficial do ataque perpetrado pelos códigos de anarquia e destruição do movimento Modernista, com a força e a firmeza que jamais utilizaram quando o que esteve em jogo foi a arquitetura colonial da cidade.105

Recusavam-se, solenemente, a subverter rima e métrica dos versos que praticavam e da sociedade que comandavam.

É tempo, então, de uma cultura oficial requintada, praticamente restrita ao “cultivo das letras”, elitista e acadêmica, entregue à oratória e esgrimida como traço de distinção e prestígio, completamente ornamental e pouco operativa. Seus bunkers são a Escola de Belas Artes, as faculdades de Medicina e de Direito, o Instituto Geográfico e Histórico, a Academia de

105 Exceção feita a nomes como o de Jorge Amado, Dorival Caymmi e outros poucos mais que

Letras da Bahia. Como lembra Carvalho Filho, destacado intelectual do período, “nos vencia um ambiente pesado, de falsa cultura clássica, em seu tradicionalismo intocado” (Carvalho Filho apud Santana, 1986, p. 25).

João Carlos Teixeira Gomes, no seu estudo sobre o Modernismo na Bahia, caracteriza com especial clareza esse ambiente cultural, a propósito, absolutamente semelhante ao descrito por David Salles quando trata da cultura baiana em finais do século XIX (Salles, 1973):

Predominava na capital baiana o marasmo, o espírito estático do academicismo, que se comprazia em cultivar a literatura como um luxo de espírito (não por acaso fora um baiano quem definira a literatura como ‘o sorriso da sociedade’) ou como simples divagação lírica ou boêmia, no encontro ameno dos literatos aconchegados nos cafés que faziam a reputação da inteligência. (...). Vivíamos também no embalo dos saráus da ‘literatura do cafuné’, dócil, sonolenta e doméstica, vestida de pijama e chinelos após a rotina burocrática das repartições (onde, aliás, se faziam muitos versos com chave de ouro) (Gomes, 1979b, p. 168).

É esse ambiente de “tradicionalismo intocado” que vai manter a Bahia à margem da pregação modernista que, nos anos 20, chega, a partir de São Paulo e do Rio de Janeiro, a outros quinhões brasileiros, inclusive capitais nordestinas como Recife, Maceió e Fortaleza. As letras baianas permaneciam ao sabor das fórmulas literárias herdadas do século anterior, predominantemente parnasianas e quando muito simbolistas, mais preocupada com as acirradas justas à volta do seu “cego cultivo da lusofilia gramatical” do que com qualquer possibilidade de renovação, fosse temática ou de linguagem (Gomes,1979b, p. 169).

O único destaque nos primeiros anos do século XX fica por conta do grupo da revista Nova Cruzada, atuante entre 1901 e 1914, de inspiração simbolista, à qual pertencia, entre outros, o poeta Pedro Kilkerry, um dos poucos inovadores do período, a “organização poética mais original do Simbolismo baiano” (Gomes, 1979a, p. 229) e que anos mais tarde, na

segunda metade do século, chegaria a despertar o entusiasmo dos poetas concretistas que, inclusive, editaram-lhe a obra.

Aliás, dizer que o ambiente cultural baiano se manteve à margem do Modernismo é “’distorcer a verdade histórica” (Gomes, 1979b, p.166). Aqui o ideário modernista da Semana de 22 encontrou foi resistência e hostilidade por um lado e indiferença pura e simples por outro.

Nada demais. Tudo muito de acordo com o estado de uma Bahia que como observamos, remoia, sossegadamente, o seu estatuto de cidade pré- industrial, uma “boa terra” quase parada no tempo já fazia tempo, lugar “onde a vida - mansa, mansa - fluía em ritmo de bonde” (Gomes, 1979b, p. 168), velocidade máxima permitida por sua noção de progresso.

Dessa forma, a chegada do Modernismo em terras baianas acaba se dando tardiamente, quando, de resto, o movimento “já havia perdido o seu impulso reformador inicial e estava prestes a ingressar na sua segunda fase” (Gomes, 1979b, p. 165).

Periodizando o modernismo baiano, (Joca) Teixeira Gomes identifica quatro fases: uma primeira, que se inicia em 1928; a segunda, começada em 1948 à volta dos Cadernos da Bahia; a terceira, representada pela geração

Mapa, de 1957 (geração de Joca e cujo nome de proa é o de Glauber Rocha);

e a última, que encerra o ciclo modernista na Bahia, entre 1965, quando surge a Revista da Bahia, e 1978, ano em que é publicado o nono e último número da revista de poesia intitulada Serial.

Vamos cuidar rapidamente da primeira. As três outras já pertencem à Bahia do brevíssimo século XX, período de que trataremos mais à frente.

Essa primeira fase, a da chamada Geração de 28, é obra de intelectuais, escritores e poetas reunidos em três núcleos. É uma fase de

implantação que, com seis anos de atraso, procura alguma identificação com as propostas formais e temáticas da primeira hora modernista. Três núcleos, dissemos, cada qual no seu café, faltou informarmos.

Cafés – era essa a moda ditada por literatos e poetas parisienses e cariocas – que em Salvador apareceram na esteira das reformas urbanas das primeiras décadas do século XX. O poeta e jornalista Florisvaldo Matos106

informa que, do Café das Meninas107, de parnasianos, românticos e

simbolistas dos anos 1920-30, ao bar Anjo Azul, reduto dos modernistas dos anos 1940-50, “toda geração literária tinha um café ou um bar preferido” (Mattos, 2001a).

Um dos grupos vai estar congregado em torno da revista Arco e Flexa, fundada por Carlos Chiacchio em 1928 e com cinco números editados até 1929. Reúne nomes como Carvalho Filho, Pinto de Aguiar, Hélio Simões, Ramayana de Chevalier, Eurico Alves, Damasceno Filho, entre outros. Chiacchio, de presença incansável nas letras e artes desde o início do século quando toma parte do grupo Nova Cruzada, cria em 1937 o movimento denominado de Ala das Letras e das Artes. Pioneiro na edição de livros e promoção de exposições de arte, Ala mantêm-se em atividade durante a década seguinte e sua revista chega a ter dezesseis números publicados. Um outro grupo, a Academia dos Rebeldes108, foi formada à volta do epigramista e jornalista baiano Pinheiro Viegas. Ativa entre 1927 e 1931, editou as revistas

106 Mattos (2001a) lembra que os cafés, que aparecem na esteira das reformas urbanas da

Salvador das primeiras décadas do século XX, chegam substituindo boticas e barbearias, até então “o must da sociedade de vizinhança, império da comunicação interpessoal”, os espaços por excelência onde eram produzidas as informações e mexericos que alimentavam a vida da Província.

107 Na verdade, o estabelecimento chamava-se Café Chic. Conta o poeta e jornalista Flávio de

Paula que o nome Café das Meninas decorria, paradoxalmente, do fato de “serem suas ‘garçonettes’ as balzaqueanas menos airosas da Cidade ...”(Paula, 2001).

108 Conforme destaca o poeta e jornalista Florisvaldo Mattos, “Tinha o nome de academia,

mas era sobretudo constituída de antiacadêmicos, tanto contra a baiana, a Academia de Letras da Bahia, fundada em 1917, como a nacional, a Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897. Mas o foco principal de sua artilharia eram os ‘bons camaradas’ de Arco &

Meridiano (um único número, publicado em 1929) e Momento109 (com nove números publicados entre 1931-32, fato raro no meio literário da época). Foram “rebeldes”, por exemplo, figuras que acabaram se tornando importantes na cena cultural baiana e brasileira como Jorge Amado, Édison Carneiro, Dias Gomes e Walter da Silveira – e também, Aydano do Couto Ferraz, Sosígenes Costa, Alves Ribeiro, João Cordeiro, Dias da Costa. O terceiro, o grupo Samba, de Bráulio de Abreu, Clodoaldo Milton e Elpídio Bastos (Gomes, 1979; Santana, 1986).

E mais. Na Bahia, o Modernismo, além de chegar tarde, chegou, também, digamos, enviesado. No seu primeiro número a revista Arco e Flexa exibe o manifesto denominado Tradicionismo Dinâmico onde seu autor e figura central do grupo, o mineiro Carlos Chiacchio, defendia, segundo Teixeira Gomes, “um modernismo que não golpeasse a tradição, observasse o fluxo da nossa continuidade cultural, harmonizasse o antigo com o moderno” (Gomes, 1979b, p. 172). Também os “rebeldes”, que se diziam “modernos” e não “modernistas”, viam o Modernismo com “uma certa desconfiança”, “coisa de paulista”, uma “língua inventada” (Jorge Amado apud Santana, 1986, p. 15).

Mas não ficou restrita às letras a resistência ao Modernismo na Bahia. Nas artes plásticas o clima foi ainda pior. A primeira exposição, em 1932, do artista plástico José Guimarães, recém-chegado de Paris, onde durante alguns anos gozara de uma “pensão de Estado” para estudar belas-artes110,

enfrentou cerrada oposição do público e da Escola de Belas Artes, principal

109 Gomes (1979b, p. 189) assim compara as duas principais revistas desta primeira fase do

Modernismo baiano: “‘O Momento’ [...] foi um instrumento de idéias novas e de reação contra o marasmo bem superior a ‘Arco e Flexa’, que não passa de um simples marco histórico, apesar do talento de vários dos seus colaboradores.”

110 O jornalista e animador do movimento Ala, Carlos Chiacchio, se refere ao retorno de José

Guimarães da Europa dizendo que ele chegou “todo Cèzanne, todo arte moderna”. Desiludido com a recepção à sua exposição de 1932 (42 quadros a óleo, alguns de influência pós impressionista), Guimarães, “quase que a única voz a defender a arte de vanguarda no meio ainda adverso” das artes plásticas baianas, acaba emigrando para o Rio de Janeiro não mais retornando à Bahia. (Flexor, 1994, p. 5-6)

baluarte da pintura realista na cidade. Em 1944, quando Manoel Martins vem à Bahia para ilustrar o livro de Jorge Amado, Baía de Todos os Santos, e aproveita para montar, na Biblioteca Pública, uma exposição com obras de suas e de outros artistas modernistas como Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Portinari e Di Cavalcanti, a reação é ainda mais forte. Às críticas nos jornais veio juntar-se uma contra-exposição satirizando os artistas e suas obras modernistas. Isto quando não aconteciam cenas de vandalismo contra as obras, como chegou a ocorrer nas primeiras exposições individuais do artista plástico baiano Carlos Bastos (Flexor, 1994; Teixeira, 1999).

De qualquer forma, 1944 é a data-marco que assinala a ruptura moderna das artes plásticas baianas com o estilo clássico-realista que predominava até então, e cujo principal reduto era a Escola de Belas Artes É que além da exposição de arte moderna organizada por Manoel Martins, neste mesmo ano, o escultor Mário Cravo Júnior, um dos integrantes da geração Cadernos da Bahia e figura de proa na renovação das artes plásticas baianas no sentido do modernismo, expõe pela primeira vez seus trabalhos no Salão de Ala (Flexor, 1994).

Se nas artes plásticas o clima foi ainda pior do que o verificado nas letras, nas artes cênicas não houve nem clima. É que, como informa a dramaturga e escritora Aninha Franco no seu precioso estudo (Franco, 1994), ao longo da primeira metade do século o teatro baiano amargou uma quase inexistência, tendo ficado praticamente restrito a grupos amadores de vida breve e uma ou outra companhia que insistia, sem grandes resultados, em profissionalizar-se.111 O que vinha de fora, do Brasil ou do exterior, eram

montagens com poucas novidades em termos de dramaturgia e linguagem cênica.112 O teatro novo, que nos anos 20 e 30 se fazia na Alemanha e União 111 Novidade local mesmo, e de sucesso, só as declamadoras que a partir da metade dos anos

20 sobem ao palco para apresentações nos intervalos das concorridíssimas sessões de cinema mudo (Franco, 1994).

112 Nos primeiros anos do século, os palcos dos dois principais teatros da cidade, o São João

Soviética, e as inovações da linguagem teatral brasileira nos anos 40 só chegavam até à Bahia pelas notícias da imprensa – e isto quando chegavam, porque a partir dos anos 30 os jornais vão privilegiar exclusivamente o cinema falado, deleitando os leitores com as últimas gossips de estrelas e estrelos113 dos filmes que nos enviava Hollywood, relegando o teatro a um

quase completo esquecimento.

Do ponto de vista físico, a situação das artes cênicas não foi menos problemática. A cidade perdeu os dois únicos teatros que herdara do século anterior. O velho São João, que queimou no fogo da modernização seabrista, e o Polytheama Bahiano (inaugurado em 1883 por privados), fechado em 1932. Restaram, apenas, os deficientes palcos dos cine-teatros114 e alguns

poucos e efêmeros espaços alternativos, mais afeitos a aventuras teatrais de grupos amadores.

Mas ao ocaso do teatro correspondeu, na exata medida, o ascenso do cinema, uma cunha moderna que penetra fundo no ambiente cultural pré- moderno da Salvador dos primeiros cinqüenta anos do século XX. Em 1909 é inaugurado o Cinema Bahia, o primeiro da cidade, e nas décadas seguintes não param de surgir novos cine-teatros, cada vez mais cinema e menos teatro.115

com espetáculos líricos e espanholas, com suas zarzuelas – mas, para desespero da sociedade local, nenhuma francesa, privilégio exclusivo da chic capital da República. A partir dos anos 20, a cena vai ser hegemonizada pelo teatro de revista e, nos anos 40, o que nos chega, para apresentar-se nos mambembes palcos dos cine-teatros da cidade, é a velha dramaturgia brasileira em temporadas custeadas pelo SNT, órgão de ação da política cultural varguista. (Franco, 1994)

113 Eram assim chamados, à época, os galãs de cinema. (Franco, 1994)

114 Os dois maiores, o do Cine-teatro Excelsior e o do Olímpia, também desaparecem ao longo

da década de 30. (Franco, 1994)

115 Nos cine-teatros, a programação teatral resumia-se quase que exclusivamente ao teatro

de revista, gênero mais apreciado pelo público. A “programação da tela”, enquanto durou o cinema mudo, abria espaço nos intervalos das sessões para a exibição de atores, mágicos, malabaristas, músicos e declamadoras. Com o cinema falado, no entanto, praticamente deixou de existir a “programação de palco” – e não apenas para atores e outros artistas. Também os músicos, que substituídos pela música mecânica dos discos, acabaram tendo que disputar espaço com as jazz-bands nos cassinos e clubes da noite baiana. (Franco, 1994)

Como observa Franco (1994), de apêndice, o cinema passa a algoz do teatro. Se na primeira década do século a novidade dos cinematógrafos era apreciada pelo público nos intervalos dos espetáculos em cartaz no São João e no Polytheama, os anos 20, com o cinema mudo, vão esvaziar os teatros e, nos anos 30, com a chegada do cinema falado, o teatro sai definitivamente de cena. Vai se refugiar, até que venham os anos 50, nos dramalhões de capa e espada transmitidos pelas ondas da Rádio Nacional e da Rádio Sociedade da Bahia, a PRA4, onde dividia espaço com o humor de Zé Trindade, os temas musicais de Dorival Caymmi, Sílvio Caldas e Linda Batista e as notícias do Repórter Esso.

Na Salvador de então, o cinema era a única coisa capaz de competir com a incrível velocidade de 40 quilômetros horários que desenvolviam, pelas nossas já modernas ruas do centro, os poucos carros da cidade. O cinema e a night. A vida mundana da Soterópolis, com cafés, bares e até um restaurante, a Petisqueira Baiana, o primeiro a funcionar fora dos hotéis. As orquestras atacam de maxixes. Nos anos 30, entram em cena o Hotel Palace e o Cassino Tabaris, cenários celebrizados pelo Vadinho do Dona Flor de Jorge Amado. Jazz-bands substituem as orquestras. Dança-se charleston. As mulheres, de cabelos curtos e melindrosas, dançam e fumam em público. Na vida mundana, a velha Salvador parecia apressar o passo em direção ao moderno e aos modernismos.

Mas a hostilidade passadista da cultura oficial não se esgotava no enfrentamento dos signos e linguagens futuristas, aos quais recusava o estatuto de cultura. Estendia-se, e em medida ainda maior, às manifestações e práticas culturais populares, desde sempre vistas como algo sem dignidade cultural, quando não como “caso de polícia”. Destaquemos, por exemplo, as proibições dos tambores dos candomblés e do Carnaval, objeto de disposições camerárias e da área de segurança pública, sempre renovadas, e alvo predileto de editoriais, reportagens e cartas de leitores indignados, uns e

outros ciosos defensores da “civilização” e das instituições católicas ameaçadas pela “barbárie” das festas e cultos religiosos populares.

Debalde. O mundo cultural paralelo continuava vivo, luminoso e atento. Nos candomblés, nos carnavais, nas festas de rua, nas feiras e mercados, no cotidiano dos bairros populares e, agora também, nas ondas do rádio. É que o trio116 mais que elétrico que, a partir dos anos 1920-30, pôs

em linha canção popular, fonógrafo e rádio comercial veio dar visibilidade e, crescentemente, status, a formas e práticas culturais populares, particularmente o samba, no que pode ser considerado de transcendental importância para a cultura brasileira.

Antonio Risério compreende com nitidez o impacto cultural provocado por este trio eletro-magnético:

Na promoção dos discursos populares brasileiros, o rádio revelou nossa natureza de país multicultural. Em seu duplo movimento, constituiu-se em foco de atração e de irradiação, concentração e dispersão, de nossas formas musicais populares. Por seu alcance exibiu a todos nós o nosso próprio colorido de cultura. Levava Caymmi ao sertão; Lamartine Babo e Noel Rosa à Bahia; Assis Valente a Minas Gerais; o baião ao Brasil meridional (Risério, 1993a, p. 40).

Na Cidade da Bahia, músicos e compositores negromestiços que já tocavam nos bares e cassinos da night moderna, também fincaram pé no rádio que se comercializava e abria espaço para as formas musicais populares. Compunham as orquestras, participavam de programas de auditório, apareciam como compositores e intérpretes – caso, entre outros, de Riachão e Batatinha, dois dos maiores sambistas baianos.

Entretanto, é bom lembrarmos, a síncopa e os requebros que nos chegavam anunciadas pela voz de César Ladeira nas ondas hertzenianas da

116 Ao trio devem ser acrescentados dois outros elementos de grande importância: o ambiente

intelectual (modernista) e político (pós-30) na “descoberta” das “coisas brasileiras” e na “invenção” de uma “identidade brasileira”, processo no qual o samba ocupou um lugar de absoluto destaque.

PRE-8, a Rádio Nacional, fundada em 1936 no Rio de Janeiro, estavam apenas fazendo o caminho inverso de décadas atrás. Sim, pois o samba, que se hibridizara e estilizara no Rio de Janeiro, nasceu na Bahia e daqui foi levado pelos escravos e libertos vendidos ou imigrados para o Rio de Janeiro. Mas a presença das formas culturais desse mundo paralelo não se dava apenas no rádio e na noite mundana da cidade. Havia momentos, por exemplo, em que se cruzavam a cultura “letrada” e a cultura popular, como sugere a vida boêmia dos “rebeldes”. Com a palavra Jorge Amado:

éramos uns subliteratos, uns esculhambados, o rebotalho da cultura baiana. Fazíamos farras imensas, tínhamos muita ligação com as figuras populares, capoeiristas, malandros, estivadores , boêmios, prostitutas. Íamos sempre às festinhas de bairro, aos candomblés, às feiras, aos mercados. Daí o meu aprendizado de romancista. Esse meu contato com o povo foi fundamental para a obra que escrevi.” (Jorge Amado apud Santana, 1986, p. 14).

Nos anos 30 os negros e sua cultura começam a sair da clandestinidade. São tempos da Frente Negra e do primeiro Congresso Afro- Brasileiro. Aqui e ali, ainda que com toda a reserva, a imprensa noticia fatos da cultura negra fora de suas páginas policiais. Em 1940 Joãozinho da Goméia apresenta os “Bailados de Obá Dundem” no cine-teatro Jandaia, para uma cidade curiosa das coisas do candomblé. (Franco, 1994).

Mas a Salvador que se pretendia moderna nos trilhos dos bondes e telas dos cinemas, permanecia fortemente marcada pela estagnação econômica e pela rigidez das suas relações sociais. Era a Cidade da Bahia dos saveiros e do terno branco. Empobrecida e ensimesmada, ainda era a Bahia que chegando ao Capodanno de 1900 não chegara a trocar de século, pondo na conta do centenário que parecia ter findado mais cinqüenta anos de história pra gastar. E gasta-os, como vimos, ostentando o h da sua “velha ortografia social” (Brandão, 1993, p.79), no cotidiano de “pobreza e opulência, de conservadorismo e orgulho” (Dantas Neto, 1996, p. 88) exibido

pelo “remansoso reduto da economia urbana pré-industrial” (Risério, 1993b, p.183) em que se tinha transformado.

Dessa forma, e por conta desse mesmo centenário que se fez tão longo, vai expor e dispor de um corpo de cultura luso-banto-sudanesa que se foi cristalizando por força de contatos interculturais – aos quais compareceram, em força, as semelhanças e parentescos formais, as liminaridades, as assimetrias e as ambivalências que presidiam as múltiplas “interfaces” (Moura, 2000) entre diferentes atores sociais e distintos repertórios simbólicos – e que acabou produzindo, por sua singularidade, a individuação da Bahia em meio à colorida e variada tenda brasileira.

IV A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO CULTURAL BAIANO

Até aqui procuramos dar conta do compósito cultural baiano refletindo sobre três pontos que consideramos fundamentais. O seu traço mais forte e abrangente, ou seja, o seu caráter transcultural, mestiço; o panorama matricial que lhe garante singularidade e sustentação; e o longo período,