• Nenhum resultado encontrado

De outras formas e folias

A matriz estética que dá sustentação ao universo festivo e às artes do espetáculo na Bahia está ancorada firmemente, como esperamos ter demonstrado, na encruzilhada que reuniu ameríndios e mais particularmente portugueses e africanos. Tal não significa, no entanto, que as artes e artimanhas baianas tenham permanecido ao abrigo de outros ventos, imunes a outras influências.

Primeiro, porque não há como se imaginar uma formação cultural desonerada do embate com o que vai fora de suas fronteiras. A história da

61 Segundo Muniz Sodré, nos Estados Unidos como aqui, foram muitos os contatos entre os

cultos negros (rituais nagôs, por exemplo) e a música secular. Daí que o samba e o jazz, dois produtos híbridos, devam ser considerados primos próximos – como também o são, as cidades de Salvador e New Orleans. O elemento de consangüinidade que garante o parentesco entre estas duas formas musicais é a síncopa, “a batida que falta”, tecnicamente, “a ausência no compasso da marcação de um tempo (fraco) que, no entanto, repercute noutro mais forte” (Sodré, 1998, p. 11). Ou seja, “Tanto o jazz quanto o samba encontram sua especificidade musical na sincopação” (Sodré, 1998, p. 26). Ambas as formas resultam de trocas entre a música negra e a música Ocidental, onde a primeira cedeu em parte à supremacia melódica européia, mas preservando a sua matriz rítmica através da deslocação dos acentos presentes na sincopação” (Sodré, 1998, p. 25). E, acrescenta Sodré (1998, p. 11), esta “ausência de tempo”, a batida que falta ao samba e ao jazz, é preenchida com a “dinâmica do movimento no espaço” realizado pelo corpo que dança.

cultura de um povo é, principalmente, a história das trocas culturais que conformaram a sua cultura. O antropólogo Hermano Vianna, assim, acerta em cheio quando, ao adotar o conceito de transculturalismo elaborado pelo cubano Fernando Ortiz, faz questão de lembrar que um fenômeno

transcultural não resulta da combinação de formas originalmente puras.

Estas formas, continua Hermano Vianna, já são, de per si, produtos

transculturais, visto que “nunca – na história cultural do mundo – pode ser

encontrado um elemento que já não tenha passado por algum processo

transcultural (Vianna, 1995, p. 172).

Daí que soem risíveis as costumeiras argumentações à volta da pureza

cultural do nosso povo e das nossas manifestações, não importando qual o

povo ou a manifestação que inspire tal espírito preservacionista. Seja porque não há pureza cultural – muito menos hoje face à configuração de uma contemporaneidade atravessada por potentes redes sócio-tecnológicas – , seja porque a riqueza de uma cultura está justamente na sua capacidade de dialogar com a diferença e a novidade que lhe trazem outras realidades e formas culturais.

Dessa maneira, menos do que medidas destinadas a resguardar sua pretensa inocência vernacular, as práticas e manifestações culturais demandam políticas e ações que as fortaleçam para o embate e o inevitável intercâmbio com outras culturas e que façam valer o que Sérgio Paulo Rouanet chamou de “direitos culturais”, isto é: o direito à memória cultural, que deve garantir a todos os membros da sociedade o acesso aos bens materiais e imateriais que informem da sua história e das suas tradições – e aqui a noção de preservação faz sentido, porque aplicada ao cuidado, por exemplo, com o patrimônio histórico-arquitetônico-ambiental de uma cultura –; o direito à produção cultural, que deve permitir a todos os membros de uma sociedade exprimirem a sua criatividade – não que isso signifique serem todos artistas, mas tão só que possam cultivar e expressar os talentos que

porventura possuam -; e o direito de acesso à cultura, esse um direito fundamental e imprescindível a qualquer sociedade que se pretenda democrática, sem o qual, inclusive, não se pode falar em cidadania plena. De pouco adiantam um patrimônio cultural perfeitamente preservado e uma produção cultural exuberante se largos setores da sociedade, por conta de diferenças sociais de toda ordem, estão privados de acessá-los (Rouanet, 1992).

Voltando à Bahia, dizíamos que outros temperos enriqueceram, ao longo do tempo, o caldo da sua cultura, deixando marcas visíveis, particularmente, no campo das artes do espetáculo.

Bião (2000) anota dois destes influxos culturais que, incidindo no panorama mais geral da cultura brasileira, repercutiram também no terreiro da cultura baiana. Um, a influência francesa, experimentada especialmente no século XIX quando o pensamento brasileiro afrancesou-se na esteira das idéias iluministas e que se refletiu sobretudo na linguagem teatral. O outro, a influência norte-americana que, a partir dos inícios do século XX, através dos meios de comunicação de massa, especialmente o rádio e o cinema, chega até nós num movimento que, aliás, atinge praticamente todas as sociedades e culturas. Bião (2000) refere-se, também, a uma componente judaico-ibérica do nosso panorama matricial que nos toca em momentos distintos e bastante distantes no tempo. Assim é que, primeiramente, vamos encontra-la bem lá atrás, ainda que de modo mais ou menos difuso, naquilo que nos trouxeram os “cristãos-novos” que deram com os costados na Bahia fugindo das dificuldades que enfrentavam na metrópole lusitana. Num segundo momento, e em tempos bem mais recentes, essa componente aparece-nos em meio à influência norte-americana, por conta dos musicais da Broadway e do cinema hollywoodiano, dois fenômenos de peso a marcar profundamente a cultura espetacular no Brasil.

Também no século XX, mais precisamente nos anos 1950, a cultura baiana voltou a experimentar o impacto de informações vindas de fora, só que neste caso e nesta oportunidade, com implicações muito maiores e muito mais abrangentes. Exatamente porque não se tratou do que possamos chamar de influências, como quando nos referimos há pouco a franceses e norte-americanos. O que se passou, na altura, foi um encontro das informações de vanguarda chegadas da Europa do pós-guerra e a realidade antropológica baiana – encontro em muito semelhante ao que, no Seiscentos baiano, vimos acontecer entre o barroco ibérico e os trópicos baianos, sobre o qual nos debruçamos mais atrás. Como o encontro seiscentista, que nos legou o barroco tropical, o da metade do século passado também produziu frutos da mais alta relevância para as culturas baiana e brasileira. Ainda que não nos alonguemos por agora – porque a este ponto voltaremos mais à frente –, do rebuliço que presidiu esse segundo encontro saíram atores e idéias que no instante seguinte deram substância a dois verdadeiros terremotos que sacudiram a cultura brasileira: o Cinema Novo e o Tropicalismo.

Mas esse panorama matricial que temos vindo a traçar – no qual já identificamos especificidades quanto à forma de percepção sensorial, ao arranjo lingüístico, ao universo de crenças e à dimensão estética – não estará devidamente concluído se deixarmos de considerar, mesmo que de relance, a Cidade da Bahia de uma perspectiva que tome em linha de conta, historicamente, a sua situação político-administrativo-econômica que favoreceu, desde sempre, uma vocação cosmopolita pela novidade.

Salvador não só nasceu a mais antiga. Nasceu, afirma Cid Teixeira, como “uma cidade no Brasil e não do Brasil” (Teixeira, 1998a). Fundada para ser o ponto obrigatório de passagem para as riquezas da Carreira das Índias, transformou-se num “dos mais ricos portos do mundo muito antes que Nova York saísse da infância” (Pierson, 1971, p. 92), numa espécie de rainha do

Atlântico Sul. Entre os séculos XVII e XVIII, em meio à riqueza produzida pela economia açucareira (que também produzia imensas desigualdades sociais), experimentou, como capital colonial, os seus golden years que foram, possivelmente, como sugere Thales de Azevedo, “o período de maior opulência do país”, altura em que alcançou a condição de “o mais português e importante dos burgos que na América, em África e na Ásia foram os baluartes do comércio mundial e do império lusitano” (Azevedo, 1981, p. 16). No entanto, mesmo depois de passada a fase de ouro da Salvador colonial, quando por volta do século XIX a cidade ingressa num longo período de declínio que, entremeando surtos expansionistas e calmarias arrasadoras, só encontrará o seu termo definitivo com as importantes transformações econômicas iniciadas nos anos 1950 do século XX, não se perdeu de todo a sua vocação para as novidades – e um bom exemplo aqui, pode ser, quanto ao século XIX, a influência francesa a que nos referimos há pouco.

Assim, pela “larga barra” da sua baía, que no começo era apenas “Kirimurê, grande mar interior dos Tupinambá” (Araújo, 2000, p. 10), entraram, do barroco católico-ibérico seiscentista à avant-garde européia da metade do Novecentos; de bantos e nagôs a europeus de bandeiras variadas. Entraram, também, muçulmanos e judeus, mascates e mercadores, as ondas do rádio, o cinema, o sinal da televisão – como também, por essa mesma “larga barra”, saíram da “fofa”, que exportada para Portugal no século XVII “daria origem ao fado português” (Bião, 2000, p. 22), aos sujeitos e informações seminais que em escala nacional, nos anos 1960, partejaram as revoluções estético-culturais cinemanovista e tropicalista.

Uma cidade “‘novidadeira’ e criadora de novidades” (Bião, 2000, p. 22), ainda que sempre muito ciosa e senhora, orgulhosa mesmo, da sua personalidade cultural. E talvez esteja aí um dos traços mais grossos da formação cultural baiana: a sua capacidade de oferecer-se como um território

de proveitosos diálogos entre tradição e modernidade – desse ponto de vista é emblemático o percurso da folia carnavalesca na Bahia: nascida do entrudo lusitano, modifica-se pela mão africana, é reinventada pela trioeletrificação baiana e de fenômeno da cultura passa a mercadoria e mercado de muitos negócios e negociantes. Enfim, uma cidade culturalmente disposta a encontros, uma verdadeira e permanente “encruzilhada de artes, ofícios, etnias, religiões línguas e idéias” (Bião, 2000, p. 21) – ainda que, é bom que se registre, por vezes, uma certa autosuficiência e autocomplacência se instalem bloqueando trocas e impedindo sua vocação plural.

E é no padê62 armado nessa “encruzilhada” que se conforma a cultura baiana. Do conjunto matricial que lhe dá sustentação, e que até aqui estivemos delineando, ressalta o que podemos sinteticamente chamar de

sensibilidade afrobarroca. Uma sensibilidade que alimenta o compósito

cultural da Cidade da Bahia, singularizando-o pela ludicidade, pela multisensorialidade, oralidade e plasticidade de signos e símbolos e pela disposição em aproximar vida cotidiana e produção simbólica. Uma cultura, portanto, afeita aos jogos de hibridação, jogos que desde o início impediram que por aqui vingasse purezas pré-brasileiras e que na sua versão mais contemporânea passaram a incluir as possibilidades, os desafios e os perigos do mercado.

62 Na linguagem litúrgica dos candomblés da Bahia, padê significa o “despacho de Exu, no

III DOIS SÉCULOS E DUAS MEDIDAS

Para a Bahia, o século XX foi brevíssimo ! Durou bem menos do que na avaliação feita por Eric Hobsbawm para esta centúria, a qual chamou de “o breve século XX”63. Se para o mundo, na avaliação desse historiador inglês, o

século inicia-se com a eclosão da I Guerra Mundial, para a Bahia ele só vai começar efetivamente pouco depois de encerrada a II Guerra Mundial. Durou portanto, aproximadamente, o tempo de sua segunda metade.

É que só à volta dos anos 1950 a Bahia vai ser alcançada por transformações que a empurrarão na direção de uma sociedade com características normalmente associadas ao espírito dos tempos modernos inaugurados pelo Novecentos. Com efeito, durante os primeiros cinqüenta anos do século XX, a Bahia permaneceu praticamente fora do raio de alcance dos fluxos econômico, tecnológico e simbólico da onda modernizadora que sacudia o Brasil Meridional. Ou seja, da vida baiana, nesse período, permaneceram distantes fenômenos como industrialização, urbanização acelerada, emergência de um proletariado industrial e de classes médias urbanas, desenvolvimento técnico-científico, modernismo artístico-cultural, etc.

Deste ponto de vista, a idéia do Novecentos como um século tardio, praticamente repartido fifty/fifty, está perfeitamente respaldada nos vários estudos que se debruçaram sobre a realidade da sua primeira metade, batizada como o “enigma baiano” por Octávio Mangabeira, governador da Bahia entre 1947 e 1950, altura em que as coisas começaram a mudar por

63 Cf. Eric HOBSBAWM, Era dos extremos: o breve século XX – 1914/1991 (São Paulo,

estas plagas. É fato que, sobre estes cinqüenta anos de história, tanto a historiografia clássica como os trabalhos mais recentes, se variaram quanto aos enfoques adotados, às análises efetuadas, às explicações encontradas e às proposições sugeridas, são unânimes quanto a um ponto: “enigma” ou não, foi esse meio século baiano um período de longa letargia como o chamou o economista Francisco de Oliveira em um desses estudos (Oliveira, 1987).

Verdadeira para o conjunto do Estado – à exceção, talvez, do sul cacaueiro – essa realidade ganha cores ainda mais fortes quando o foco se ajusta sobre Salvador e o Recôncavo. Acomodada num preguiçoso cenário sócio-econômico pré-industrial, essa região assistia de longe ao rebuliço do Brasil moderno que se anunciava no Centro Sul, vendo o tempo correr em ritmo lento e fogo brando, vivendo sem maiores sobressaltos aqueles que já eram bem mais do que cem anos de solidão. Gastou assim meio século, até que viesse a experimentar o que Cid Teixeira nomeou como o “maior trabalho de subversão jamais ocorrido” na Bahia (Teixeira, 1980, p.10), com a instalação da Petrobrás, marco zero da modernidade capitalista urbano- industrial em terras baianas.

Data de então, o que alguns estudiosos chamam de inserção subalterna da Bahia no processo de acumulação do capitalismo industrial brasileiro, isto em meio à nova divisão inter-regional do trabalho comandada pelo grande capital nacional e internacional, e sob os auspícios da ideologia nacional-desenvolvimentista (Guimarães, 1987; Oliveira, 1977; 1987).

Daí pra frente, a região apressou o passo. E o que sobrou de século XX, passou rápido. Rapidez, registra Maria Brandão, garantida pelo “engenho do capital” (Brandão,1998, p. 40) que, com a Petrobrás e a Chesf, deflagrou um processo de transformação da economia estadual que se estendeu pelas décadas seguintes – em especial as de 60 e 70, quando são implantados, no entorno de Salvador, respectivamente, o Centro Industrial de Aratú (CIA) e o

Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC). Assim, vai se consolidando a indústria como o principal e mais dinâmico setor de atividade econômica do Estado, muito embora, não deixam de registrar com preocupação os estudos mais atuais, este dinamismo tenha sempre estado sujeito a espasmos induzidos exogenamente (Loiola, 1997; Teixeira & Guerra, 2000).

Mas não vamos apressar o passo tão já. Voltemos o olhar para o século XIX, ainda que em ritmo de flash back.

3.1 Um longo século

Por outros engenhos, o século XIX foi para a Bahia um longo século – como pareceu a Fernand Braudel64 o século XVI e a Giovanni Arrighi65 o XX,

numa interpretação distinta daquela de Hobsbawm. Talvez tenha até começado tarde, logo após a Guerra da Independência, em 1823. Mas a decadência e o isolamento relativo que presidiram a vida baiana ao longo da centúria, entre crises prolongadas e surtos de revivescimento, ao invadirem o século XX, seqüestrando os tais cinqüenta anos de história que foram travestidos de esfinge, garantiram-lhe a longevidade.

Como pano de fundo deste isolamento relativo tomamos o que pode ser chamado de um duplo movimento que, marcando definitivamente a meridionalização política administrativa e econômica do Brasil, deslocou a Cidade da Bahia do centro mesmo da cena nacional, acomodando-a numa posição secundária na rota de atualização modernizadora que se anuncia e se inicia para o país a partir do século XIX.

64Cf. Fernand BRAUDEL, Civilização material, economia e capitalismo (São Paulo, Martins

Fontes, 1995-1996, 3 v.).

65 Cf. Giovanni ARRIGHI, O longo século 20: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. (São

Com efeito, num movimento Salvador perdeu o posto de capital e primeira cidade para o Rio de Janeiro. Já em 1763 a capital da Colônia fora transferida para lá. E lá, também, instalara-se em definitivo a Família Real, a partir de 1808, após uma breve estadia na Bahia. Em 1822 o Rio de Janeiro torna-se a capital do Império e em 1889 capital da República. Noutro movimento, a Bahia se viu apeada da condição de centro dinâmico da economia: o açúcar cedeu lugar ao café como produtor de riquezas. E como se não bastasse, o século XIX entre nós foi pródigo em crises econômicas, epidemias, catástrofes naturais, rebeliões escravas, levantes federalistas e guerras.

A idéia de uma Bahia oitocentista incapaz de acompanhar o passo do Brasil – cada vez mais meridionalizado e às voltas com importantes mudanças – encontra respaldo em inúmeros e importantes estudos. Com discursos que acentuam, uns, os períodos de crise, ou, outros, os momentos de fugaz renascimento, ainda que sem nunca deixar por registrar, todos, fatalidades e adversidades variadas, estes trabalhos remetem sempre a idéias de estagnação, arrefecimento ou decadência, pouco importando o elemento de comparação, se os anos dourados da Salvador Colonial ou o Brasil Meridional que crescia e se modernizava.

Ainda que sem a pretensão de dar conta da variedade de fontes e argumentos que alimentam o debate sobre a realidade baiana oitocentista, não queremos deixar de elencar alguns autores que, com seus trabalhos, emprestam apoio à idéia de uma Bahia que atravessa tão longo século em lento processo de decadência e experimentando, crescentemente, uma condição de relativa insularidade na cena brasileira.

A historiadora Kátia Mattoso, em obra clássica sobre o Oitocentos baiano, afirma ter escrito o que considera “a história de um tempo que precede e explica uma decadência” (Mattoso, 1992, p. 651). Uma decadência

que se anuncia, segundo essa estudiosa, com a incapacidade da Cidade da Bahia de adaptar-se aos novos tempos do Brasil pós-Independência; que se acelera a partir da segunda metade do século; e que, todavia, só é efetiva e definitivamente constatada nas primeiras décadas do século XX – quando, de há muito e por inteiro, a letargia já se apossara da Bahia. Na raiz desse processo, segundo a professora, estariam o esclerosamento da economia agromercantil exportadora, inteiramente subordinada à dinâmica do mercado internacional e incapaz de se diversificar ou se reorientar para o mercado interno; a rigidez da estrutura social, marcada pelo conservadorismo de relações sociais originárias do sistema escravista; o desinteresse político das elites dirigentes pelos destinos econômicos da Província, que nunca cogitaram de utilizar seus representantes políticos no governo do Império para, de alguma forma, alterar a realidade baiana;66 e a mentalidade

ancorada nas glórias de uma riqueza passada e povoada por mitos de muita grandeza mas nenhum futuro, glórias com que os senhores tentavam, inutilmente, ocultar o empobrecimento e a decadência cada vez mais evidentes.

O historiador Ubiratan Castro chama a centúria oitocentista de um “século gestor de uma Bahia pobre mais orgulhosa” (informação verbal)67, e

enxerga no processo de independência o momento mesmo em que “o sistema

66 Durante todo o século XIX, a Bahia forneceu em quantidade quadros políticos para os

gabinetes ministeriais do Império, no que foi chamado de “baianismo” – termo que Falcon (1978) vai buscar a Sérgio Buarque de Holanda na sua História Geral da Civilização Brasileira e cujas razões podem ser explicadas pela centralidade desfrutada pela Bahia durante o período colonial, tanto do ponto de vista econômico quanto do político-administrativo, que lhe garantiu, entre outras coisas, número expressivo de baianos com educação superior e experiência em administração pública, ou seja, quadros aptos a ocuparem lugar de relevo entre a elite política nacional. Contudo, de pouca valia foi o “baianismo” para a Bahia. Compreendendo a questão no quadro do que estamos chamando de isolamento relativo da Bahia – ou, dito de outra forma, da meridionalização da vida brasileira –, Gustavo Falcon anota com clareza que, tendo se deslocado o centro de gravitação econômica do Império para a lavoura cafeeira do Oeste paulista, “Às Províncias nordestinas, como a Bahia, restou o espaço ocupado no aparelho político, espaço que, no entanto, não conseguiu ser transformado em tribuna dos interesses das tradicionais classes dominantes baianas (Falcon, 1978, p. 100-101).

67 Participação em 05.11.98 de mesa redonda do Seminário Salvador fala ... as ciências

colonial na Bahia é atingido em todos os seus elementos básicos: absolutismo, exclusivismo comercial, trabalho escravo e sociedade estamental” (Araújo, 1978, p. 45).

Também Rômulo Almeida, no seu clássico trabalho sobre a história econômica da Bahia entre o século XIX e a metade do século XX, dá conta de uma “Bahia [que] se foi recolhendo no tempo” em meio à “sucessão de crises” que pontuam a “curva de longa tendência” com que captura o desenvolvimento da economia neste período e cujo ponto de partida é também o processo de Independência (Almeida, 1977, p. 49-50).

Góes Calmon, expoente da elite baiana, reconhece na Guerra da Independência o marco inaugural do que considera a “série negra de factores decisivos, que d’ahi por diante continuaram sua obra de ameaçadora destruição” (Calmon, 1978, p.45), desconjuntando a vida econômico- financeira da Província ao longo do século.

O marco zero da decadência baiana século XIX afora, século XX adentro, parece ser mesmo o processo de Independência do Brasil, que na