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E o longo século continua

Pois bem. Se a compreensão crepuscular do Oitocentos na Bahia pode ser nuançada, quer pela falsa euforia dos surtos de ascenso e dos fugazes renascimentos que sacodem a calmaria da Província, quer ainda pela algazarra da vida urbana de sua capital, Salvador, quando o foco temporal desloca-se para o período entre as décadas de 20 e 40 do século passado “existe uma unânime constatação de um quadro de estagnação econômica e ostracismo político das elites baianas” (Dantas Neto, 1996, p.86). E isto no exato momento em que o Brasil acelerava o passo no rumo da

industrialização, experimentando transformações de sentido claramente modernizador.

Já na virada para o século XX, a Bahia não oferecia nada além da palidez de uma economia que permanecia ancorada num estágio agrário- mercantil, marcada pelo arcaísmo de sua estrutura e a defasagem dos seus suportes tecnológicos. Nesse quadro, Salvador consolidava a sua condição de cidade especializada em atividades típicas do setor terciário, com funções comerciais e administrativas que cresciam “em termos intensivos em trabalho”, mas a “níveis baixos de produtividade dada a abundância relativa de mão-de-obra e a escassez de capitais de aplicação local” (Faria, 1980, p. 34). Nem o brilho do cacau, no Sul baiano, a “única fronteira”, como lembra Almeida (1977), conseguia alterar este quadro, incapaz que era de promover uma real capitalização da economia baiana.

Até mesmo o esforço de industrialização das últimas décadas do século XIX vai ser interrompido. A partir de 1920, o embrionário parque fabril então existente vai experimentar uma “involução” em flagrante descompasso com o processo de industrialização que agitava o Brasil meridional. Vilmar Faria indica com precisão esse processo, registrando que

O crescimento da indústria substitutiva de importações no Centro-Sul do país, sobretudo a partir de 1920, afetou severamente a incipiente industrialização baiana [o que acarretou] para a Bahia e para Salvador, um período relativamente prolongado de ‘involução industrial’ (Faria, 1980, p. 34).

Negritando a situação de “involução”, Faria (1980) recorda que, em 1940, os indicadores da atividade industrial na Bahia chegam a apresentar um desempenho inferior ao registrado por volta de 1920.

Mas a regressão não fica restrita à atividade industrial. Salvador, segunda maior cidade brasileira em tamanho até o final do século XIX, vai

perder a função de centro regional para Recife, que passa a comandar o subsistema urbano do Nordeste (Faria, 1980).

Até 1950, a população soteropolitana vai crescer a taxas inferiores às da população nacional e das principais cidades do país. Em tamanho, cai para quarto lugar no ranking das maiores cidades brasileiras e tem logo atrás, prontas para a ultrapassagem, Belo Horizonte e Porto Alegre (Faria, 1980). Esta situação demográfica será agravada ainda mais pelo intenso fluxo migratório de baianos na direção do eldorado paulista, que chega a drenar metade dos habitantes de alguns dos municípios do sertão entre 1920 e 1940 (Almeida, 1977).

Reforçando o quadro de estagnação e paralisia entre os anos 1920 e 1940, irrompe a Revolução de 1930, que para a Bahia, tanto política como economicamente, foi uma “revolução madrasta”, como a batizou Clemente Mariani (Mariani, 1977).

Do ponto de vista político100, o movimento de 30 praticamente não

chegou a encontrar adeptos em terras baianas. Ao contrário, vai deparar-se com forte oposição das elites locais que, com as diferenças internas amainadas, vão se apresentar “coesas na recusa da nova ordem e no protesto contra a supressão de sua autonomia” (Dantas Neto, 1996, p.90). E do ponto de vista econômico, pelo menos num primeiro momento, os interesses agroexportadores das elites baianas não chegaram a ser beneficiados pelas políticas implementadas por Getúlio Vargas, particularmente voltadas para o fomento da indústria e a concentração de investimentos na região Centro- Sul, esta, aliás, já uma tendência anterior à própria Revolução de 30. E

100 É bom lembrar que o compromisso das elites baianas tinha sido estabelecido com a

candidatura de Júlio Prestes, liquidada pelo golpe revolucionário, em cuja chapa o político baiano Vital Soares figurara como vice-presidente. Quando eclode o movimento, os revolucionários baianos não passam de alguns poucos nomes. O único político de peso a apóia-lo é J. J. Seabra – apoio que se explica tão somente em função de contradições internas da oligarquia local, e que tem vida breve. Rapidamente se recompõem as oligarquias e unidas investem contra Juracy Magalhães, o interventor enviado por Vargas, que por ser cearense era considerado um “estrangeiro”.

dizemos num primeiro momento pois, como bem lembra o professor Paulo Fábio Dantas Neto, desaconselhando “conexões absolutas entre política e economia”,

embora não fosse a Bahia contemplada favoravelmente pelas prioridades da nova política econômica e industrial e em que pese a atitude de oposição que suas lideranças políticas tradicionais mantinham diante do governo federal, a modernização das estruturas econômicas do país terminaria por se fazer sentir, embora com retardo e em condições de subalternidade, na sociedade baiana (Dantas Neto, 1996, p. 91-92).

De qualquer forma, e especialmente quanto a Salvador, ainda que algumas poucas repercussões positivas tivessem sido sentidas como resultado das transformações sócio-político-econômicas encetadas pelo movimento de 1930101, estas não chegaram a promover qualquer alteração do

tecido econômico na direção de sua diversificação e reorganização em bases mais modernas, capitalistas.

Parece ser ponto pacífico, portanto, que o quadro de estagnação até aqui descrito, para a Bahia e para Salvador, só vai alterar-se significativamente a partir dos anos 1950, com a criação da PETROBRÁS e o início da exploração e refino de petróleo no Recôncavo baiano, inserindo a Bahia na dança do capitalismo brasileiro.

Até lá, Salvador continuará exibindo uma economia estagnada, dependente das atividades agromercantis, marcadamente concentradora de renda e cuja organização capitalista estava restrita ao setor de exportação e importação, ao comércio e serviços de luxo voltados para os estratos altos e médios da sociedade, a um setor fabril em crise profunda e ao setor público. Por outro lado, grande parte da força de trabalho vinculava-se a um setor de relações não-capitalistas de produção composto por inúmeras atividades

101 Paulo Fábio dá como exemplo a “reforma administrativa que propiciou a oferta de

empregos públicos e uma maior ‘diferenciação interna na sociedade local’” (Dantas Neto, 1996, p. 91) –

artesanais, pelo pequeno comércio e os serviços que atendiam aos estratos de baixos níveis de renda e, também, pela multiplicidade de prestadores de serviços que esses mesmos estratos ofereciam aos estratos médios e altos da sociedade (Carvalho & Alves de Souza, 1980).

O sociólogo Antônio Sérgio Guimarães assim resume a estrutura social dessa velha Bahia que alcançava a metade do século XX completamente alheia ao processo de atualização histórica que modernizava o Brasil meridional:

Por um lado, tínhamos, no topo da economia agroexportadora, os banqueiros, os grandes comerciantes exportadores e importadores, seguidos dos ‘barões’ do açúcar, dos oligarcas latifundiários, dos grandes atacadistas e dos grandes industriais (do fumo, do cacau, da construção civil); por outro lado, controlando o poder do Estado, além dos eventuais membros das classes proprietárias, uma camada de altos funcionários, geralmente advogados, juristas, médicos e engenheiros, e de políticos profissionais, distribuídos os dois grupos, pelo Executivo (principalmente os setores de saúde, educação e transporte), pelo Judiciário e pelo Legislativo. Havia portanto, de modo claro, uma classe dominante, exploradora, que vivia principalmente da renda de propriedades e de cargos públicos, e só secundariamente de lucros auferidos em empreendimentos capitalistas (Guimarães, 1987, p. 59).

Na Bahia, por volta da metade do século XX, ainda não se consolidara plenamente uma sociedade de classes. Prevalecia entre nós uma “sociedade de status”, como observou o professor Thales de Azevedo (Azevedo, 1996). Em lugar de classes, “grupos de prestígio”. Dois, exatamente: o dos ricos e brancos, a elite, e o dos pobres e negros, o povo. Ascender era, por aqui, questão de berço e de cor.

Na velha Salvador de então, o único sinal de “progresso” e “modernidade” que lhe perturba a sonolência fica por conta de importantes transformações que vêm alterar o seu tecido urbano. Referindo-se ao primeiro quartel deste século, Américo Simas Filho chama a atenção para alguns aspectos dessas transformações urbanas que considera positivos

(Simas Filho, 1980): a modernização do porto, o estabelecimento do fornecimento de serviços públicos importantes como água, tratamento de esgotos, energia elétrica, bondes, elevadores e planos inclinados movidos à eletricidade ligando a Cidade Baixa à Alta, além de uma certa expansão da cidade, com o surgimento de novos bairros e o desenvolvimento dos já existentes.

Mas, é importante registrar, esse surto modernizante, que se inicia ainda nos finais do século passado, tem seu período mais agudo no governo de Seabra nos anos 1910 e segue remodelando o urbano da Soterópolis até aproximadamente os anos 40, precisa ser compreendido levando-se em consideração três questões importantes.

A primeira diz respeito ao fato de que a remodelação urbana de Salvador, promovida por essa onda modernizadora, em nenhum momento chegou a alterar o jogo de exclusões que caracterizava a realidade de Salvador. Pelo contrário, o processo de modernização da Salvador dos começos do século XX vai apresentar-se “segmentado”, “polarizado”, dominante e hegemônico mas incapaz de atingir “todos os espaços e práticas sociais que estruturam a cidade” (Fernandes & Gomes, 1992, p. 58). Em outras palavras, não chegou a abalar a sociedade "de status".

A segunda questão a considerar é a profunda agressão ao patrimônio histórico da cidade, promovido pelo que Fernando da Rocha Peres, na sua

Memória da Sé (Peres, 1973), denunciou como “urbanismo demolidor”. Uma

“solução”102 que destruiu “vários exemplares da nossa arquitetura mais

anciã, civil e religiosa”, sacrificando um “valioso contingente de bens culturais” em nome da resolução dos “problemas de estrangulamento da

102 O afã do “urbanismo demolidor” recorreu a vários métodos de ação, como por exemplo, os

“incêndios misteriosos” que vitimaram, além do Teatro São João em junho de 1923, vários outros prédios, facilitando, dessa forma, as transformações da então área central de Salvador (Neves, 2000).

‘nova cidade’ idealizada” e, de quebra, ainda permitiu à “especulação imobiliária” realizar “os seus melhores negócios.” (Peres, 1973, p. 37).

É importante registrar que o afã modernizador do período seabrista vai inspirar-se, com um atraso de dez anos, no projeto de saneamento e modernização do Rio de Janeiro – “modelo semiótico-cultural” (Sodré, 1988b) que orientou os surtos modernizadores em todos os cantos do país. Referindo-se aos “melhoramentos” promovidos a partir da posse de José Joaquim Seabra, em 1912, como governador do Estado, diz-nos Fernando da Rocha Peres:

As cidades, alta e baixa, integrante de um complexo centro de atividades desenvolvidas há vários séculos, irão passar por mudanças bruscas em suas estruturas físicas. A queda do antigo casario, e até de monumentos, para a abertura de ‘avenidas’, a conquista de novos espaços ao mar, para alargamento da faixa compreendida na zona portuária, vai ser a preocupação dos ‘polithecnicos’ do urbanismo. De resto a palavra de ordem é demolir o passado, e para isto a cidade fundada por Tomé de Souza é um excelente cenário e oferece vantajosas oportunidades de trabalho e lucro (Peres, 1973, p. 37). O professor Américo Simas Filho faz notar que o “desrespeito à memória” de Salvador se inicia em finais do século XIX103, quando a

“ideologia do progresso” começa a promover “mudanças sensíveis no Centro Histórico da Cidade”, particularmente com a “desfiguração completa do Centro Administrativo – Praça Municipal – que se conservava íntegro por séculos” (Simas Filho, 1980, p. 16). Mas é a partir do período seabrista que vai se dar

103 A depredação da arquitetura colonial de Salvador só será revertida a partir da segunda

metade dos anos 30. Inicialmente com a realização, em 1935, da Semana de Urbanismo, cujo discurso modernizador vai acolher a necessidade de preservação do patrimônio histórico da cidade. E, posteriormente, com a entrada em funcionamento, em 1943, do EPUCS, o Escritório do Plano Urbanístico da Cidade de Salvador. Sob o comando do engenheiro Mário Leal Ferreira, o EPUCS desenvolveu uma compreensão da questão urbana que, segundo Francisco de Assis Barbosa, era completamente “diferente de tudo quanto tinha sido tentado até então, não só na Bahia, como em todo o Brasil, em matéria de urbanismo” (Barbosa

apud Peres, 1973, p.21). A preocupação central no trato com Salvador passou a ser o que o

EPUCS denominava de “crescimento ordenado da cidade”. Um crescimento tecnicamente ordenado, mas acima de tudo submetido a considerações de ordem “ética e estética com uma justa medida entre crescimento e preservação” (Dantas Neto, 1996, p. 126).

a maior investida contra o Centro Histórico da primeira Capital do Brasil, com o chamado projeto de melhoramentos que, conduzido por pessoas insensíveis à nossa herança cultural resultou na demolição de monumentos da maior importância para a história da cidade e da arquitetura brasileiras, insubstituíveis (Simas Filho, 1980, p. 16).104

Mas, em que pese a agudeza do “urbanismo demolidor” da fase seabrista, é a demolição da Igreja da Sé, em 1933, o caso mais emblemático, rumoroso e que mais comoção causou na cidade. Atendendo às pressões da empresa que explorava o serviço de bondes em Salvador, o interventor Juraci Magalhães, com a adesão declarada do Arcebispo primaz, D. Augusto Alvares da Silva (o conhecido Cardeal da Silva), autorizou a demolição da Sé – uma igreja cuja construção tivera início ainda no governo de Tomé de Souza –, o que, segundo Fernando da Rocha Peres, constituiu-se no mais eloqüente exemplo de ‘urbanismo demolidor’ já perpetrado no Brasil” (Peres, 1973, p. 47).

A terceira e última questão envolve o sentido mesmo desse processo de modernização urbana experimentado por Salvador nas primeiras décadas do século, e seu traço agressivamente destruidor contra tudo que representava a velha cidade.

Contemporâneo do período mais profundo de decadência econômica e desprestígio político da região, o processo de “remodelação urbana” voltado para a “modernização” da cidade de Salvador sugere uma tentativa clara de “compensação à estagnação dos antigos meios de reprodução e legitimação das elites dirigentes”, servindo, também, para aliviar “o complexo de inferioridade que minava o orgulho quase quatro vezes centenário da cidade” (Dantas Neto, 1996, p. 123). É bom lembrar que, àquela altura, o Rio de Janeiro já era uma cidade “chic, fashionable, up-to-date”, uma “réplica

104 E o estrago poderia ter sido bem maior, lembra ainda o professor Américo Simas Filho:

“Mais não se perdeu devido ao denodo do Abade Beneditino D. Majolo de Coigny, que salvou o conjunto Beneditino, e à falta de recursos financeiros, devido em parte à guerra de 1914- 18, que impediu o cumprimento integral do infeliz projeto.” (Simas Filho, 1980, p.16).

tropical de Paris”, uma “grande metrópole” que “suplantava Buenos Aires” (Peres, 1973, p. 17). Era preciso ser moderna, mesmo que às custas de uma sanha destruidora. E, se sob os escombros das demolições enterrava-se também parte da tradição que sustentava o orgulho quatrocentão, “as obras que se sucediam ‘redimiam’ a perda pela presunção de conquista de um lugar melhor na corrida pela ‘modernidade’” (Dantas Neto, 1996, p. 123).