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Das festas e das artes do espetáculo

Tratamos de língua e religião. Agora é a vez da festa – o terceiro componente do trio elétrico antropológico sugerido como roteiro de compreensão da vida e da cultura de um povo por Nina Rodrigues (Rodrigues, 1988) –, um dos elementos centrais do panorama matricial que dá sustentação à tessitura da cultura baiana.

encantados são homenageados com cerimônias festivas nos terreiros de candomblé da

cidade. É importante lembrar que a reverência a figuras indígenas pode ser encontrada também entre negros do sul dos Estados Unidos, tanto no plano religioso (ver nota anterior) quanto em manifestações de outra natureza. Sodré (1988b) nos conta, por exemplo, da presença, no carnaval de New Orleans, de negros que desfilam envergando vestimentas indígenas.

O caráter festivo de Salvador é algo que se perde no tempo. Tanto é assim que, a dedicação à festa é um dos traços recorrentemente registrados por cronistas e viajantes que passaram ou viveram entre nós, desde os tempos coloniais (Augel, 1980; Araújo, 1993).

Festejar quanto possível, era um lema. E uma ordem. As autoridades não só estimulavam como chegavam a obrigar a participação de todos nas festividades. A Igreja Católica, por exemplo, condenava ao fogo do inferno, por pecado mortal, os fiéis que não guardassem os dias santificados – sempre muitos, e todos festivos – o que, convenhamos, pode ser considerado um exagero, pois faltar a uma festa não parece ter sido dos pecados mais praticados por aqui. Emanuel Araújo fez as contas de quantos eram os dias de folga e festa que religiosa e prazerosamente respeitávamos nos tempos da Colônia:

E eram muitos. Somando-se (digamos) cinqüenta domingos às quarenta datas santificadas e mais uma dedicada ao orago da cidade, temos 91 dias em que trabalhar era proibido. Pelo menos um quarto do ano (24,93%), assim, era consagrado à veneração religiosa, e mesmo que alguns desses dias coincidissem com o domingo, o cômputo ainda é modesto, pois não se contou aí grande número de festejos ‘de ocasião’ ... (Araújo, 1993, p. 132).

Sim, festas “de ocasião”40 – afinal, ninguém era de ferro – como

a transladação de qualquer imagem de uma igreja para outra, a chegada de um bispo, o falecimento do soberano, o casamento do soberano, a coroação do soberano, o nascimento do futuro soberano e, claro, mais um ou dois (ou vários) dias de festa justificavam de sobra a bajulação coletiva de celebrar o aniversário do soberano, da mulher do soberano, dos filhos do soberano ou até do supremo representante do soberano na Colônia (Araújo, 1993, p. 130).

40 E é bom que se diga, recorrendo uma vez mais a Emanuel Araújo, nem sempre um dia era

o bastante para acomodar algumas dessas festas. Em 1760, por exemplo, o povo baiano comemorou com “22 dias de festas públicas e dois de recepção em palácio” o casamento da princesa (futura Maria I) com o infante dom Pedro (futuro Pedro III) (Araújo, 1993, p.132).

Festejar à larga e de forma espetacular era a regra. A festa por aqui, fosse sagrada ou profana (separação nem sempre possível), pública ou privada, não dispensava o concurso das múltiplas artes do espetáculo. Músicas, danças, máscaras, dramas, farsas e, também, cavalhadas, touradas e jogos compunham o cenário festivo. Tomemos, por exemplo, as procissões religiosas, normalmente o ponto alto da maior parte dos festejos:

Alguns cortejos, de fato, não se limitavam a conduzir o andor que trazia a imagem do santo. Na verdade, realizava-se um monumental desfile com carros alegóricos e seus ‘destaques’, alas de gente fantasiada, muitos dançarinos e mascarados, ao som de percussões e sons estridentes. No meio de tudo vinha a imagem sagrada submersa na algazarra geral dos blocos de figurantes (Araújo, 1993, p. 133). Esse espírito festivo, que fazia das procissões verdadeiros cortejos carnavalescos, vai estar presente durante todo o período colonial até, pelo menos, a metade do século XIX, quando a Igreja passa a impor um caráter mais recolhido e compassado às suas festividades41. Impedidos assim de

continuar participando das procissões e festas católicas, cucumbis, afoxés e

maracatus, com suas máscaras, batuques, danças e cantos tipicamente

africanos, migram de vez e vão se fixar em definitivo em outros momentos festivos do calendário da cidade como o Entrudo e depois o Carnaval (Verger, 1984).

Costumes carnavalizados e festas espetacularizadas não aboliam, convém lembrar, no entanto, as diferenças de estrato e posição social que marcavam rigidamente a sociedade colonial. O espaço da festa, lembrando outra vez a observação de Moura (2000), era (como ainda é) ocupado e gozado sob o signo maior da ambivalência que regia (e rege) a sociabilidade baiana. O que não significa que não existissem brechas e, menos ainda, que

41 Processo semelhante é descrito pelo historiador Peter Burke quanto às festividades

religiosas européias. Segundo ele, à medida que se vai consolidando o mundo moderno, as festas religiosas vão perdendo o acentuado espírito carnavalesco que as caracterizavam nos inícios da Europa moderna em favor de uma ritualística mais sóbria e recolhida (Burke, 1989).

essas deixassem de ser ocupadas. Dentro de limites estreitos e de espaços reduzidos e mesmo, muitas vezes, sob intensa perseguição e repressão, a sabedoria das classes populares nunca deixou de acionar estratégias e táticas de participação no mundo da festa que, a exemplo da religião, acabou por transformar-se em território de resistência e continuidade culturais desses setores sociais.

O gosto pela festa e pelas artes do espetáculo, como estamos vendo, começa cedo na Bahia. Bem lá atrás, nos séculos XVI e XVII, o trabalho catequético levou a cartaz o nosso primeiro espetáculo – um espetáculo de teatro, no que deve ter sido, certamente, a primeira linguagem espetacular experimentada por aqui. No palco, índios e jesuítas. O texto de estréia, um produto transcultural que misturava formas teatrais trazidas da Península Ibérica a artes e rituais ameríndios42. Mas, logo a seguir começam a chegar

os africanos. Entram em cena, em força, outros atores, novas artes e muitas artimanhas. Ampliam-se os sentidos da festa e as cores do espetáculo.