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Cultura: da paideia à forma moderna

À multiplicidade conceitual que ronda a palavra cultura parece corresponder a complexidade da sua história. Uma história que nos exige uma parada e algumas páginas a mais, o que infelizmente, aumentará a distância que nos separa do porto baiano onde queremos ancorar.

A palavra cultura é originária do latim. Etimologicamente, cultura deriva do verbo latino colo, matriz também das palavras colonização e cultivo.

Cultus, sua forma nominal, tanto significava para os romanos o trabalho de

cultivar a terra quanto o ato de reverenciar os mortos. De igual forma,

culturus, o particípio futuro do verbo, tinha na língua de Roma um duplo

significado: o de trabalhar a terra e o de educar os homens para a vida (Bosi, 1996).

O professor Muniz Sodré (Sodré, 1988a) ressalta a equivalência entre o significado atribuído à paideia pelos sofistas gregos desde o século IV a. c. – o estoque poético, artístico, científico e legal que alimenta a educação do homem, o indivíduo-cidadão que irá habitar a polis – e aquele que os romanos, posteriormente, emprestaram à expressão cultura animi – o ato de cultivar o espírito, o trabalho de formação humanista do indivíduo.

E são a paideia grega e a cultura animi dos romanos que vão estar na origem da noção moderna de cultura que começa a se desenvolver a partir do Renascimento (Sodré, 1988a). No entanto, se de gregos e romanos herdamos o significado mais geral que ainda hoje é atribuído ao vocábulo cultura – o de formação do espírito do homem em bases humanistas (artes, literatura, ciências e moral) –, não é demais lembrar que entre a Antiguidade Clássica e o século XIX, quando a cultura passa a desfrutar da condição de objeto das ciências humanas, muita água a ponte viu passar rio abaixo.

No cinquecento a palavra cultura já remete – além de significar o cultivo da terra e o cuidado (criação e reprodução) dos animais – ao processo de desenvolvimento humano, isto é, ao cultivo da mente. Contudo, é só a partir de finais do setecento que o vocábulo passa a ser utilizado em vários idiomas europeus como um substantivo independente “referindo-se a um processo geral ou o produto deste processo” (Thompson, 1998, p. 167).

Entretanto, a sua utilização não vai se dar de maneira uniforme. São distintos os significados de culture, assim grafada no inglês e francês, e

kultur, como vai aparecer no idioma alemão6. Em cada um destes idiomas a

palavra adotou uma significação específica, sempre em sintonia fina com as aspirações das burguesias nacionais em ascensão nesses países (Sodré, 1988a; Santos, 1994; Thompson, 1998).

Na França e na Inglaterra, o substantivo cultura vai ser empregado com um significado cujo espírito é próximo ao da palavra civilização7. Em ambos

os idiomas, civilização designava tanto as boas maneiras e trejeitos que faziam a gala da Corte e dos salões da aristocracia francesa quanto às conquistas tecnológicas, estas, em larga medida, obra dos ingleses. Quanto ao vocábulo cultura, franceses e ingleses reservavam-lhe um significado de “espírito formador”, uma representação da noção iluminista de valores espirituais, a encarnação última do espírito ilustrado. Digamos, uma paideia rediviva, moderna.

6 No idioma alemão, a palavra cultura foi, inicialmente, grafada como cultur. Só mais tarde é

que esta palavra vai aparecer como kultur (Thompson, 1998).

7 Civilização é, como cultura, também uma palavra de origem latina. Deriva do latim civilis.

No século XVI, Erasmo de Rotterdam estabeleceu a noção de civilidade para designar uma disciplina que ensinava às crianças regras de comportamento externo. Aqui, é bom lembrar, o domínio e o manejo destas regras é o que fazia da civilidade um traço distintivo entre nobres e plebeus. Da noção de civilidade chega-se, posteriormente, à de civilização, sem que o termo abandone, no entanto, a perspectiva original de estratégia de distinção social (Sodré, 1988a).

Já no alemão, entretanto, os vocábulos cultura e civilização vão ser utilizados com sentidos absolutamente contrastantes.8 Kultur referia-se ao

espírito nacional – ou seja, à representação do traço comum, do elo de ligação

entre as diferenças nacionais alemães – assim expressando a idéia-força do projeto de unificação política da Alemanha pilotado pela burguesia9.

Zivilisation, por oposição, remetia ao universo aristocrático de nítido (e

indesejável) sabor francês, tão somente uma representação das superficialidades do homem como a polidez e o refinamento de maneiras da vida cortesã.

A partir de então, da Revolução Industrial e do Romantismo, século XIX afora, cultura vai significar, de forma alternada, ora um “sistema de vida”, ora uma “realidade superior” – apanágios de personalidades dotadas de espírito elevado e, dessa forma, espaços interditos às massas, aos pobres de espírito e de dinheiro (Sodré, 1988a).

E é esta noção de cultura – que podemos chamar de clássica – que se estabelecendo claramente como uma estratégia de diferenciação social, entre os séculos XVIII e XIX, vai alimentar, daí por diante, o desenvolvimento do sentido mais geral e mais comum do termo (cultivo ativo da mente) na direção dos múltiplos significados presentemente utilizados, e que vão, segundo Raymond Williams, desde

(i) um estado mental desenvolvido – como em ‘pessoa de cultura’, ‘pessoa culta’, passando por (ii) os processos desse desenvolvimento – como em ‘interesses culturais’, ‘atividades culturais’, até (iii) os meios

8 Segundo Muniz Sodré, “[Immanuel] Kant parece ter sido o primeiro a estabelecer os termos

modernos da antítese cultura/civilização” (Sodré, 1988a, p. 24). Para este importante filósofo alemão do século XVIII, “Tornamo-nos cultos através da arte e das ciências [...] tornamo-nos civilizados [pela aquisição de] uma variedade de requintes e refinamentos sociais” (Kant apud Thompson, 1998, p.168).

9 José Luiz dos Santos lembra que não apenas no caso alemão a noção de cultura e a idéia de

nação vão estar estreitamente relacionadas. Tal é o caso, também, da Rússia, “um império

contendo uma diversidade de povos e que estava igualmente preocupado em estabelecer uma realidade cultural comum” (Santos, 1994, p. 32), preocupação que continua após a Revolução Soviética de 1917 e que se torna peça fundamental na definição da política de nacionalidades da antiga URSS.

desses processos – como em cultura considerada como ‘as artes’ e o trabalho intelectual do homem’ (Williams, 1992, p. 11, grifos do autor).

Não há dúvidas de que alguns dos aspectos desta forma de conceber a

cultura, como por exemplo, a ênfase na idéia de espírito formador, na

necessidade de cultivar-se valores mais elevados, a referência recorrente ao domínio das letras e das artes e a inabalável crença iluminista no progresso e na ciência, permanecem em larga medida, ainda hoje, informando boa parte dos usos cotidianos da palavra cultura. São aspectos que, observa ainda Thompson (1998), pelo seu claro sentido de distinção social e evidente sabor eurocêntrico10, conferiam um caráter limitado e estreito à concepção clássica

de cultura. Limitações que só serão rompidas a partir da segunda metade do século XIX, quando a reflexão sobre cultura vai ser incorporada como elemento central da antropologia, disciplina emergente no território das ciências sociais. O conceito de cultura vai, então, despojado de alguns dos seus traços etnocêntricos, adaptar-se às demandas do trabalho etnográfico, interessado, neste momento de intensos contatos coloniais, em elucidar a vida das sociedades extra-européias.

O ponto de partida do que pode ser chamado de concepção antropológica de cultura foi, como já registramos anteriormente, a definição elaborada em 1871 por Sir Edward B. Tylor, professor da Universidade de Oxford, na sua obra em dois volumes intitulada Primitive Culture.

Muniz Sodré (Sodré, 1988a) refere-se a este momento de requalificação do conceito de cultura – que cientificiza-se, afastando o caráter

10 Thompson (1998) e Williams (1992) observam que algumas dessas limitações de certa

forma já haviam sido apontadas em obras de pensadores alemães do século XVIII. Referem- se ambos, em especial, a Johann Gottfried Herder, poeta e filósofo alemão que em obra publicada entre 1784 e 1791 vai, pela primeira vez, empregar a palavra cultura no plural. Segundo Raymond Williams, Herder, com essa compreensão pluralista do termo, intencionalmente retirando-lhe qualquer sentido unilinear de civilização, contribuiu sobremaneira para a “evolução da antropologia comparada no século XIX” (Williams, 1992, p. 10-11).

marcadamente humanístico presente, por clara inspiração iluminista, na

concepção clássica – como “operação antropológica”. A cultura passa,

portanto, graças a esta “operação“, à condição de objeto de estudo das ciências sociais, mais especificamente da sua caçula, a antropologia.

Tal “operação antropológica” realiza-se sob o signo da teoria evolucionista de Darwin, “que postula a unidade biológica da espécie humana sob as capas das diferenças de costumes ou modos de vida” (Sodré 1988a, p. 32). Uma teoria que, de resto, a partir de meados do século XIX, impactou profundamente o pensamento científico em todos os campos, não deixando de fora, e muito pelo contrário, as chamadas ciências sociais. Assim, a antropologia, emergindo como ciência em meio ao turbilhão promovido pela revolução darwiniana, já nasce completamente dominada pela estreiteza da perspectiva de um “evolucionismo unilinear” (Laraia, 1994).

Com efeito, não é outra a matriz do pensamento de Tylor. Sua definição de cultura é um exemplar típico do que é chamado de evolucionismo social. Segundo Laraia (1994), para Tylor cultura era um fenômeno natural, dotado de causas e regularidades, cujo estudo permitiria a identificação das leis responsáveis pela sua evolução. A tarefa da nova ciência, a antropologia, deveria ser, portanto, estabelecer, de alguma forma, uma escala que permitisse a classificação dos povos de acordo com o seu grau de civilização. No topo da escala, as nações européias, expressão máxima do ideal de civilização. No extremo oposto, na base da escala, sob o manto da barbárie, os povos e tribos selvagens.

Mas não são as teses evolucionistas o único elemento balizador da “operação antropológica” nomeada por Sodré (1988a). A emergência da antropologia enquanto ciência e a conseqüente requalificação que esta nova disciplina promove quanto ao entendimento da noção de cultura são também

contemporâneas, historicamente, da expansão colonial da Europa no século XIX. Um processo avassalador e acelerado que, sob a regência das grandes potências européias ocidentais, vai incorporar nações, territórios e povos de outros continentes pela via da dominação política, da exploração econômica e do controle militar.

Portanto, a moderna conceituação de cultura, aquela resultante da “operação antropológica”, nasceu associada tanto à grande novidade do pensamento científico oitocentista, o evolucionismo, quanto ao projeto de expansão e dominação colonial das potências européias então em curso.

Em meio a essa “operação antropológica”, requalifica-se também a relação entre as noções de cultura e de civilização. Ambas as palavras, como vimos, definiam-se em função dos contextos nacionais específicos, variando da condição de quase sinonímia ao mais irredutível contraste. Pois bem.

Civilização passa a designar, também, no século XIX, o simétrico de primitivo.

Dizemos também porque se a palavra civilização continuou carregando significações distintas como reflexo dos jogos de poder em cada espaço nacional, quando os olhares se deslocavam para territórios extra-europeus, para o palco da expansão colonial do Oitocentos, o termo assume um significado completamente idêntico, tanto faz se pronunciado em inglês, francês ou alemão. Ou seja, havia, é certo, grandes diferenças entre os projetos de conquista da condição de classe dominante pelas distintas burguesias nacionais européias – nos quais eram estratégicos usos específicos e distintos de termos como cultura e civilização. Mas quando a conquista referia-se ao processo colonial, aos interesses expansionistas das burguesias européias, emergia, com força, um projeto único, por cima das cores nacionais – o que não eliminava, é evidente, a competição entre as burguesias pela captura de mais e mais territórios e mercados. Desapareciam assim as diferenças semânticas, os sotaques nacionais. Falava mais alto a gramática da conquista. Civilização passa a expressar, nessa

perspectiva, a condição superior do Ocidente europeu em face à barbárie, a

selvageria ou o primitivismo, palavras que expressavam a condição inferior

que caracterizaria a vida nas sociedades tribais africanas – era a África, nesse momento, é bom frisarmos, o principal objeto da cobiça colonial das burguesias européias. Vejamos como se refere a esta questão o professor Muniz Sodré:

Embora as elites intelectuais burguesas pudessem estabelecer, dentro de seus espaços nacionais, uma distinção entre cultura e civilização – como afirmação do indivíduo isolado contra o todo social e como meio de distinção social ou então como expressão de identidade de grupo (Alemanha) –, os dois termos identificavam-se para o projeto de expansão colonial ou toda vez que o Ocidente concebia apenas o seu próprio processo civilizatório como modelo universal de cultura. Essa palavra desloca-se então de seu raio de ação interna, de dentro de um mesmo campo de poder, para pensar (e dominar) as diferenças com outros campos, outras organizações sociais (Sodré, 1988a, p. 31-32, grifos nossos).

Dessa forma, a nova noção de cultura produzida pela “operação antropológica” vai funcionar, no plano da ciência, como conceito legitimador do processo de expansão do Ocidente no século XIX. Claro. As diversas sociedades humanas encerram formas culturais específicas, ensinava a nova disciplina científica em reconhecimento à alteridade. Todavia, no discurso antropológico-evolucionista inaugurado pela definição de cultura de Tylor, as diferenças étnico-culturais dos povos extra-europeus não passam de estágios inferiores, de “fases diversas de um mesmo processo de transformação capitaneado pela civilização ocidental” (Sodré, 1988a, p. 33, grifo nosso). O Ocidente civilizado e culto se autonomeia, assim, modelo universal. Um objetivo ideal a ser alcançado (inexoravelmente) pelas culturas primitivas dos povos extra-ocidentais.